A finalizar uma entrevista – algo tensa – à ministra da Administração Interna, na «21.ª Hora», na TVI, do passado dia 11 (1), a pivô remata, num tom um pouco agreste: «O que lhe posso dizer é que têm sido as televisões a mostrar o que vai acontecendo de Norte a Sul do país e também na ilha da Madeira; a mostrar o drama que milhares de pessoas estão a enfrentar neste momento».
Nos pouco mais de dois minutos anteriores, Constança Urbano de Sousa esforçara-se por furtar-se à insistência para que expusesse a sua opinião sobre uma petição, que então fazia furor nos Media, visando o aumento da pena máxima, para 25 anos, pelo crime de incêndio florestal.
Declinando pronunciar-se de forma «prematura» e fora de uma discussão do «quadro penal como um todo», a ministra procurava investir o tempo na chamada de atenção para os efeitos do excesso reiterado de imagens de incêndios nas televisões. Funcionando como estímulo para incendiários, «faz com que algumas pessoas tenham uma espécie de clique e vão atear fogos».
Entrevistada, em directo, em plena crise dos incêndios estivais (só na primeira quinzena de Agosto, 95 357 hectares de espaços florestais foram percorridos por fogos, ou seja, 92,5% de toda a superfície ardida entre 1 de Janeiro e 15 de Agosto (2), a ministra punha em evidência um tema recorrente nos piores anos de fogos.
«"Ao mostrarem chamas às meias horas, os responsáveis dos noticiários querem informar em liberdade ou querem aumentar a audiência? As duas coisas, mas principalmente a última"»
Por muito insuficientes e inconclusivos que sejam os estudos sobre a natural tensão entre o direito/dever de informar e o risco de um excesso de imagens espectaculares e «sugestivas», e por muito natural que seja a tendência para sobrevalorizar a prevalência da «liberdade de imprensa», o princípio da precaução ética aconselha a que nos escutemos uns aos outros.
«As pessoas violentas gostam de ver conteúdos violentos. O que sabemos nos fogos é que as imagens são excitantes para esses pirómanos e podem ser um reforço», observava, em Agosto de 2013 (o terceiro pior ano desde 2003, com 152 758 hectares queimados (3)), o psicólogo forense Rui Abrunhosa Gonçalves, da Universidade do Minho (4).
Embora não houvesse – como parece continuar a não haver – «provas de que seja a visualização que os leve» a atear fogos, o investigador observava: «As televisões passam demasiado tempo de antena com o tema e muitas vezes passam imagens de chamas para incêndios já extintos».
«Quanto mais ecrãs em chamas, mais chamas nas florestas» (5). No Verão de 2005 (ano com 339 089 hectares ardidos, depois dos 425 839 em 2003 e dos 130 107 em 2004), o crítico de Televisão Eduardo Cintra Torres insistia na necessidade de um acordo de auto-regulação entre os operadores de televisão (gorado no ano anterior) e do debate sobre a selecção eticamente responsável das imagens, os seus efeitos e a sua obsessiva repetição.
«Ao mostrarem chamas às meias horas, os responsáveis dos noticiários querem informar em liberdade ou querem aumentar a audiência? As duas coisas, mas principalmente a última», porque «o share voa mais alto que as labaredas», concluía (6).
Como viria a explicar o director de informação da TVI, José Alberto Carvalho, entrevistado para uma dissertação de mestrado (7), «os incêndios florestais têm os ingredientes todos de noticiabilidade, tem o fascínio da chama, tem o drama das pessoas e tem a incapacidade perante a Natureza». Não admira que a abordagem predominante seja a «de uma informação pós-modernista, centrada na espectacularização do fogo e no drama humano», concluía a autora.
«As televisões podem achar que o filão da espectacularização dá asas às audiências, mas seria certamente mais útil ao desenvolvimento do espírito crítico dos espectadores uma cobertura dos incêndios que privilegie o aprofundamento da reportagem»
A receita mantém-se, traduzida no uso sistemático dos directos em sucessivos noticiários, repetindo relatos em pobres variações entre o «drama» e a pungente pobre, ou mesmo vazio, de conteúdo informativo, mostrando tantas vezes repórteres limitados, pelo modelo «jornalístico» vigente, a marcar o ponto – e quase a sucumbir à exaustão de longas horas e extensos dias de «cobertura» com pouco ou nada a acrescentar.
As televisões podem achar que o filão da espectacularização dá asas às audiências, mas seria certamente mais útil ao desenvolvimento do espírito crítico dos espectadores uma cobertura dos incêndios que privilegie o aprofundamento da reportagem, que recoloque o jornalista na sua função de mediador e de escrutinador e não de simples e acrítico franqueador de janelas de «actualidade».
Observar, mostrar pontos de vista diferentes, analisar, contextualizar, explicar os acontecimentos, como funciona o dispositivo de socorro, verificar e confirmar as falhas e constrangimentos, assim como problematizar as causas sociais e políticas do fenómeno (desordenamento, abandono do mundo rural, etc.), não é a mesma coisa que limitar-se a mostrar chamas e desesperos «minuto a minuto».
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