Pior é impossível

Há coisas tão estapafúrdias que, embora possam acontecer em todo o lado, parecem mais fáceis de florescer na «província», ou serão preconceitos sem base porque a verdade é que as piores trampolinices desabrocham na capital ou na Invicta.

Os utentes exigem a recolocação dos carris e o avanço das obras no Ramal da Lousã
CréditosPaulo Novais / Agência Lusa

E porque a coisa envolve uma apregoada cidade «da Ciência», há que citar Albert Einstein que dizia que «apenas duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana, e não estou certo quanto à primeira».

Que fique claro que não cometo o erro de pensar que as «asneiras políticas» se pautam pelo baixo QI dos seus intervenientes, subestimando jogos de interesses, jobs for the boys, a corrupção ou ideias megalómanas usadas para desviar a atenções das verdadeiras soluções.

Há, em tudo isso, quase sempre mais táctica e estratégia escondidas, do que ignorância ou pura incompetência. Mas o resultado de alguns jogos de influência demasiadamente incompetentes ou exageradamente «habilidosos» é, por vezes, tão extraordinário, que parece ser a cristalização da estupidez humana a que Einstein se referia.

A questão aqui em causa pode resumir-se assim:

Há cerca de duas dezenas de anos, tendo-se anunciado pretender modernizar os transportes urbanos de Coimbra e a sua centenária ligação ferroviária à Lousã, iniciou-se um processo que acabou por desaguar no arrancamento dos carris em todo o percurso, arrasando casas e esventrando o casco velho da cidade do Mondego, deixando uma espécie de canal de ruínas a rasgar a Baixa como se tivesse havido um tornado ou outra catástrofe natural do género, sem haver ainda uma ideia de como se vai resolver o problema.

Como foi possível acontecer este aberrante resultado que já levou ao gasto inútil de mais de uma centena de milhões de euros em «estudos», tendo ficado tudo pior como se tivesse havido uma guerra?

Na realidade, passaram-se mais de duas décadas e nada de positivo aconteceu. Pelo contrário. Houve enormes perdas de dinheiro em gastos administrativos abusivos, estudos técnicos nunca utilizados e na brutal destruição de infra-estruturas existentes.

Talvez até o mais extraordinário seja que todo este longo e caótico processo possa ser ainda olhado por alguns como um erro difuso e sem culpas fruto de uma mais ou menos compreensível falha de integração e planeamento de um interior menos bem organizado.

A verdade é que há um ror de anos, mais de uma centena, construiu-se uma linha de comboio a ligar Coimbra à Lousã.

Na foto em sépia da inauguração, com muito povo e foguetório, estavam todos satisfeitos porque já não se tinha que ir a pé nem de burrico, era só embarcar e Miranda do Corvo ou Coimbra que passavam a estar ali a um estalar de dedos, ou vice-versa quando a viagem era ao contrário.

Na realidade, nem sei se começaram logo a chamar-lhe «Ramal da Lousã» porque havia a ideia de que a linha iria continuar, cumprindo o plano ferroviário para fomento do interior, como então se dizia nos discursos.

Num presságio de mau-olhado, o percurso acabou por ali, poucos quilómetros a seguir, em Serpins, mas o que havia dava imenso jeito a uma multidão de pessoas e passou a integrar-se nas mais-valias da região quase como um bem natural, um rio ou uma mina.

Durante uma eternidade, primeiro a vapor depois a diesel o comboio da Lousã transportou gente e mercadorias para alegria de todos e satisfação dos que preferiam viver no «campo» trabalhando em Coimbra, fugindo ao preço especulativo das casas ou procurando a inspiração da província profunda, só um pouco mais profunda que a «cidade dos estudantes», porque, como se dizia à laia de piada, «isto dantes» já era assim.

A girar de um lado para o outro, 17 vezes por dia, ao longo dos 36 quilómetros que fazia em menos de uma hora, o comboio da Lousã chegou aos anos 90 com Portugal na «Europa das promessas» dos estádios novos, da EXPO e das privatizações, outra época de ouro do chico-espertismo nacional, com o Ramal a chegar ao milhão de passageiros por ano, e as máquinas e carruagens a precisarem substituição, o que parecia mais fácil e natural do que trazer a Fórmula 1 para o Estoril ou por de novo a flutuar a fragata D. Fernando e Glória.

Ora, nesse tempo, já com o país enfiado na «Europa» dita das patacas, – «o único lugar do mundo onde nunca antes os portugueses tinham desembarcado», nas palavras de Eduardo Lourenço –, com o ar prenhe de privatizações e «novos paradigmas», melhorar os transportes públicos de Coimbra (SMTUC) e electrificar o ramal da Lousã não seria pensar small?

Não seria essa uma ideia de pequenos loosers, condenados ao anonimato da História por estarem a viver abaixo das nossas possibilidades?

Ora, – pensaram as iluminadas mentes do então poder autárquico –, por que não um metro junto ao Mondego como na Big Apple do Hudson, com uma perninha até à Lousã como quem vai até Queens ou ao Bronx?

