A regra da excepção

O Mar da China Meridional é um bom e actual exemplo de como a política do excepcionalismo norte-americano representa uma ameaça constante para a paz mundial.

O Mar da China Meridional é um bom e actual exemplo de como a política do excepcionalismo representa uma ameaça constante para a paz mundial.
CréditosIlustração para AbrilAbril / AbrilAbril

«Este é o maior país no mundo». Palavras de Michelle Obama, a Primeira Dama dos EUA, na Convenção do Partido Democrata, num discurso muito elogiado. «Não ficamos em segundo lugar contra ninguém. Somos donos da linha de chegada». Palavras do Vice-Presidente Joe Biden. A ideologia do Excepcionalismo Americano esteve bem patente na recente Convenção do Partido Democrata, que nomeou Hillary Clinton como seu candidato presidencial: o carácter singular dos EUA, a sua grandeza e superioridade, o bastião e paladino da liberdade e democracia. Hillary exprimiu estas ideias claramente no seu discurso sobre política externa a 6 de Junho: «A verdade é que não existe um país que nos rivalize. Não é apenas que tenhamos o maior sistema militar ou que a nossa economia seja maior, mais duradoura, mais empreendedora que qualquer uma no mundo. É também que os Americanos trabalham mais, sonham maior – e nunca paramos de tentar fazer o nosso país e o mundo melhor.»

«A pretensa excepcionalidade aliada a uma excepcional força faz dos EUA o bully do mundo»

Seria fácil demonstrar como os EUA não são efectivamente os primeiros em tantos índices de desenvolvimento económico ou social, ou como o seu sistema político é distorcido pelo poder financeiro. Porém, os EUA são de facto líderes de longe numa área: na despesa militar, e no tamanho e distribuição global das suas forças armadas. E é este facto que impede que se descartem estas tiradas como sendo mera retórica patriótica para galvanizar o eleitorado. A pretensa excepcionalidade aliada a uma excepcional força faz dos EUA o bully do mundo, agindo para manter a sua posição de hegemonia enquanto cegamente convencido que tudo o que faz é bom para o mundo. E crê que tem não só legitimidade para intervir, como tem uma obrigação, uma responsabilidade de proteger (R2P), doutrina criada por Clinton enquanto Secretária de Estado e aplicada na Líbia. Clinton afirmou naquele mesmo discurso: «Se a América não liderar, deixa um vácuo – e isso causará o caos, ou outros países irão se apressar para preencher o vazio. Então, serão eles que tomarão as decisões sobre as vossas vidas, empregos e segurança – e confiem em mim, as suas escolhas não serão em nosso benefício.»

O Mar da China Meridional é um bom e actual exemplo de como a política do excepcionalismo representa uma ameaça constante para a paz mundial. Desde o final da Segunda Guerra Mundial que os EUA mantêm uma presença militar significativa na Ásia Oriental, contando actualmente com bases no Japão (incluindo 32 bases na Ilha de Okinawa, ocupando um quarto da ilha, uma presença muito contestada pela população local), Coreia do Sul (onde ainda este ano os habitantes de Seongju protestaram durante duas semanas contra a instalação de uma nova base dos EUA), Filipinas, Tailândia e Taiwan, mais as bases nos seus territórios (Guam e Havaí), e acessos em Singapura, Austrália e Nova Zelândia. A Frota do Pacífico dos EUA inclui 41 submarinos nucleares e cerca de 70 navios (de um total de 272 espalhados pelo mundo). Em 2011, Obama anunciou a política de «Pivot para a Asia», uma deslocação de mais recursos para a arena asiática, incluindo até 60% dos recursos da Marinha, parte da estratégia para conter o principal rival asiático, a China, assim como a região oriental do outro grande rival, a Rússia, cuja fronteira ocidental os EUA também procura cercar.

«Desde o final da Segunda Guerra Mundial que os EUA mantêm uma presença militar significativa na Ásia Oriental»

Um dos pontos de contenção é o Mar da China Meridional, uma das regiões de maior tráfego marítimo no mundo, incluindo um terço do transporte marítimo de crude e metade do de gás natural, e uma fonte de hidrocarbonetos e recursos piscatórias. Dada a sua riqueza e centralidade, em particular desde a descoberta de depósitos de hidrocarbonetos, nos anos 70, tem sido um foco de disputa territorial, com o Brunei, as Filipinas, a Malásia, Taiwan e o Vietname a juntarem-se à China na reclamação da zona marítima, e os EUA a insistirem no policiamento da região que considera como águas internacionais. Para darem peso à sua causa, aqueles países têm-se apropriado de dezenas de ilhas e, desde 2012, a China tem construído ilhas, depositando sedimento sobre recifes, e nelas construído portos, pistas de aterragem e bases militares.

Em Julho, um tribunal internacional determinou que ilhas disputadas pelas Filipinas e a China são legítimo território daquele país, mas a China recusou a decisão não vinculativa. Num encontro dos dez países que constituem a Associação das Nações do Sudeste Asiático, foi possível chegar a um acordo para desfazer tensões, numa resolução que não específica a China nem se refere à decisão do Tribunal de Haia, e que resolve pôr fim à ocupação de ilhas, respeitar a liberdade de navegação, resolver disputas pacificamente através de negociações e elaborar um Código de Conduta. Nada disto porém satisfaz os EUA, cuja prioridade é manter acesso sem restrições na região e cuja hegemonia local está a ser desafiada por uma crescente presença militar chinesa. A China anunciou que iria enviar submarinos equipados com armas nucleares pela primeira vez para a região, argumentando a sua necessidade como retaliação e resposta a acções militares dos EUA, em particular ao sistema de mísseis em construção na Coreia do Sul e os novos misseis balísticos hipersónicos que podem atingir qualquer lugar no mundo em menos de uma hora.

«Embora uma guerra premeditada entre a China e os EUA não seja provável, a simpatria das suas forças armadas no Mar da China Meridional, incluindo armas nucleares, constituiu um sério risco»

Embora uma guerra premeditada entre a China e os EUA não seja provável, a simpatria das suas forças armadas no Mar da China Meridional, incluindo armas nucleares, constituiu um sério risco, pois um acidente ou mal-entendido pode conduzir a uma escalada. Que esta possibilidade é de se considerar fica demonstrado pelos estudos encomendados pelas forças armadas dos EUA a vários think tanks, incluindo mais recentemente à RAND Corporation. O seu relatório prevê que no caso de um conflito até 2025 os EUA já não podem estar certom de que uma guerra conduza a uma vitória decisiva, embora as perdas para a China excedessem as dos EUA. Depois de 2025, os dois países estarão mais próximos em termos de força e tecnologia, mas mesmo então a China não pode estar confiante numa vantagem militar, o que sugere uma guerra prolongada, destrutiva e inconclusiva. A China reagiu ao relatório da RAND dizendo que serão prudentes sobre ir para a guerra, mas caso esta seja despoletada terá mais determinação que os EUA para lutar até ao fim e poderão incorrer mais baixas que os EUA.

Misturem-se visões de excepcionalismo com ambições hegemónicas, retórica inflamada com tropas, navios, aviões e armas nucleares num mar estratégico para as maiores economias do mundo e temos receita para o desastre.

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