António Avelãs Nunes

República dos Galifões

Trago aqui estas memórias, porque este retrato, feito em pinceladas leves, é, creio eu, o retrato do quotidiano do Portugal sob a bota de Salazar.

Crise Académica de 1962, Lisboa.
Créditos

1. Vou partir da minha experiência pessoal para tentar explicar como chegou à luta política e ao movimento associativo estudantil, em meados dos anos 1950, um jovem como eu, um rapazinho pobre, neto de moleiro e de pastor (ambos analfabetos) e filho de um alfaiate e uma costureira (neste caso, ambos com cinco anos de escolaridade básica), nascido numa cidadezinha de província (no interior rural da Beira Alta, a meio caminho entre Coimbra e Salamanca).

Como em Pinhel não havia ensino secundário para além do 5.º ano, tinha quinze anos quando saí da minha terra para vir frequentar o 3.º ciclo em Coimbra, porque foi aqui, no Liceu D. João III, que o Diretor do Colégio me conseguiu almoço gratuito na cantina do Liceu e uma bolsa de 3 mil escudos anuais da qual passei a viver.

Pinhel teria então uns 3000 habitantes, que viviam em regra pobremente, salvo uns poucos membros da aristocracia rural, já bastante decadente e a perder estatuto económico e social. Mas ainda com poder e estatuto suficientes para conseguir que a piscina municipal abrisse de manhã (só no verão, claro) apenas para a juventude dessa pequena elite, abrindo da parte da tarde para o povo em geral (com o qual os membros da elite não se misturavam…), muito pouco, porque tinha de se pagar entrada.

A agricultura (quase em moldes feudais) era a atividade dominante. O obscurantismo e a pasmaceira marcavam o 'clima' que se respirava. Na casa dos meus pais (como na maioria das casas da minha terra) não havia água canalizada, nem ligação ao saneamento básico, nem eletricidade.

2. Neste ambiente, alguns factos marcaram a minha vida e ajudaram a formar a minha visão do mundo.

A oficina de alfaiate do meu pai ser fronteira à casa onde viviam os pais de outro pinhelense que era, na altura, funcionário do PCP na clandestinidade (o escultor e pintor José Dias Coelho, que viria a ser assassinado pela PIDE, à queima roupa, numa rua de Lisboa, em Dezembro de 1961) e pais também da Maria Adelaide Dias Coelho, casada com outro dirigente comunista na clandestinidade (Carlos Aboim Inglez, de que ouvia falar de quando em quando). Dada a situação dos pais, a Terezinha, filha de José Dias Coelho e de Margarida Tengarrinha vivia com os avós em Pinhel e passava horas na oficina do meu pai a fazer desenhos. A luta contra o fascismo estava presente, desta forma, no meu dia a dia, ainda que eu pudesse não ter, na altura, clara consciência disso.

«Mais amargas são as lembranças dos dias em que ia para a porta da padaria (antes de ir para a escola, mesmo no inverno, com temperaturas negativas) na esperança de poder comprar o pão a que tínhamos direito, sendo que, por vezes, já não havia pão quando chegava a hora de ser atendido.»

Por outro lado, a Espanha ficava ali muito perto e as consequências da Guerra Civil fizeram-se sentir nas terras da fronteira. Eu nasci em 1939. Mas conheci o Julián, um espanhol que se refugiara por ali, vivendo pacatamente de uns trabalhos de eletricista. As pessoas diziam, em surdina, que ele tinha fugido da Guerra… Ao invés, havia um 'senhor' da tal aristocracia arruinada, filho de um general salazarista, que tinha combatido como voluntário nas hostes franquistas, e que alguns apontavam como herói… O povo de Pinhel (o meu povo), porém, não o levava muito a sério, porque nunca se lhe conheceu uma profissão digna desse nome.

As sequelas da Guerra Civil na Espanha e da 2.ª Guerra Mundial acentuaram as dificuldades económicas de um país atrasado e refém do fascismo como era o Portugal salazarista. O racionamento vigorou durante vários anos. Guardo até hoje na minha memória a modéstia da vida em casa dos meus pais, mesmo no que toca à alimentação. E recordo-me vivamente da caderneta com as senhas picotadas do racionamento, que davam direito, semana a semana, a uma determinada dose de arroz, de massa, de açúcar, de bacalhau, de azeite…, que eu ia com a minha mãe «aviar» na loja do Sr. Ernestinho.

