Ao «centro do mundo» de que hoje lhe venho falar chamou Fialho de Almeida (1857-1911), em expressão feliz, o «país das uvas» (sim, é título também de um dos seus livros mais conhecidos). Esta admirável paisagem no Baixo Alentejo, densa de vinhedos, contempla-se bem a partir de uma alta rua sossegada, na bonita Vila de Frades. Aí se ergue a casa onde nasceu o autor de Os Gatos (1889-1894), contista e autor de crónicas, de perfil naturalista, a que importa sempre voltar, pela qualidade poética e descritiva da sua prosa, pelo tónus metafórico e ainda pelo invulgar dom de observação e captação de paisagens e tipos humanos que essa prosa evidencia.
Em Vila de Frades viveu também e morreu o poeta setecentista João Xavier de Matos (1730/5? – 1789) que, nado em Lisboa, fez parte da Arcádia Portuense, assinando com o pseudónimo Albano Eritreu. Reza o final de um dos seus disfóricos sonetos: «Com a mão na face a vista ao céu levanto / E, cheio de mortal melancolia, / Nos tristes olhos mal sustenho o pranto; // E se ainda algum alívio ter podia, / Era ver esta noite durar tanto! / Que nunca mais amanhecesse o dia.»
Estamos, pois, em terra de escritores que não puderam ficar indiferentes ao cenário verde, de férteis e suaves colinas que os rodeava. Em Vila de Frades além das adegas do famoso vinho da talha (herança dos romanos), poderá visitar o pequeno mas exemplar Museu da Casa do Arco (preparando-se assim para uma visita às extraordinárias ruínas romanas de S. Cucufate (sécs. I – V d.C.), em local onde haveria de se instalar um mosteiro consagrado ao santo, em data incerta da Alta Idade Média.
No rés-do-chão da Casa do Arco, abrindo para a linda Praça 25 de Abril, com a álea central debruada a laranjeiras, poderá fazer uso do Centro de Leitura Fialho de Almeida (espaço infantil, espaço Internet e sala de leitura). Desça a nobre rua que aí começa e encontre, à sua mão esquerda, uma casa onde Humberto Delgado esteve escondido da PIDE, clandestino. Mais adiante vire à esquerda e suba em direcção à velha Torre do Relógio, com um dos poucos do país que funcionam ainda por pêndulos e à corda, tendo sofrido em 2007 um restauro do maquinismo e do exterior. Há muito mais para ver nesta vila do concelho da Vidigueira, bem gerida por um executivo progressista, e recheada de património. Dentro das suas limitações, dele vai cuidando, e bem, a junta de freguesia em parceria com a Câmara da Vidigueira e outras estruturas do estado.
E, já agora, se alguma vez duvidou da necessidade de uma Reforma Agrária no Alentejo, ao serviço dos alentejanos e do país, recorde estas palavras de Fialho em O País das Uvas (1893): «As grandes extensões de território, no Alentejo, pertencem a dez ou doze nababos que vivem nos grandes centros, indiferentes ao cultivo, e empenhados somente em receber num prazo fixo o dinheiro das rendas, para a sustentação das suas prodigalidades e magnificências.» Já nessa época dava que pensar, não é?
Em Vila de Frades, antiga sede de concelho, poucos quilómetros o separam da Vidigueira, a sede actual. Faça-os a pé se lhe for possível, pois existe um óptimo passeio à margem da estrada, feito para quem gosta de exercício físico; e assim irá desfrutando da sedutora paisagem campestre.
Uma vez na Vidigueira, percorra as velhas ruas estreitas, contemple o branco casario antigo e os edifícios mais nobres, alguns em processo de requalificação. Talvez escute ao longe vozes de cante. Não deixe de dar um salto à Adega Cooperativa – a mais antiga das muitas existentes no concelho –, onde hoje trabalham mais de três dezenas de pessoas. Faça uma visita, certamente instrutiva. Porque não levar consigo algumas amostras dos magníficos vinhos da região, trabalhados pela tradição, pela cultura vinícola, pelas novas tecnologias e pela especialização dos saberes nesta área. Um exemplo só, entre tantos: o branco da casta Antão Vaz – belo néctar para beber nestas tardes já mornas de Primavera. Mas o leque, digo-lhe já, é largo e variado. Descubra-o.
Mais duas sugestões: uma visita ao Centro Multifacetado de Novas Tecnologias, na Rua Longa (que integra a biblioteca, bem equipada, com uma boa secção infantil e com um espaço para uso de computadores e acesso à Internet), e ao magnífico e cuidadíssimo Museu Municipal da Vidigueira, situado na Praça Vasco da Gama, atrás da estátua do almirante da Índia (nomeado, no seu tempo, senhor da vila).
