Estamos no trimestre que o Governo elegeu para discutir a descentralização de competências, a tempo de entrarem em vigor já no próximo ciclo autárquico. O governo afirma mesmo que será toda uma celebração dos 40 anos de Poder Local Democrático. Pese embora esta e outras «juras de amor» que dedica às autarquias locais nos documentos da sua iniciativa, não esqueçamos que este Governo é o mesmo que há pouco mais de um mês, recusou repor as freguesias extintas pelo executivo de Passos Coelho, contra a vontade das populações que assim foram afastadas da governação de proximidade, da sua junta, conquista de Abril. É também o mesmo Governo que no Orçamento de Estado para este ano, reincidiu no incumprimento da Lei das Finanças Locais, surripiando desta vez, pelas contas da Associação Nacional de Municípios Portugueses, mais 120 milhões de euros. Esta é, aliás, uma prática de desrespeito pelo Poder Local Democrático reiterada pelos governos do PS e do PSD/CDS, tal como são também as consecutivas alterações legislativas tendentes a afastar as populações da decisão política. A redução do carácter colegial dos órgãos executivos em favor do presidencialismo, a desvalorização dos órgãos deliberativos face aos executivos, a menor participação decorrente da redução de eleitos, e a desvalorização ou eliminação da participação direta do movimento associativo, tudo tem contribuído para afastar as populações do exercício do poder, com nítido prejuízo da capacidade para nele participar e/ou para o controlar.
É com este historial de desrespeito pelas autarquias locais que o Governo pretende agora transferir competências relativas a 18 sectores, sectores esses que juntam âmbitos tão genéricos como saúde, educação e cultura, quanto particulares como os jogos de fortuna e azar, as estruturas de atendimento ao cidadão, ou o estacionamento na via pública.
Não há dúvida que as autarquias locais, legitimadas pela eleição directa dos seus órgãos executivos e deliberativos, são quem melhores condições reúnem para validar as opções de desenvolvimento mais convenientes a cada comunidade. E de facto, a execução de políticas públicas adequadas à circunstância própria de cada comunidade, é um pilar fundamental para uma governação com justiça, no caso, com justiça territorial. Se dúvidas houvesse, bastaria atentar no quanto os portugueses têm sofrido por não terem políticas financeiras, industriais, agrícolas ou comerciais próprias, mas antes políticas ditas «comuns» decorrentes da integração nos mercados europeus, de todo alheias aos seus interesses e aos do País.
Também as regiões portuguesas, na sua circunstância e diversidade próprias, vêm sofrendo com as políticas públicas «comuns» que lhes vão impondo os sucessivos governos centrais. Sem opções próprias de desenvolvimento, sustentadas e sufragadas com esse mesmo desígnio, as regiões continuam à mercê da percepção e da vontade de um governo central e suas direcções regionais, mais ou menos acompanhadas por diversas «entidades», sejam elas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento, Juntas e Assembleias Metropolitanas, Comunidades Intermunicipais, Associações de Municípios, ou qualquer outro agrupamento supramunicipal. Os resultados têm sido o crescimento das assimetrias entre as diferentes regiões, com todos os problemas inerentes ao desequilíbrio do território nacional. De censo para censo, acentuam-se as diferenças no nível e nas condições de vida, e nas oportunidades dos portugueses nas distintas regiões. Estas assimetrias inter-regionais nunca foram tão pronunciadas como hoje, o que torna cada vez mais urgente reorganizar a governação do nosso território.
A transferência de competências não pode pôr em causa a garantia da universalidade do serviço público, e para uma igualdade de oportunidades no seu acesso, há que atender às diversas realidades do nosso País. A governação de cada realidade diferencial requer representantes e executantes cuja responsabilização política exige, por sua vez, o seu sufrágio.
Portugal continental estrutura-se hoje em 278 municípios, a maioria deles governando menos de oito freguesias. Já entre um governo central e 278 municípios, é difícil acreditar numa interlocução eficaz e transparente, resultando frequentemente em práticas políticas injustas, clientelares, ineptas, anacrónicas e débeis. O Governo para reconhecê-lo nesta sua actual iniciativa de descentralização de competências. Porém e mais uma vez, insiste em «entidades intermunicipais» para remediar o abismo que representa os 278 municípios terem como único interlocutor político o Governo central. Nos motivos da sua iniciativa, bem destaca o papel das «... entidades intermunicipais, as quais constituem um instrumento de reforço da cooperação intermunicipal em articulação com o novo modelo de governação regional resultante da democratização das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional…». Mas como pode o Governo transferir competências para «entidades intermunicipais» sem que estas tenham sido mandatadas para tal por sufrágio universal? E como podem autarcas legitimados para defender os interesses dos respectivos municípios e freguesias, assumir agora a defesa de interesses regionais para os quais não foram sufragados?
Com esta iniciativa, fica uma vez mais adiada a eleição directa de representantes e executantes de uma governação que permita igualdade de oportunidades de desenvolvimento à medida de cada Região. Não será ainda este o Governo que terá força e vontade política suficientes para avançar com o processo de Regionalização, consagrado na nossa Constituição. E sem uma Regionalização, inteligente, moderna e forte, a tal «... Reforma do Estado a fim de torná-lo mais inteligente, mais moderno e logo mais forte…» será uma grande falácia.
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