Mais amargas são as lembranças dos dias em que ia para a porta da padaria (antes de ir para a escola, mesmo no inverno, com temperaturas negativas) na esperança de poder comprar o pão a que tínhamos direito, sendo que, por vezes, já não havia pão quando chegava a hora de ser atendido. E eu tinha de ir para a escola com uma caneca de 'café de cevada'. Poucos anos depois, a minha mãe começou a fazer o pão em casa, que era cozido num forno comunitário. Era um pão de centeio de que ainda hoje tenho saudades. Só se comia alguns dias depois de cozido, porque «o pão assente funde mais», dizia a minha mãe, sabendo bem do que falava.

Mas vi muitas vezes os trabalhadores rurais jantar (era o nome da refeição do meio dia) um pedaço de pão centeio e um tomate ou uma cebola que colhiam na horta (na melhor das hipóteses, um pouco de carne gorda de porco, que tinha sido cozida para temperar o caldo de batata, couve e feijão). E à noite, quando chegavam a casa, a ceia era uma malga de caldo, que já tinha sido, manhã cedo, o seu almoço.

«As sequelas da Guerra Civil na Espanha e da 2.ª Guerra Mundial acentuaram as dificuldades económicas de um país atrasado e refém do fascismo como era o Portugal salazarista.»

A vivência da minha família não andava longe da vida da grande maioria das famílias portuguesas, muitas, tenho a certeza, vivendo ainda muito pior do que nós. Trago aqui estas memórias, porque este retrato, feito em pinceladas leves, é, creio eu, o retrato do quotidiano do Portugal sob a bota de Salazar.

Já veem como entrou a política na minha vida. E compreendem que seria preciso que eu perdesse a memória ou traísse as minhas origens para deixar de estar do lado dos trabalhadores e dos pobres na luta de classes.

3. Um primo meu era advogado em Pinhel. Eu sabia (porque em minha casa se falava disso) que ele tinha sido preso pela PIDE no último ano do Curso de Direito em Coimbra, por ser militante do Partido Comunista. Era um homem respeitadíssimo, como advogado e como pessoa. E eu adorava esse meu primo-irmão-amigo-camarada.

Nas minhas férias grandes ia para o escritório dele (onde trabalhava outro militante do PCP), para poder escrever à máquina e aprender essa 'arte'. Para além das conversas a que tinha acesso (e que ouvia embevecido), podia ler o jornal República, e ia espreitando um ou outro livro 'proibido' que ele tinha nas estantes do escritório. Devo ao meu primo Mário Canotilho (é dele que estou a falar) o exemplo de uma vida digna, de alguém que nunca traiu as suas origens e que morreu comunista e pobre, apesar das suas enormes qualidades como advogado, dos mais respeitados do seu tempo. E sinto um orgulho enorme pela amizade e consideração com que sempre me tratou.

O Mário não gostava muito de falar dele. Mas, um dia, veio à baila o nome do advogado Francisco Salgado Zenha. E o Mário disse-me então que tinha sido colega dele em Coimbra, que tinham feito política juntos e que eram amigos desde então. Não me disse que ele e o Zenha eram, então, militantes do PCP com responsabilidades de direção nas organizações universitárias do Partido (eu vim a saber isso algum tempo depois). Mas falou-me das lutas dos estudantes e da D-G da AAC, presidida por Salgado Zenha, concluindo que ambos acabaram por ir parar às prisões salazaristas. Contou-me que a D-G foi demitida cinco meses depois da tomada de posse, por se ter recusado (cumprindo deliberação da Assembleia Magna) a comparecer numa cerimónia de homenagem a Salazar, em maio de 1945.

Apurei mais tarde que a lista encabeçada por Salgado Zenha foi eleita em Assembleia Magna em 13.12.1944, tendo tomado posse, após homologação ministerial, em 13.1.1945. Além de Salgado Zenha (em cujo escritório concluí o meu estágio para a advocacia), vim a conhecer, mais tarde, outros elementos dessa DG: Manuel Camões Costa e Arquimedes da Silva Santos, todos, então, militantes do PCP.

E apurei também que na tomada de posse da comissão administrativa nomeada pelo governo, o reitor tratou os membros da D-G da AAC de forma desrespeitosa, acusando-os de serem «um misto de garotos malcriados e de sinistros agentes subversivos» e faltando à verdade dos factos.

Zenha respondeu ao reitor num opúsculo famoso (Reposição de Factos), intimando-o a fundamentar as afirmações que fizera; caso contrário, advertia o Presidente demitido da DG-AAC, tratando-se de difamação, «aos tribunais comuns compete a resolução destes casos». Terminava assim a resposta ao reitor (que eu ainda conheci como Reitor da Universidade de Coimbra): «V. Ex.ª teve uma comenda, eu fui demitido». Como quem diz: cada um recebe do poder fascista aquilo a que tem direito!  

Quando Francisco Zenha foi preso pela PIDE, a Academia desencadeou um forte movimento de solidariedade com o seu Presidente e de protesto contra a sua prisão arbitrária. A Assembleia Magna decretou Luto Académico, com a bandeira da AAC a meia haste na respetiva sede.

As lutas dos estudantes contra o fascismo não começaram em 1969, nem em 1962. Começaram muito antes, em circunstâncias particularmente difíceis.

4. Já em Coimbra, comecei a ouvir falar de acontecimentos marcantes, em Portugal e no estrangeiro, alguns ocorridos naqueles anos, outros um pouco antes.

Como estudante do liceu, tive a oportunidade (proporcionada pelo meu Professor de Português, que era um homem de direita, mas um ótimo professor) de estudar pela História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes. Comecei a compreender como olhavam o mundo e como procuravam compreendê-lo estes dois professores de formação marxista (dizia-se, em surdina, que eram ambos militantes do PCP; e era verdade, como mais tarde confirmei). Tive também o privilégio de ser aluno de Filosofia do Dr. Alberto Martins de Carvalho, um homem de extraordinário saber, de formação marxista.

Enquanto estudante liceal, vivi em Coimbra a mobilização dos estudantes das universidades portuguesas contra o famoso decreto-lei 40.900 (12.12.1956), que queria amordaçar ainda mais o movimento associativo estudantil. Ainda se falava dele quando fui Diretor da Via Latina, altura em que li os comentários de António Sérgio no 7.º Caderno da Antologia Sociológica (1957), justamente críticos da atitude dos dirigentes associativos de Coimbra.

«Ouvi falar das greves que, apesar de ilegais e fortemente reprimidas, se iam sucedendo no sul do País.»

Politicamente de direita, os dirigentes da AAC ocuparam-se apenas de defender a tradição coimbrã, admitindo mesmo que poderiam justificar-se, para os meios académicos lisboeta e portuense, as medidas constantes daquela legislação fascista, porque o meio estudantil de Lisboa e do Porto é diverso do de Coimbra. As coisas mudaram em 1960/1961: a solidariedade e a ação concertada das três academias do País passaram a ser os princípios orientadores da nossa intervenção.

5. Foi em Coimbra que comecei a ouvir falar de acontecimentos marcantes, em Portugal e no estrangeiro, alguns ocorridos naqueles anos, outros um pouco antes.

Ouvi falar do campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde) e de vários homens de esquerda (a maior parte comunistas) que para lá foram enviados. Regressaram alguns a Portugal em 1946, na sequência da derrota do nazi-fascismo, mas o último dos que lá ficaram (Francisco Miguel, dirigente comunista) só foi transferido para uma cadeia portuguesa em 1953. Algum tempo depois, conheci bem o Alberto Januário (comunista e cidadão exemplar, de quem tive a honra de ser amigo e admirador), filho de um dirigente anarquista (o sr. Arnaldo Januário), que o fascismo matou (como tantos outros) no campo da morte lenta.

Ouvi falar da demissão de vários professores universitários por motivos políticos, entre os quais Aurélio Quintanilha e Mário Silva (que tinha trabalhado com Madame Curie), com o qual me cruzei várias vezes nas ruas de Coimbra.

