Pelo direito à natureza

Ao escaparmo-nos cada vez mais das nossas urbes, cada vez mais à procura de um bem-estar em comunhão com a natureza, estamos a responder também a um quotidiano cada vez mais afastado dos espaços rurais e naturais.

Parque da Paz, Almada
Créditos

O Verão é sinónimo de tempo livre para uma parte muito significativa da nossa população activa. O direito ao desfrute e à remuneração de uma pausa anual no trabalho foi um marco importante nas conquistas dos trabalhadores no século passado. Com a redução da jornada diária e do limite da carga horária semanal, a antecipação da idade e a remuneração da reforma, vimos ganhando um espaço acrescido para o encontro, o convívio, a tertúlia e a discussão de ideias.

Durante o Estado Novo, a par de iniciativas semelhantes de alguns grupos económicos, o fascismo chamou a si o «… aproveitamento útil do tempo livre dos trabalhadores» através da criação da Fundação Nacional para Alegria no Trabalho (FNAT). Esta abria a possibilidade aos trabalhadores de experimentarem novos lugares e actividades, entre as quais se incluíam também a assistência a «saraus», não isentos de, mais ou menos explícitos, louvores ao regime. Prevenia-se assim que esses momentos «livres» fossem aproveitados para a discussão de ideias perigosas, como eram as dos interesses dos próprios trabalhadores. Com Abril, não só foi possível assegurar um quadro remuneratório mais digno, como também mais tempo disponível, livre de responsabilidades laborais, para além do repouso biológico.

«Apesar das recentes, injustas e dramáticas "erupções" neoliberais, o tempo livre e a respectiva remuneração são hoje inerentes à condição e à circunstância do trabalhador.»

Apesar das recentes, injustas e dramáticas «erupções» neoliberais, o tempo livre e a respectiva remuneração são hoje inerentes à condição e à circunstância do trabalhador. Países há cuja constituição, de natureza progressista, já institucionaliza o desenvolvimento desse espaço de liberdade como missão do Estado e pilar da emancipação da população trabalhadora, como é o caso do «buen vivir» inscrito na constituição do Equador.

Esta disponibilidade acrescida de tempo e rendimento, juntamente com uma maior mobilidade colectiva e individual, vem traduzindo-se também em mais território passível de ser vivenciado. Podemos deambular mais após o horário de trabalho, podemos sair mais ao fim-de-semana, e podemos ir mais longe nas férias ou após a aposentação. Hoje em dia, ao contrário das gerações anteriores, o tempo livre leva-nos a equacionar também o território disponível para o fruirmos, para conhecermos e experimentarmos novos espaços de forma gratificante.

O carácter mais urbano e urbanizado da nossa sociedade vem alterando a forma como encaramos esse espaço que nos rodeia e é passível de ser vivenciado, nomeadamente no que concerne à busca do «verde». Ao escaparmo-nos cada vez mais das nossas urbes, cada vez mais à procura de um bem-estar em comunhão com a natureza, estamos a responder também a um quotidiano cada vez mais afastado dos espaços rurais e naturais. A nossa circunstância actual, mais global, mais formada e mais informada sobre o que representa a natureza e o seu papel no nosso futuro, está também mais preocupada. A natureza deixou de ser o espaço perigoso que antes urgia conquistar e dominar, para ser um espaço de cuidados. Por outro lado, o espaço natural já não é considerado apenas como produtor de matérias-primas, mas antes também como um espaço com o qual nos identificamos.

«O espaço natural já não é considerado apenas como produtor de matérias-primas, mas antes também como um espaço com o qual nos identificamos.»

O desenvolvimento demográfico e tecnológico do século passado expôs as limitações dos sistemas naturais para a produção e regulação ecológica indispensáveis à vida humana. A sociedade de hoje, mais emancipada e mais informada, está também mais consciente do carácter inalienável de recursos básicos como a água, o solo, a floresta ou a energia, promovidos pelos espaços e sistemas naturais. Foi Abril também que abriu caminho para que a nossa Constituição consagrasse como responsabilidade do Estado a promoção do «… aproveitamento dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica». Como tal, o Estado português assumiu a responsabilidade pela defesa dos valores no que concerne à Conservação da Natureza e Biodiversidade enquanto Património Nacional, bem como à protecção dos seus elementos culturais intrínsecos e identitários como povo.

A humanidade está hoje mais consciente do que nunca da sua dependência do ambiente físico e biológico que a enforma e a forma, numa escala que se amplia à medida dos avanços e das transformações científicas e tecnológicas. É desta relação que emerge a condição humana transformadora que inspira e orienta o progresso da sociedade. A apropriação desigual dos resultados do avanço tecnológico, aprofundada por modelos de exploração dos recursos naturais dissociados dos interesses e do bem-estar das populações, tem sido geradora das injustiças que têm estado na base das convulsões sociais e das revoluções que marcaram o caminho da emancipação do Homem. Este caminho emancipatório requer também uma maior equidade territorial, consubstanciada na disponibilidade de mais espaço público de qualidade e em quantidade acessível a toda a população. Para isso, importa dar coerência às políticas de ordenamento do nosso território de lazer, como espaço também de liberdade e de busca da natureza.

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