Por que não aproveitar essa ideia que, até na virginal versão das almas mais empreendedoras, se poderia designar como uma boa «oportunidade de negócio»?

«Enquanto os projectos e estudos da SMM floriam, os transportes dos SMTUC e o Ramal da Lousã eram deixados ao abandono continuando a envelhecer por falta de investimento»

Foi assim que, pela mãozinha municipal, nasceu em 1996 a Sociedade Metro Mondego (SMM), com mais administradores (7) do que índios (5), criada para levar o metro aos longínquos recantos urbanos e subúrbios lousanenses, com os autarcas PS, PSD e CDS a baterem palminhas de modernidade e contentamento.

E enquanto os projectos e estudos da SMM floriam, os transportes dos SMTUC e o Ramal da Lousã eram deixados ao abandono continuando a envelhecer por falta de investimento (no primeiro caso, com corrupção à mistura), preparando o cenário para uma privatização em pacote, seguindo os ditames neoliberais da moda.

A verdade, contudo, é que Coimbra é uma cidade média, sem distâncias urbanas significativas onde, se os transportes públicos clássicos funcionassem bem e estivessem devidamente articulados com as linhas ferroviárias, tudo iria melhorar.

Parecia por isso, a muita gente, como à CDU (nestas coisas sempre ortodoxamente persistente) e também ao Prof. Manuel Tão, um expert em Economia dos Transportes, que, investindo nos SMTUC e modernizando o Ramal da Lousã ficava tudo resolvido com menos tempo e dinheiro, somando outras vantagens.

O Prof. Tão meteu-se até a fazer as contas e achou que com o metro, mesmo à superfície e sem escavar grandes buracos, se iriam gastar mais 260 milhões de euros – 130 milhões dos quais só para o seu troço suburbano do ramal da Lousã, contra 57 milhões, o custo de repor a ferrovia (As Beiras 18-12-14).

Mas nada disso pareceu ser suficiente para um recuo ou uma suspensão no caminho.

De 1996 a 2009 a Metro Mondego não fez nada, a não ser desbaratar (muito) dinheiro na sua própria administração e em estudos com desenhos de pequenos Alfas modernaços a atravessarem a cidade, fazendo os mais ingénuos salivarem de desejo, vendo em sonhos o fabuloso «Sistema de Mobilidade do Mondego».

Entusiasmada com o seu próprio umbigo e sentindo-se bem no seu espaço de conforto, a Metro Mondego decidiu investir pela Baixa Velha de Coimbra, deixando tudo num montão de destroços com o Sistema de Mobilidade ainda «em estudo».

Treze anos depois da sua fundação, no Natal de 2009, o site da SMM decide acrescentar umas linhas poéticas à desgraça:

«Um presente que chega / A lua que sorri /e no céu / Milhões de estrelas iluminam / O nosso Natal e o Ano Novo – O Metro Mondego deseja a todos um Bom Natal e Feliz Ano Novo.»

E a 4 de Janeiro de 2010, logo a abrir o tal Feliz Ano Novo, o Ramal da Lousã fecha as portas e começa a ser desmantelado, deixando os cidadãos de Serpins, Lousã e Miranda do Corvo e Coimbra descalços, sem comboios nem carris.

Como alguns logo disseram, tinham-lhes posto uns patins, ou, com maior rigor, umas camionetas «provisórias», semeando a revolta nos que já não vão em gambozinos.

Assim se chegou a 2017, mais de 20 anos (!) e 140 milhões de euros depois (!), gastos em meia centena de estudos (!) num escândalo que se arrasta envolvendo todos os partidos do antigo «arco do poder», num projecto desadaptado e confuso que, nos últimos anos, mereceu o apoio conceptual da lista de «cidadãos independentes».

Face ao desastre e para animar as hostes, o actual (e antigo) Presidente da Câmara (PS), também Presidente da Associação Nacional dos Municípios, decidiu abrir o ano eleitoral anunciando, logo em Janeiro, o financiamento europeu ao «velho» projecto Metro Mondego, enquanto ainda aguardava as conclusões de um novo estudo (do LNEC)...

Em Junho, pouco antes de férias, com a pompa e circunstância possíveis, metendo ministro e autarcas com o ar embaraçado de caixeiros-viajantes a voltar ao lugar do crime, foi apresentada uma «inovadora» solução já antes esboçada pelo LNEC e anunciada por Passos Coelho e Maduro que, sem ser metro nem comboio, é o… – Metrobus!

O Ramal escavacado, a Baixa escavacada, a CDU a dizer o que sempre disse, o Prof. Tão a barafustar que é caro e não dá, os movimentos cívicos em defesa do Ramal a explodirem de raiva e os autarcas PS, como o Presidente de Miranda do Corvo, a gaguejarem uma dolorosa aceitação – «não corresponde ao que era defendido pela autarquia…[mas], entre nada e esta solução vamos, um pouco contrariados, aguardar a execução do sistema».

De facto, na foto, ficaram todos com ar de quem aguarda a execução…

Convenhamos que pior é impossível.

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