Ouvi falar das greves que, apesar de ilegais e fortemente reprimidas, se iam sucedendo no sul do País, pela melhoria de salários e pela jornada de oito horas de trabalho (em vez do trabalho de sol a sol, como era corrente nos campos).

Ouvi falar do assassinato, pelas forças policiais, de Catarina Eufémia, grávida de seis meses, quando encabeçava um grupo de grevistas no Alentejo do latifúndio. Como dizem os versos de Vicente Campinas, musicados e cantados por Zeca Afonso, «Quem viu morrer Catarina/Não perdoa a quem matou.»

6. Em 1958, razões da minha vida pessoal levaram-me a participar em todas as manifestações de rua e em todos os comícios integrados na campanha do General Humberto Delgado em Coimbra. A minha inserção na vida da cidade continuou depois de várias formas, aprendendo na escola de cidadania que era, nessa altura, o Largo da Sé Velha, o Café Oásis e o Ateneu de Coimbra, onde convivi com muita gente não universitária empenhada na luta anti-fascista.

A guerra colonial alastrava nas colónias portuguesas, e muitos jovens iniciaram o caminho do exílio para não combaterem essa guerra injusta e contra o sentido da história. Em Junho/Julho de 1961 desertou um grande Amigo meu, o António Marques dos Santos (que tinha sido a alma da Via Latina nesse ano letivo de 1960/61): só eu e a irmã dele (e, certamente, as estruturas clandestinas do PCP, de que era militante) soubemos, na véspera, que ele ia dar o salto. O Marques dos Santos foi das pessoas mais íntegras e mais generosas que conheci.

Já estava em Coimbra quando tive conhecimento, por papéis que passaram pelo escritório do meu primo Mário (em cópias dactilografadas a papel químico), de terem sido fuzilados alguns trabalhadores portuários em Bissau e de terem sido lançados ao mar a partir de aviões alguns trabalhadores africanos de S. Tomé e Príncipe (1959).

Tive conhecimento da fuga do Forte de Peniche de vários dirigentes comunistas, entre os quais Álvaro Cunhal (Janeiro de 1960).

Exultei, como todos os anti-fascistas, com a tomada do navio Santa Maria, por um grupo comandado pelo Capitão Henrique Galvão, que viria a ser acolhido no Brasil, onde aportou, frustrada a tentativa de desembarcar em Angola.

Assisti, desesperado, ao início da guerra colonial em Angola (1961) e respirei de alívio por quase não ter morrido ninguém quando a chamada «Índia portuguesa» foi libertada por tropas da União Indiana, apesar da palavra de ordem de Salazar para os poucos militares que lá se encontravam («mortos ou vitoriosos»).

Em 4.12.1961 oito dirigentes do PCP fugiram do Forte de Caxias, em pleno dia, no Mercedes blindado que Hitler tinha oferecido a Salazar. Soube bem esta derrota humilhante do ditador e do seu aparelho repressivo.

Alvorocei-me com a notícia da tentativa de insurreição levada a cabo por militares e civis anti-fascistas com o assalto frustrado ao quartel de Beja (1.1.1962).

7. Mas é claro que a vida dos jovens portugueses daquele tempo foi também marcada por acontecimentos internacionais que anunciavam vitórias das forças progressistas.

Na sequência da Conferência de Bandoeng (1955), foi-se desenvolvendo a luta dos povos coloniais pela independência. As ações de guerrilha começaram em Angola em 1961. Em 1954 tinha começado a Guerra da Indochina, seguida da Guerra do Vietnam, após a derrota da França. Depois de uma guerra duríssima, a Argélia ascendeu à independência em 1962.

Soube-nos bem a vitória do Egipto de Nasser (que nacionalizara o Canal de Suez), com o apoio da URSS, sobre a coligação Inglaterra-França-Israel (1956).

Foi com enorme alegria que recebemos a vitória da guerrilha em Cuba (1959).

Foi com deslumbramento que acompanhámos a notícia do envio para o espaço de um satélite soviético com a cadela Laika lá dentro, e foi com espanto e exaltação que vivemos os dias do primeiro voo de uma nave espacial tripulada por um homem (Yuri Gagarine, em Abril de 1961).

Ainda em 1961, sofremos e revoltámo-nos com a intervenção militar americana em Cuba (invasão da Baía dos Porcos), apesar da derrota das forças americanas, e sangrámos com o assassinato de Patrice Lumumba no Congo (ex-belga).

«Na minha modéstia, foi este o contributo possível na luta contra o fascismo, perfeitamente consciente da razão do velho Brecht quando nos avisava: «se não participares no combate, vais partilhar a derrota.»

8. «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar», diz o poema de Sophia de Mello Breyner. Eu vi, ouvi e li. Não podia ignorar. Pois bem. Foi no ambiente que descrevi e pelo imperativo que cada vez mais se me impunha de fazer alguma coisa na luta contra o fascismo que, no último ano do meu curso, resolvi aceitar o desafio que me foi apresentado pelo meu Colega e meu Amigo António Taborda no sentido de aceitar ser Diretor da Via Latina, que a D-G queria autonomizar, por entender que o Presidente da DG – tradicionalmente o Diretor da Via Latina – não tinha muito tempo para lhe dedicar. Foi por esta via que iniciei um ano de participação ativa no movimento associativo estudantil, assumindo que isso poderia implicar a perda de ano.

Na minha modéstia, foi este o contributo possível na luta contra o fascismo, perfeitamente consciente da razão do velho Brecht quando nos avisava: «se não participares no combate, vais partilhar a derrota.»

Na Via Latina, aprendi o significado da censura (para fazer sair cada número do jornal era preciso reunir material que dava para três números: a censura cortava o resto, já em provas tipográficas, o que nos custava muito dinheiro) e conheci o ambiente das tipografias, onde grande parte dos trabalhadores manifestavam abertamente a solidariedade com a nossa luta.

«A guerra colonial era a nossa principal preocupação. Mas nunca conseguimos publicar uma só linha sobre este assunto.»

Apesar do garrote a que estávamos sujeitos, a Via Latina manteve-se financeiramente, porque tínhamos uma rede de antigos estudantes de Coimbra por todo o País, que recebia exemplares e os vendia em bom número. Também por esta razão (a nossa contestação chegava a toda a parte) a Via Latina (entretanto proclamada Jornal de Todos os Estudantes Portugueses) era, para o governo fascista, um inimigo a abater: foi suspensa, por tempo indeterminado, em maio de 1962.

A guerra colonial era a nossa principal preocupação. Mas nunca conseguimos publicar uma só linha sobre este assunto. Salvo (no número de novembro/1961) a notícia da morte de dois colegas nossos em Angola. Exaltavam-se as qualidades intelectuais e morais dos colegas, falava-se das circunstâncias dramáticas em que a sua morte tinha ocorrido e dizia-se que ela tinha causado a maior emoção em toda a cidade.

O capitão da censura não achou nada de subversivo naquela prosa e autorizou a publicação do texto. Mas os 'chefões' da censura em Lisboa não gostaram nada que ele fosse publicado e chamaram todos os nomes ao pobre capitão por não ter 'morto' a notícia a golpes de lápis vermelho.

O Reitor convocou-me ao gabinete para me criticar duramente pela publicação de tal texto: era inadmissível que, na circunstância, não se dissesse uma palavra para glorificar aquele jovem que heroicamente tinha dado a vida pela Pátria, e era ainda menos admissível que, quando o melhor da juventude portuguesa se batia em África pela defesa da integridade da Pátria, a Via Latina se colocasse ao lado dos que, num claro gesto de traição à Pátria, defendiam o abandono das «províncias ultramarinas» (assim chamava o salazarismo às colónias portuguesas).

Sabíamos que era isto que eles queriam ver escrito na Via Latina; nós dissemos o contrário, da forma que pudemos. Diante do Reitor, fiz-me de inocente, é claro, e disse-lhe que, perante a notícia daquela morte, tínhamos feito o que ele próprio (reitor) faria: lamentar a morte do colega falecido…

9. Desde o início do ano, trabalhámos, consciente e organizadamente, para conseguir um momento alto de tensão no confronto com o Governo.