Cuidadosas e impressivas reconstituições da escola primária de antanho, bem como dos estabelecimentos comerciais e ofícios tradicionais, tanto os da vila como os rurais e os do rio (dê um salto a Pedrógão do Alentejo para espreitar o Guadiana), em suma uma invejável colecção de reconhecível valor cultural, com diversas raridades e resultante de uma sólida pesquisa histórica de contorno académico – é o que pode encontrar neste museu, instalado no que, em tempos, foi o antigo edifício da principal escola primária da vila. Vale a pena, acredite.
Necessita de pernoitar? Tem, por exemplo, o Hotel Santa Clara (com um pão alentejano fresco, pela manhã, de o fazer subir às nuvens). Precisa de almoçar ou jantar? Tem o Cascata ou o Raposo (se, no primeiro, encontrará um tenro e suculento borreguinho assado, no segundo, pode apreciar umas memoráveis açordas, como as deliciosas sopas de tomate com poejos, incluindo pimento, bacalhau, ovo escalfado…). Duvida de que isto seja cultura?
Já agora, se em hipotético passeio à Vidigueira for acompanhado de miúdos, aproveite e dê-lhes a ler o livro Uma Aventura no Caminho do Javali (Caminho, 2005), de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, com ilustrações de Arlindo Fagundes, cujo pano de fundo são as terras de que tenho estado a falar e as ruínas de S. Cucufate.
Cito o texto da página na Internet desta autarquia (onde – de passagem o direi – se tem feito um sério esforço de integração das minorias étnicas). Aí detectará sinais de uma política cultural merecedora de apreço, voltada para quem vem de fora mas sobretudo para a população do concelho, os seus jovens e as suas necessidades socioeducativas e culturais (destaque-se, por exemplo, o trabalho de promoção da leitura e da escrita, envolvendo também escolas e suas bibliotecas).
É isto, então, o que quero citar: «O território em que se inscreve o concelho de Vidigueira, localizado entre Beja e Évora, encontra-se ladeado a norte pela Serra do Mendro, a leste pelo rio Guadiana e a sul e a oeste pelas vastas planícies em que os horizontes se dilatam. Graças à sua vegetação exuberante, à abundância das águas, à riqueza das hortas e pomares e ao facto de estar encostada à Serra do Mendro já foi apelidada de Sintra do Alentejo. A diversidade paisagística existente, dominada pelo património natural mas também pelo património humanizado, propicia vivências únicas e harmoniosas.» Creia-me: tudo isto é verdade. Faça uma visita à Vidigueira – terra de pão, vinho, laranjas e paz – e avalie por si.
Leituras para todos
Se não sabe, fique a saber: 2 de Abril é o Dia Internacional do Livro Infantil. 23 de Abril, o Dia Mundial do Livro. O mês da Liberdade é, pois, também, o mês do Livro. Leia, por isso, a mensagem internacional do 2 de Abril, da responsabilidade do International Board on Books for Young People; observe o cartaz português de João Fazenda, artista que ganhou, em 2016, o Prémio Nacional de Ilustração; e reserve um pouco da sua reflexão quer para aqueles escritores e ilustradores que dedicam parte significativa do seu labor à criação literária e artística para os mais novos, quer à própria importância da leitura e do livro para a infância e a juventude na formação de gente mais culta, mais sensível, mais imaginativa e mais crítica em relação ao estado do mundo.
Diria também: gente mais preparada do ponto de vista da necessária competência literária e das literacias em geral. O 2 de Abril é ainda um dia para lembrar o relevante papel sociocultural desempenhado pelos mediadores da leitura em geral: bibliotecários e técnicos auxiliares de biblioteca, promotores e animadores da leitura, professores-bibliotecários, divulgadores e críticos, editores, livreiros, docentes e educadores de infância, pais e encarregados de educação… No 2 de Abril, é caso, ainda, para perguntar: para quando a revitalização do Plano Nacional de Leitura?
E, a propósito, aceite algumas sugestões de leitura:
Rita Taborda Duarte e Pedro Proença publicaram há pouco, na Caminho, Animais e Animenos (2016, 2.ª ed., 2017), um livro divertidíssimo, tanto para crianças como para adultos, impossível contudo de sumariar. Em verso rimado, o texto fala de animais da imaginação, animais mínimos (ou seja, «animenos»), e convida no final a cultivar uma cabeça pensante, imaginante, bem-humorada, sem «teias de aranha» demasiado adultas. Isto depois de dar a conhecer todo um cortejo de «animenos», descritos com termos prodigiosos, inventados, plenos de graça e resultantes de todo um trabalho de (re)criação linguística, que evidencia o talento da autora no jogo e na inventividade verbais.
Um texto que divertirá certamente os mais novos, sobretudo se for (bem) lido em voz alta. Cromaticamente apelativas e variadas, investindo por vezes numa estética da caricatura e do grotesco, as bem-humoradas ilustrações de Pedro Proença são ideais para sugerir toda esta atmosfera de «mundo-às-avessas» que singulariza também o texto de Rita Taborda Duarte (além de poeta e crítica literária, um dos nomes mais consolidados da nossa escrita literária para a infância e a juventude). Um livro, acrescente-se, em que ecoa toda uma tradição literária que vem de Edward Lear e de Lewis Carroll e que passa, evidentemente, por Manuel António Pina e por outros mestres da palavra e do «nonsense».
