Mal nos sentámos, «acho que estou com uma depressão, não sei bem». Eu já sabia, mas apresentei-lhe as perguntas de circunstância, «então, o que se passa?», «tens de [acrescentar verbo optimista]», etcétera, etcétera. Ele olhou para mim durante um momento e riu-se. Há cinco anos que sobrevive com dois part-times: durante o dia trabalha como motorista para a Uber; à noite é distribuidor da Telepizza. Começa às dez, acaba às duas. «Mas não é só isso», garantiu-me, «hoje em dia, ganhar mal é tão banal como ter uma depressão».
Segundo o Inquérito Nacional de Saúde de 2014, metade dos portugueses apresenta sintomas de depressão. A intensidade destes sintomas varia muitíssimo e não pretendo banalizar as gravíssimas consequências da doença. Não pretendo, tão pouco, imiscuir-me numa discussão sobre saúde mental que não tenho condições para fazer, mas esta é uma epidemia que médicos e psicólogos não podem erradicar. Contra ela, não há vacinas que nos valham nem políticas públicas de saúde mental que nos bastem: a causa da depressão é o capitalismo.
A relação directa entre a depressão e o aumento da exploração foi já objecto de vários estudos e, como revela esta peça recentemente publicada no AbrilAbril, as causas da doença são as mesmas exigências económicas do capitalismo: desemprego, baixos salários, precariedade, aumento do horário de trabalho, degradação das condições de trabalho, etc.
«Olha, estou farto desta merda. Estou farto de tudo. Já não aguento mais: o mercado de trabalho parece um mercado de escravos. Só falta pedirem-nos para mostrar os dentes na entrevista.»
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o número de diagnósticos em todos os países registou um aumento de 18% na última década e é já a principal causa das baixas médicas prolongadas. É a doença em mais rápida expansão no Reino Unido e, nos EUA, o número de casos cresce 20% todos os anos. Mas, o mais grave, é que se a epidemia continuar a alastrar a este ritmo, será uma questão de tempo até alguém se questionar porque continuamos a chamar «sintomas» à forma como as pessoas normalmente se sentem.
Drapetomania: toda a ciência serve uma classe
Antes da abolição da escravatura nos EUA, prestigiados médicos sulistas debatiam uma doença a que chamavam «drapetomania», um distúrbio mental cujo principal sintoma era a tendência de alguns escravos negros para fugir. Nada de surpreendente considerando que, até 1990, a OMS classificava a homossexualidade como uma doença mental.
Conceber a ciência como um campo socialmente asséptico, historicamente neutro e a cheirar a desinfectante não é só um erro epistemológico: é a negação do próprio método científico. Ou seja, a história do pensamento científico só pode ser entendida no campo de batalha da luta de classes. Esta conclusão é facilmente verificável se compararmos centros de investigação privados com universidades públicas: alguém pode imaginar a Bayer a investir milhões de euros num trabalho de investigação científica que lhe pode trazer prejuízos? Tudo isto para dizer que a psicologia e a medicina também não são imunes a interesses de classe: há uma luta constante para colocá-las totalmente ao serviço do capitalismo.
«A culpa só é minha, percebes? Eu estraguei a juventude na empresa. Estraguei a vida na empresa. Dei-lhes tudo e depois atiraram-me fora. Fui estúpido. Agora lixo-me.»
E o problema de doenças como o narcisismo é precisamente que os sintomas de distúrbios mentais que, no passado, eram percepcionados como «anormais» estabelecem-se, hoje, como norma e até como fórmula para o «sucesso». Perante uma doença que, mais que genéticas, tem causas políticas e económicas, o capitalismo tratará de banalizar os sintomas, garantindo-nos que não se trata de doença nenhuma, mas da personalidade individual de cada um ou, acima de tudo, da «natureza humana».
As costas largas da natureza humana
Quem luta, de uma ou outra forma, por um mundo melhor ouve às vezes que esse mundo não é possível por causa da «natureza humana». A lógica, simples e circular, resume-se este silogismo: a sociedade, a mais desigual de todos os tempos, é um reflexo da nossa natureza gananciosa e egoísta, combatê-la é tão fútil como querer mudar a nossa essência. Estariam assim absolvidos todos os criminosos de guerra, os especuladores que matam à fome, os banqueiros que roubam as casas, os empresários que despedem trabalhadores e a sociedade que cria a depressão porque, afinal de contas, é da «natureza humana». O problema é que não, não é.
