A nomeação de Mário Centeno como presidente do Eurogrupo não é do interesse de Portugal e muito menos dos portugueses. Também não deveria ser do interesse do governo português, aparentemente, porque contradiz e compromete as já de si mitigadas preocupações de índole social manifestadas pelo executivo.
O orgulho de circunstância declarado pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da República – isto enquanto fazia de colaborador precário na obra de caridadezinha da reaccionária Jonet – são actos de pura propaganda, no quadro de um princípio oco segundo o qual a presença de portugueses em organismos internacionais é muito boa para o país.
Uma ilusão bacoca cultivada como anestésico para quem se limita a consumir as ordens de serviço emanadas através dos telejornais. Passemos brevemente em revista os enormes êxitos para Portugal garantidos pelo triste desempenho do secretário-geral da ONU e tiremos conclusões; ou, mais penoso ainda, imaginemos o que hipoteticamente poderá fazer António Vitorino na organização internacional das migrações, ideia que faz tanto sentido como um hipopótamo regendo a Orquestra Sinfónica de Viena nos concertos de ano novo. A não ser que o sentido seja paralelo: transformar um ex-comissário europeu, cargo que, por definição, exige a sensibilidade social de um pedregulho de basalto, no pesadelo dos migrantes de todo o mundo.
Ou recordemos ainda as incidências – nefastas em termos nacionais – da presença de Vítor Constâncio na vice-presidência do mecanismo ditatorial que é o Banco Central Europeu. Para os devidos efeitos, Constâncio tem tanto de português como Mário Draghi de kosovar; ou menos ainda.
No caso da nomeação de Centeno para presidente do Eurogrupo – e não lhe chamem eleição, porque é um insulto à livre capacidade de escolher e de decidir – a situação é ainda mais gravosa para os portugueses em particular, e para os povos europeus em geral.
Quanto mais não seja porque é susceptível de minar um quadro político invulgar que, com todos os defeitos e insuficiências, poderia funcionar como exemplo de contraponto à ortodoxia neoliberal autoritária inerente à União Europeia.
Não se infira destas palavras que Centeno poderá ser pior presidente do Eurogrupo do que o desqualificado intriguista e boçal Dijsselbloem. Nada disso: admitamos que a simples comparação já será um desprestígio para Centeno.
A situação é ainda mais gravosa para os portugueses e as populações da Europa em geral porque quanto mais competente for o presidente do Eurogrupo pior será para os seres humanos que habitam o continente europeu.
O Eurogrupo é a máquina autoritária, e com um poder ditatorial de decisão, que faz aplicar as medidas que são do interesse de quem inventou e tira verdadeiramente proveito da invenção desse instrumento de domínio financeiro, económico – e político – que é a moeda única a funcionar no espaço europeu. Moeda comum a 18 países da União, mas que deverá compulsivamente alargar-se ao universo dos 27, nos termos do mais importante discurso programático proferido pelo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker.
Quando se escreve «compulsivamente», isso significa que os países ainda com moeda própria devem fazer todos os «ajustamentos estruturais» necessários para se comportarem económica e financeiramente, sobretudo em terços orçamentais e de défice, segundo o diktat alemão.
«O Eurogrupo é o quartel-general dessa guerra permanente contra os cidadãos e a democracia»
Os portugueses conhecem bem os efeitos dramáticos que a prioridade dos interesses do euro sobre as necessidades das pessoas traduzem no dia-a-dia. Por isso, a designação do ministro das Finanças de Portugal como presidente do Eurogrupo, numa altura em que os portugueses deveriam estar a discutir seriamente a saída do euro, é uma ilusão traiçoeira.
Uma ilusão para aqueles que, embalados por uma cega ingenuidade ou toldados por um patrioteirismo barato, admitem que Centeno poderá transportar para o mais alto cargo do Eurogrupo as suaves motivações sociais assumidas pelo governo português durante pouco mais de dois anos de vigência.
Nada seria mais absurdo do que isso. O Eurogrupo, como parte do rolo compressor de necessidades humanas que integra também o Banco Central Europeu, representa os interesses egoístas que institucionalizaram o euro como peça fundamental do colete de forças que transformou os cidadãos de 18 países em piões submissos da estrutura supranacional de poder que criou e tira proveito da moeda única.
O Eurogrupo é o quartel-general dessa guerra permanente contra os cidadãos e a democracia; o seu presidente, seja ele quem for, é o comandante que faz aplicar o que a estrutura supranacional ordena, doa a quem doer, tenha a nacionalidade que tiver.
Tal será o papel de Mário Centeno, sendo certo que o próprio não vai ao engano, sabe perfeitamente as consequências da sua actual opção de carreira, o que lhe compete fazer, quem deve servir. Ou seja, cumpre-lhe executar o mesmo que Dijsselbloem, e outros antes dele, certamente com mais competência, ainda que variem o estilo, a linguagem, a atitude, coisas que, em boa verdade, não têm qualquer importância.
