A expressão visual nas paredes da Festa do Avante! insere-se na própria história da festa, realizada desde 1976. A arquitectura efémera, com espaços modulares erigidos em tubo e forrados a madeira são uma marca da sua estética. A partir de 1977 – quando o PCP decidiu procurar um recinto ao ar livre para a realização da Festa do Avante!, na sequência da recusa de cedência do espaço da FIL pela Associação Industrial Portuguesa – essa estética consolidou-se com a adaptação arquitectónica e urbanística ao espaço exterior, de características particulares em termos de circulação e de dimensão espacial e visual.
Os murais estão enraizados nessa estética. Os pavilhões e as várias estruturas a cargo das organizações regionais, centrais ou locais do PCP são tradicionalmente preenchidas com composições visuais diversas. Maioritariamente alusivas a reivindicações políticas de cada região do país, as organizações têm autonomia para planear e executar os murais. Relativamente à visualidade geral da festa, isso determina uma grande pluralidade e a criação de ambientes distintos, apesar da tendência para o recurso a alguns elementos – como a frequência de utilização de vermelhos, o tratamento gráfico da palavra, o símbolo partidário da foice com o martelo e a predominância imagética figurativa. Pensados e pintados sem o apego individualista, mercantilizado ou aurático de algumas linhagens da arte contemporânea, tal como a arquitectura, também os murais são efémeros. Assim, terminada a Festa do Avante!, as paredes são desmanteladas e as madeiras guardadas para reutilização no ano seguinte. Mas a sua efemeridade não retira importância a estes murais, particularmente se os integrarmos no que a Festa do Avante! representa no seu conjunto e como aí se expressa a ideia de democracia cultural defendida pelo PCP.
A apropriação das paredes no espaço urbano durante o 25 de Abril só desde há poucos anos começou a ser integrada na historiografia de arte portuguesa. Em 1975 e nos anos seguintes o preenchimento das paredes com mensagens políticas inscritas em frase e em imagem foi uma actividade realizada por partidos políticos, por associações culturais, comissões de moradores e por iniciativa popular, como forma de comunicação visual, mas também como manifestação pública da consciência política e participação cidadã. Neste contexto, foram muitos os artistas visuais que organizaram e participaram na pintura de murais.
«A sua efemeridade não retira importância a estes murais, particularmente se os integrarmos no que a Festa do Avante! representa no seu conjunto e como aí se expressa a ideia de democracia cultural defendida pelo PCP.»
Em termos teóricos, essa prática foi pensada na altura sob ópticas muito pertinentes por alguns artistas, historiadores e críticos de arte, entre os quais Ana Hatherly, E.M. de Melo e Castro, Ernesto de Sousa, Rui Mário Gonçalves, Eurico Gonçalves ou Rocha de Sousa. Contudo, a prática muralista também foi menosprezada, muito frequentemente pela sua estética – popular, politizada, performativa – pela efemeridade, pelo anonimato e, na maioria dos casos, pela simplificação formal. Mas embora se possa pensar nestes murais a partir de uma óptica estritamente formalista a questão é mais complexa, uma vez que a sua visualidade deriva de diferentes métodos e procedimentos de concepção e realização.
A tradição muralista do PCP é sobejamente conhecida. Se durante a ditadura, a pintura e inscrição de mensagens políticas nas paredes das cidades foi por ele entendida como veículo de comunicação importante, após a revolução este foi um dos partidos políticos que mais recorreu a esse suporte, a par do PCTP/MRPP, do MDP/CDE, da Aliança Povo Unido (PCP-MDP/CDE- PEV) ou da UDP. Mas o PCP integrou a pintura mural na actividade regular partidária, mantendo-a assim até à actualidade. Em termos práticos, isso traduz-se no entendimento de que a pintura de murais pode ser uma tarefa de qualquer militante, seja ele profissionalmente artista ou não.