José Viale Moutinho, bem acolitado pela ilustradora Fedra Santos, oferece-nos O Livrinho dos Versos para Rir 2 (Afrontamento, 2017), extremamente divertido, coligindo pequenos textos rimados da tradição oral popular e muitos outros colhidos, aqui e acolá, nas muitas escolas deste país que Viale Moutinho tem percorrido – um país tão diverso e tão rico do ponto de vista do património poético oral, como este volume atesta.
Em pequeno formato, a ilustradora Inês Oliveira, por seu lado, dá-nos uma nova versão ilustrada do conhecido conto de temática e fundo infantis, de José Saramago, A Maior Flor do Mundo (Porto Editora, 2016, colecção Educação Literária) – obra que já antes havia sido ilustrada por João Caetano e André Letria. O azul, o vermelho, o amarelo pontuam, aqui e acolá, uma ilustração que aposta, contudo, nos cinzentos. Uma imagética feita de sombras sabiamente manipuladas a fim de sugerir o universo da imaginação e da criação literária e artística e os seus mistérios (um dos tópicos do conto) além de, numa das imagens, nos oferecer uma evocação do próprio autor do texto.
Se quer pôr os seus filhos a pensar, não deixe de explorar com eles o álbum Há Classes Sociais (Orfeu Negro, 2016, col. Orfeu Mini), obra quase clássica (de 1978) da Equipa Plantel, catalã (texto e ideia), com ilustrações de Joan Negrescolor e tradução de Maria Afonso. E se, além de os pôr a pensar, os quer pôr a ler e a cantar, revele-lhes a figura genial da cantora, compositora, poeta, folclorista, artesã e artista plástica chilena Violeta Parra (1917-1967), a fundadora da Nova Canção Chilena, que o grande Pablo Neruda chegou a louvar num belo poema.
Encontra uma versão desse poema no livro que desejo aconselhar-lhe: Violeta Parra para Meninas e Meninos (Tinta-da-China Edições/Chirimbote, 2017). O texto é de Nadia Fink, as ilustrações de Pitu Saá e a tradução de Inês Hugon. O nome da colecção já lhe dirá muito, certamente: Colecção Antiprincesas.
E como os adultos também necessitam, e cada vez mais, de leituras, aí ficam outras sugestões:
Sérgio Sousa propõe-nos um grosso volume de divulgação crítica intitulado Comunistas Escritores: Roteiro de Leituras (Página a Página, 2016). Avelino Cunhal, Maria Lamas, Maria Eugénia Cunhal, Redol, Soeiro, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Joaquim Lagoeiro, Jorge Reis, Orlando da Costa, Faure da Rosa, Urbano, Saramago, Manuel Tiago/Álvaro Cunhal, Fernando Miguel Bernardes, José Casanova, Modesto Navarro, Domingos Lobo, Francisco Duarte Mangas, Nuno Gomes dos Santos e Ana Margarida de Carvalho são apenas alguns daqueles cujas obras surgem abordadas neste roteiro importante e necessário.
Na poesia, como não sugerir Misteriosamente Feliz (Língua Morta, 2016), a antologia poética do catalão Joan Margarit, traduzida e posfaciada por Miguel Filipe Mochila? Ou ainda Sombras Brancas: Setenta e Sete Poemas sobre Anjos Caídos de Outras Línguas (título belo e intencionalmente ambíguo), antologia organizada por Jorge Sousa Braga, a quem se deve igualmente a tradução, saída em 2016 (chancela também da Língua Morta) mas só recentemente distribuída. Na ficção narrativa, convém não deixar passar a cuidada edição de Ao Largo da Vida: Novelas e Esboços (Ítaca, 2017), de Rainer Maria Rilke, tradução de Isabel Castro Silva.
Ah, e saiu mais um número, o 13, de Esteiro (Março, 2017), boletim da célula da Cultura Literária do Sector Intelectual da Organização Regional de Lisboa do PCP, com textos de Modesto Navarro, Sibila Aguiar, uma pequena entrevista a Fernando Miguel Bernardes, recensões críticas da autoria de Domingos Lobo e de Manuel Dias Duarte, entre outras matérias de interesse.
Cinema italiano
Hoje, ficar-me-ei por aqui, em matéria de sugestões (compreenda que o facto de estarmos no rescaldo da Semana da Leitura nas escolas, e no limiar de Abril, o mês do Livro e da Liberdade, me obriga a dar importância ao livro e a certas obras, habitualmente ignoradas, como as infantis e juvenis). Mas não se esqueça de que vai começar a 10.ª Festa do Cinema Italiano. É já de 5 a 13 de Abril em Lisboa, Porto, Coimbra e Setúbal. E vale a pena. Faça a sua pesquisa e as suas escolhas.
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