Num quadro de conflito já bastante acentuado, conseguimos fazer aprovar em assembleia de quartanistas (que então decidia sobre a Queima das Fitas) uma proposta da DG no sentido de não fazer a Queima como forma de luto académico, em protesto contra a violência governamental.

Assegurada a vitória, apesar de sermos acusados de receber dinheiro de Moscovo para garantir as dívidas entretanto contraídas, a nossa preocupação maior foi a de tirar partido político deste gesto. A Via Latina já não conseguiu dar a notícia, mas ela espalhou-se pelo País, porque de todo o lado vinha gente à festa dos estudantes. Em Coimbra, preocupámo-nos com o trabalho político junto dos comerciantes (prejudicados com a nossa decisão): organizámos pequenos grupos encarregados de os contactar para explicar as nossas razões. Fomos, em geral, muito bem recebidos e houve mesmo alguns comerciantes que deram dinheiro para ajudar a pagar as dívidas.

Várias Secções da AAC suspenderam a atividade. Tentámos isto mesmo junto das Secções desportivas que participavam em campeonatos oficiais, tentando que elas se retirassem das competições. Não invocávamos razões desportivas, mas razões políticas: lançar a confusão e dar a conhecer ao País que os estudantes de Coimbra estavam em luta contra o fascismo. Lembro-me de que a equipa de basquetebol abandonou o campeonato da 1.ª divisão (o que, se não erro, aconteceu ainda com outras equipas, talvez as de hóquei em patins, andebol e voleibol…).

A DG tentou abordar esta possibilidade junto da equipa de futebol, e encarregou-me dessa ação diplomática. Propus que o Óscar Monteiro me acompanhasse nessas tarefas, porque nós sabíamos que havia jogadores da equipa principal comprometidos com os movimentos de libertação de Angola e Moçambique (Chipenda, Araújo, França e José Júlio) e sabíamos que o Óscar estava bem por dentro do que se passava em Coimbra nesse terreno.

A nossa preocupação foi a de não expor esses nossos colegas por razões que não eram a 'guerra' principal deles, prejudicando eventualmente a sua atividade na organização da luta anti-colonialista. As conversações (intermediadas pelo capitão Mário Wilson) estavam bem encaminhadas, mas o governo nomeou uma comissão administrativa para a Secção de futebol, comandada por um oficial do exército, e 'sequestrou' os jogadores, concentrados à força no Buçaco, dias antes de um jogo em Coimbra com o Sporting (depois de, na semana anterior, ter adiado, contra a vontade das duas equipas, o jogo Beira Mar-AAC, com receio de que a nossa equipa não comparecesse).

No dia desse jogo com o Sporting, Coimbra parecia uma cidade ocupada: dentro e fora do estádio havia centenas de polícias e GNR, para além dos pides espalhados no meio dos espectadores; à entrada, até as carteiras das meninas foram revistadas, o que, na altura, foi um escândalo. A nossa equipa entrou em campo de capa traçada. Todo o País teve conhecimento do que se passou, apesar da censura.

Algum tempo depois, os jogadores que refiro atrás, bem como o Óscar Monteiro, deram o salto, a caminho da guerrilha. O França chegou a ser Chefe de Estado Maior das Forças Armadas de Angola; o José Óscar Monteiro foi figura de relevo na Frelimo e no Governo moçambicano durante a presidência de Samora Machel.

10. Creio ser incontestável a presença de estudantes comunistas nas lutas e nas estruturas associativas e nas lutas estudantis ao longo de gerações, durante o fascismo.

Cito de memória alguns exemplos (só de Coimbra e meus conhecidos – e faltam muitos, de certeza). É o caso de Mário Canotilho e Francisco Salgado Zenha, Manuel Camões, Arquimedes da Silva Santos (1944-1945); de Alberto Vilaça, Joaquim Santos Simões e Antero Abreu (DG-AAC de 1954); de Manuel Louzã Henriques, Germano Ferreira da Costa, António Barbosa, Duartina Morais Cabral, Manuel Alegre, José Lopes de Almeida, António Marques dos Santos, José Augusto Silva Marques, Pedro Lemos e Luís Lemos, meus contemporâneos enquanto estudante; entre 1962 e 1965, marcaram presença o Eurico Figueiredo e o Valentim Alexandre, vindos de Lisboa na sequência de expulsão da Universidade de Lisboa; pouco depois, recordo o José Barros Moura (apontado publicamente, se posso dizê-lo assim, como o rosto e a voz do PCP), o João Amaral e o Carlos Baptista (em 1965, quando os estudantes recuperaram a AAC e em 1969), e, se não erro, o Osvaldo de Castro e a Fernanda da Bernarda (da DG de 1969).