«O pior é mandarem-me ser homenzinho e andar para a frente. Como se isto fosse uma escolha minha, como se eu controlasse como estou.»
Nas primitivas sociedades de caçadores-recolectores em que o trabalho de todos os elementos era necessário à sobrevivência de cada um dos elementos dessa sociedade, o ser humano era, «por natureza» cooperativista: o egoísmo e a ganância teriam, pura e simplesmente, ditado a extinção da espécie humana. Mais tarde, durante a Idade Média, as relações de produção feudais criaram uma outra «natureza humana», em que o ser humano se concebia como parte de colectivos socialmente estáticos, pelo que a noção de «individualismo» teria de esperar ainda muitos séculos para ser inventada.
Nas famosas teses sobre Feuerbach, Marx escreve que «a essência humana não é uma abstracção inerente a cada indivíduo» mas sim «o conjunto das relações sociais». Invertendo a lógica dos que pretendem atribuir a epidemia da depressão à «natureza humana», podemos concluir que os sintomas da doença correspondem, sim, à natureza do capitalismo.
A grande depressão
Ao longo da História, o fim de todos os modos de produção foi sempre antecedido por um período de decadência moral, artística, cultural e humana. Patente, por exemplo, na decadência do Rococó estão os sinais da desadequação do sistema político coevo ao desenvolvimento das forças produtivas. Da mesma forma, na atmosfera política do Império Romano do século III estão presentes todos os sintomas da decadência do próprio esclavagismo.
«Eu olho à volta e só vejo merda. Trabalhos de merda, gente de merda, vidas de merda.»
A profunda crise que o capitalismo, na fase actual, enfrenta, manifesta-se em todas as esferas da vida humana e, como Marx dissera, exprime-se também naquilo a que hoje em dia chamamos «natureza humana», contaminando-a com as mesmas doenças de que padece.
Veja-se, a título de exemplo, a Grande Depressão de 1929, a paradigmática crise cíclica do capitalismo. A coincidência não é apenas semântica: o excesso de produção causa uma enorme crise; o trabalhador é culpado pelo próprio desemprego e pelo colapso da economia; a insegurança instala-se nos mercados; as expectativas de progresso são substituídas pelo pessimismo e pela austeridade como ideologia; o trabalho e a vida são desvalorizados; a auto-destruição da produção é apresentada como saída.
«Se pudesse, voltava à barriga da minha mãe e não nascia. Se tivesse coragem, acabava com tudo.»
O aprofundamento da crise do capitalismo contaminou as nossas vidas com doenças e infelicidade. Tornou-nos mais sozinhos, mais nervosos, mais cansados, em todos os sentidos mais pobres.
Todos temos amigos, colegas ou familiares que sofrem, todos os dias, sintomas de depressão: culpando-se a si próprios por circunstâncias que os ultrapassam, sentindo-se vazios rodeados de coisas, eternamente cansados de tudo, arrastados de preocupação em preocupação e de ano em ano: «É hora! É hora!» como as bruxas de Macbeth agoirando, debruçadas sobre o caldeirão fervilhante dos mercados internacionais: «Hás-de andar pelas ruas como um fantasma e não saber o sentido de nada! Doer-te o passado que já não tens como uma perna amputada! Sentir-te excedente a encher prateleiras e desligado apesar de logado. Hás-de andar pelas ruas como um fantasma e não saber o sentido de nada!».
É urgente que saibamos que este sistema não faz bem à saúde mental: torna homens lobos dos homens e os lobos lobos de si próprios. É uma doença. E o socialismo é a cura.
Mas, até lá, deixem-me escrever uma coisa sincera sem pensar demasiado nela: podemos começar por conseguir sonhar com o tal mundo melhor. Mesmo que isso implique voltar a acreditar na tão maltratada utopia da fundamental decência humana. É útil com esta carga tão pesada que, às vezes, em tão frágeis asas e tão alto se levanta.
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