A opção por um modelo de produção colaborativo em detrimento de um modelo de produção autoral atribui um cunho social às pinturas murais do PCP que está plasmado na própria plasticidade, criatividade e identidade imagética. Não há a adopção de uma visualidade particular ou distintiva em termos formais. Isso não significa que não existam murais a ser concebidos por artistas visuais ou que o PCP desvalorize as profissões artísticas. De quando em vez eles são referidos em contextos específicos e o seu trabalho distintivo é destacado. Não obstante, a importante singularidade expressiva de cada um desses artistas é amparada pela colectivização do processo, igualmente importante. E é precisamente desta prática que deriva a pluralidade imagética dos murais do PCP, entre os quais os realizados na Festa do Avante!.
A forma de actuação do PCP nesta matéria está intimamente relacionada com o seu pensamento em relação à cultura, no qual se incluem as artes. A democracia cultural é um aspecto definido nos programas de teses do PCP desde 1965, sempre na dupla acepção da fruição e da criação artísticas. A este respeito, no XIII Congresso do partido, realizado na FIL em Novembro de 1976, o PCP definiu os princípios fundamentais no quadro de uma democracia cultural, princípios que iria manter até à actualidade. Entre eles, considera ser essencial «A garantia efectiva do direito à liberdade de criação e expressão artísticas; A defesa da participação na elaboração da política cultural de escritores, artistas e demais trabalhadores da cultura e das suas associações, bem como das organizações populares, assim como a necessidade de apoio do Estado às suas acções, com respeito pela sua autonomia e independência de orientação; A perspectiva de alargamento do conhecimento literário e artístico assim como o estímulo à actividade criadora do povo português; O princípio da defesa, conservação e divulgação do património histórico-cultural, desde a arte erudita à arte popular, de forma a que ele seja efectivo património do povo e uma dimensão viva da nossa própria identidade cultural nacional.»1
Estes princípios, que na sua essência são os inscritos na Constituição da República Portuguesa (CRP), norteiam a construção da Festa do Avante! e a pintura de murais faz parte da sua passagem ao acto. É por isso que sob a óptica da performatividade política, da sua estética, da aplicação dos valores de uma democratização da arte ou ainda na óptica das práticas colaborativas e participativas eles são um objecto de estudo relevante.
Na Festa do Avante! de 2023 terão sido centenas as pessoas que conceberam, desenharam e pintaram as largas dezenas de murais presentes no recinto. Com expressões visuais muito distintas, ao longo das últimas semanas de construção da festa multiplicaram-se as projecções dos desenhos nas paredes à noite, muitas vezes adaptados no momento ao espaço específico, exigindo alterações aos projectos. Assim como proliferaram os pequenos agrupamentos junto às paredes durante o dia, com rolos, pincéis, esponjas, latas de tinta de vários tamanhos, escadotes e outras ferramentas utilizadas para a pintura. Tal como acontece em todas as outras tarefas de construção da Festa do Avante!, esses agrupamentos têm na sua composição artistas, professores, carpinteiros, empregados de escritório, da limpeza, estudantes, investigadores, operários, operadores de caixa de supermercado. E é extraordinário que assim seja. A sabedoria, a experiência, a criatividade, a imaginação, a precisão, o rigor e a técnica são partilhados e durante as horas em que alguém integra determinada tarefa é o que ela exigir – carpinteiro, mecânico, motorista, varredor, pedreiro, jardineiro, artista.
Sob a perspectiva da prática artística, a Festa do Avante! é assim um estaleiro e um laboratório de experimentalismo colaborativo. Os artistas da festa são os seus construtores. O PCP não organiza residências artísticas, não tem percursos assinalados nem visitas guiadas aos murais. Elas acontecem, mas espontaneamente porque os murais estão integrados na experiência de viver a Festa do Avante!, como se demonstra pelos usos que os visitantes fazem deles ou pelas várias fotografias que circulam nas redes sociais a destacá-los. Não obstante, mesmo sem qualquer sinalização nesse sentido, a Festa do Avante! é um acontecimento de arte pública marcante no país e um exemplo de passagem ao acto da democracia cultural inscrita na CRP como direito de todos os cidadãos.
- 1. In Garibaldi, J. (1978) Com a Arte para transformar a vida – 1.ª Assembleia de Artes e Letras. ORL do PCP, Cadernos do PCP.
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