Sei bem que não foram apenas os estudantes comunistas que participaram nestas lutas. Salvo o José Lopes de Almeida, creio que não havia outro comunista nas DGs de 1960/61 e de 1961/62. Por esta altura, havia muitos jovens que militavam nas Juntas Patrióticas e vários outros que desenvolviam atividade política, incluindo jovens católicos (talvez mais em Lisboa de que em Coimbra).

Se refiro estes nomes não é, portanto, para afirmar – e muito menos para insinuar – que só os comunistas se envolveram nas lutas académicas. O que pretendo sublinhar é que a generalidade dos estudantes portugueses chegou ao movimento associativo estudantil por razões políticas e participou nestas lutas durante os 48 anos de fascismo, porque estas eram uma forma de luta política.

Mesmo os jovens mais empenhados politicamente e organizados nas fileiras do PCP para um trabalho político mais amplo sentiam que as universidades e as associações académicas eram um terreno de luta anti-fascista que era necessário não descurar. Os estudantes mais empenhados na vida associativa estudantil eram também os mais envolvidos e mais organizados na luta política geral contra o fascismo.

É claro que não faltavam razões, estritamente académicas, para a nossa contestação (uma universidade conservadora, elitista, não democrática, instrumento do poder fascista, ela própria sujeita ao poder fascista, instalações inadequadas, falta de professores, métodos pedagógicos antiquados, etc., etc.).

«Se não participas do combate, vais partilhar a derrota.»

BERTOLT BRECHT

E nós denunciámos tudo isto, mas como pretexto para denunciar o fascismo e as suas políticas. Creio que todos entendíamos ser nosso dever participar nas lutas associativas e todos acreditávamos que estas lutas eram importantes. Mas creio que muitos de nós – e por mim falo – tínhamos perfeita consciência de que o fundamental eram as lutas dos trabalhadores que acima refiro, sobretudo nos campos do Alentejo e na cintura industrial de Lisboa e da margem sul do Tejo, bem como as lutas dos intelectuais (dos escritores, dos pintores, da gente do teatro, dos cantores…). Foram estas lutas que nos abriram as portas que Abril abriu.

Por mim, limitei-me a levar a sério o aviso de Bertold Brecht: «se não participas do combate, vais partilhar a derrota.» Fui um simples soldado raso. Parafraseando Fernando Pessoa, «sei bem que não sou ninguém.» Sei bem que «a realidade/ Sempre é mais ou menos/ Do que nós queremos./ Só nós somos sempre/ Iguais a nós próprio Foi isto que aprendi enquanto estudante de Coimbra: procurar ser sempre igual a mim próprio. Aprendi-o na Universidade da Sé Velha; aprendi-o com professores da Universidade: Orlando de Carvalho, Paulo Quintela, Teixeira Ribeiro, Luís Albuquerque; aprendi-o com colegas que se deram à luta por inteiro e acabaram no exílio e nas prisões fascistas.

Na minha ótica, o motor da História é a luta de classes. E tenho para mim que o verdadeiro herói da nossa história coletiva é o povo «do arado e do remo», o povo «que não cabe nas crónicas» (são palavras de Torga), gente que tem – segundo o retrato de Sophia – «O rosto desenhado/ Por paciência e fome», «gente ignorada e pisada/ Como a pedra do chão/ E, mais do que a pedra, humilhada e calcada», «gente cujo rosto/ às vezes luminoso/ E outras vezes tosco/ Ora me lembra escravos/ Ora me lembra reis.»


Intervenção na sessão de encerramento de um Encontro organizado pela República dos Galifões (9-11 de Março/2017) para recordar a chamada Crise Académica de 1962 em Coimbra, a propósito dos 70 anos da República.

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 

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