Não existem dúvidas, por outro lado, de que Mário Centeno é considerado o homem certo para o lugar certo por quem determina como deve funcionar o Eurogrupo. Suponhamos, por absurdo, que a candidatura do ministro português das Finanças seria motivada pela intenção de transportar para o Olimpo da moeda única uma visão «alternativa», com um mínimo de preocupações sociais contrárias ao que tem sido o funcionamento da instituição.
Tal improbabilidade, porém, cairia pela base através do apoio transmitido a Centeno pela elite dos sociopatas da União Europeia como Angela Merkel, Emmanuel Macron, o governo espanhol neo-franquista e o inimitável Schauble, que dizem sumido mas não inactivo. Bastava esta claque poderosa e detentora da máxima confiança da linhagem neoliberal para garantir que não há qualquer equívoco, muito menos uma ínfima alteração de rota na gestão tecnocrata do Eurogrupo.
Mário Centeno, diga-se em abono da verdade, desbravou este caminho enquanto ministro das Finanças do governo português. O executivo tomou decisões que corrigiram parcialmente a torrente de injustiças e desmandos sociais praticados pelo anterior governo; porém, avaliando o comportamento geral da equipa de António Costa, não custa deduzir que as reparações em favor das pessoas foram subsidiárias e marginais em relação às grandes preocupações directamente atribuíveis a Centeno: a obsessão do défice e a canalização de milhares de milhões de euros para amortização antecipada de dívidas à troika, em vez de serem utilizados, pelo menos em parte, na dinamização da economia, no investimento e no reforço do respeito pelos portugueses, colocando-os acima das imposições do euro e dos diktats de Bruxelas.
Basta lembrar, como exemplo da desconsideração governamental para com os cidadãos, a contumácia com que continua a impedir a subida do salário mínimo para os 600 euros, pretendendo aumentá-lo apenas para 580 euros.
No entanto, a progressão para 600 euros já este ano custaria 200 vezes menos, apenas 5% (cinco por cento) dos 500 milhões que o governo pretende entregar ao FMI, como nova amortização antecipada de dívida, ainda antes de se escoar este ano.
A ilusão patrioteira da nomeação de Centeno é também traiçoeira, porque vai virar-se contra aqueles a quem tentam convencer das supostas vantagens que proporciona. Sobram exemplos elucidativos, mas existe ainda uma sequela não contabilizável e que tem a capacidade de exponenciar todas as outras.
«No entanto, a progressão para 600 euros já este ano custaria 200 vezes menos, apenas 5% (cinco por cento) dos 500 milhões que o governo pretende entregar ao FMI»
Sabemos muito bem que o governo de António Costa, apesar do seu enquadramento político geral, não se distingue por assumir atitudes firmes perante as pressões, ameaças e até chantagens de Bruxelas e seus aparelhos de asfixia, sejam o BCE, a Comissão ou o Eurogrupo.
Percebemos igualmente que essa acrimónia da União Europeia tem tudo a ver com a imagem real, mas de efeitos muito ampliados pela propaganda tecnocrática, projectada por convergências políticas que sustentam o executivo de Lisboa, aparentemente desafiadoras da ordem estabelecida pelo aparelho «europeísta».
Porém, nem a docilidade da equipa de Costa perante as exigências da União, tão pouco a vitória de Pirro sobre as metas do défice ou as escusadas e bloqueadoras amortizações antecipadas de dívida, amansaram as feras chantagistas.
Até que começou a falar-se da possibilidade de Centeno ir chefiar o Eurogrupo. E onde havia cardos começou a correr mel. Merkel, Macron – poderia ser Hollande – Schäuble, Rajoy, os súbditos de Renzi, Juncker, Tusk, Dijsselbloem, Draghi transformaram-se como por encanto, apresentando-se agora como apoiantes do ministro das Finanças de um governo que tratavam como maldito.
Ora todos os dirigentes citados, e alguns outros, não funcionam segundo impulsos ou emoções, mas sim de acordo com a estratégia gélida do cifrão. Não se transformaram, adoptaram o caminho que sabem servir melhor os seus objectivos. Deram ao ministro português das Finanças o trono do Eurogrupo, erradicando quaisquer sintomas que restassem de uma suposta «rebeldia» de Lisboa.
O governo português está agora ainda mais solidamente submetido às ordens de comando do Eurogrupo, merecendo até os encómios dos sociopatas domésticos que durante anos trataram os portugueses como escória, além disso constituída por «queixinhas».
Talvez por vício do jogo político, António Costa e a sua equipa, que têm vindo a afinar a pontaria dos tiros nos pés, terão a ilusão de que roubaram espaço de manobra à oposição.
Traiçoeira ilusão: comportando-se como a própria oposição gostaria de fazer – e não deixaria de fazer, se pudesse – esfacelaram um pouco mais o desgastado prestígio governamental, não poupando nas balas auto mutiladoras.
Péssimas notícias para os portugueses na alvorada de 2018.
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