Ninguém pretende tirar a ninguém o gosto de gostar de Meryl Streep, a actriz. Primeiro ponto no i. Outro ficará logo posto ao afirmar que à senhora só fica bem usar os seus tempos de antena para defender direitos e garantias – missão nobre – e dizer o mal que bem entender de Trump – acaso poderá um democrata simpatizar com tal figura e com a administração que tem vindo a nomear? Agora, daí a entender que a actuação de Streep, na gala dos Golden Globe Awards, foi um acto de enorme coragem e grandeza vai uma distância grande e cheia de interrogações.
A actriz aproveitou a ocasião para trazer à liça a importância do trabalho da imprensa na sua relação com o poder – e não há nada que se lhe aponte; abordou o tema da imigração a partir do seu meio, o que também não tem nada de mal em si; e recordou a conduta inteiramente repugnante de Trump – sem o nomear – perante um jornalista deficiente, durante a campanha eleitoral, o que também está muito certo.
As notícias, com o registo das imagens do momento incluído, correram velozes, as palavras «corajosas» de Streep foram amplamente divulgadas nas redes sociais e Trump foi zurzido na justa medida da denúncia, que teve o seu quê de emoção, como fica bem nestes momentos. No entanto, o discurso de Streep esvai-se em duas ou três pinceladas de contexto, com a memória e a hemeroteca a ajudarem.
Antes de mais, por ter sido uma apoiante de Hillary Cliton – o apoio foi mais que declarado, algo em que, de resto, não destoa da classe hollywoodesca. Portanto, não deixa de ser curioso que a artista desperte agora, à beira da tomada de posse de Trump, para os malefícios do poder e para as contas que deve prestar à imprensa, tendo sido Obama, como todos bem sabemos, o anjo celestial que bafejou a nossa existência, e sobretudo a dos «denunciantes» norte-americanos, com o tempo das bem-aventuranças. Mas, lá diz o outro, mais vale tarde que nunca, e a Meryl acordou agora para a importância da comunicação social.
De resto, o termo «acordar» parece bastante apropriado, por oposição a «alienação» ou, mais justamente, «hipocrisia». É que Meryl, apoiante de Hillary, se lembrou agora de que, no seu meio, há muitos imigrantes. Só não disse que nos EUA vivem dezenas de milhões deles, muitos em condições de enorme precariedade e miséria, agora, ao cabo de oito anos de políticas de Obama, e de mais anos de políticas de Democratas e de Republicanos.
O caso de um deficiente achincalhado ou a lembrança de que «a violência gera mais violência» conduzem-nos ao mesmo: só o Trump? É que Obama foi o «Rei dos Drones», ajudou a destruir a Líbia e o Iémen e, como referiu o The Guardian há três dias, deixa um «legado sangrento». Obama foi o primeiro prémio Nobel da Paz a bombardear sete países muçulmanos e, no final de 2016, a sua administração tinha agentes especiais em 70% dos países do mundo – 138 –, o que representa um aumento de 130% relativamente à era de Bush. Mais: só em 2016, a sua administração lançou 26 171 bombas, qualquer coisa como três bombas por hora, 24 horas por dia.
Até pode ser que o Trump venha a fazer tudo isto e pior. Agora, as vozes que o atacam silenciando os crimes de Obama e Hillary não convencem. Tresandam a hipocrisia.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui