Quando a Federação Israelita de Futebol foi admitida como membro da UEFA em 1992, eu tinha 13 anos e, provavelmente pela primeira vez, fui obrigado a pensar porque é que, tal como todas as outras seleções do Médio Oriente, os israelitas não participavam nas competições asiáticas. É verdade que Israel já havia participado em provas da UEFA no passado, que as suas equipas entravam na Taça Intertoto durante o verão, que o facto de ter disputado o apuramento para o Itália 90 entre as seleções da Oceânia já me causara alguma estranheza, misturada com o encanto de por ali saber o Ronny Rosenthal, o israelita que aparecia no Championship Manager como uma origem improvável entre os jogadores com a camisola do Liverpool. Israel tinha até jogadores em Portugal, como o Eli Ohana a jogar no Sporting Clube de Braga, não seria assim um país tão distante que não pudesse, um dia, chegar a um Mundial.
O futebol serviu para me colocar questões aos 13 anos que nenhuma outra coisa poderia colocar, já que apesar dos canais noticiosos estarem a chegar a Portugal com a abertura da SIC Notícias e a CNN já chegar lá a casa por via satélite, a verdade é que o ciclo de notícias de 24 horas passava muito ao lado de um rapaz de 13 anos em Torres Vedras em 1992. Para isso existia o futebol e a vontade de espreitar a enciclopédia que havia lá por casa, começar a procurar por livros de história na biblioteca da escola, estar mais atento quando, na televisão, alguém falava de Médio Oriente. A grande base do conhecimento geopolítico que ainda hoje tenho nasceu a ver futebol. Porque as equipas chegam de cidades e países que é preciso conhecer para entender a sua forma de jogar e de se comportar. Porque as competições de clubes se organizam conforme aos interesses geopolíticos dos seus países, porque as provas de seleções nos permitem apontar com toda a certeza que o Iémen é na Ásia e o Djibuti é em África, apesar da curta distância que os separa no Estreito de Babelmândebe e de nenhuma das suas seleções ter alguma vez participado no Mundial.
Está a dar um jogo, estão a cair bombas
Ora se o futebol nos ensina a perceber tanta coisa no mundo, do futebol os olhos também nos fogem quando estão a cair bombas na Palestina ou no Líbano. A história da Palestina também corre mundo com a bola nos pés. Pelas muitas histórias de jogadores feridos ou mortos enquanto treinavam ou jogavam no seu território que sonha ser país. Pela incapacidade de moradores da Palestina conseguirem passar as fronteiras para treinarem nos clubes israelitas. Pela existência de jogadores de origem palestina na Suécia ou no Chile e pelo que nos faz pensar sobre a procura de oportunidades na vida. Curiosamente, apenas um ano depois de Israel ter sido admitido na UEFA, uma seleção de antigos jogadores internacionais franceses visitou a Palestina para um jogo com uma equipa local. O acontecimento foi largamente retratado nas páginas da Onze Mondial, uma revista que religiosamente comprava na Papelaria do meu bairro. A Palestina enquanto possibilidade apareceu aí na minha cabeça, vendo o reconhecimento da FIFA do seu estatuto de membro em 1998 como um sinal de que a paz estava para chegar. Não estava.
«A grande base do conhecimento geopolítico que ainda hoje tenho nasceu a ver futebol.»
Israel bombardeia o Líbano e volto ao mapa deste país que, há muitos anos, trabalhava eu num escritório da Baixa lisboeta, serviu de exemplo para uma colega de trabalho, que me disse «isto é como era o Líbano e depois começaram a cair bombas». É verdade. É isso que as pessoas sentem. Um dia estão na sua vida normal e depois começam a cair bombas. Volto ao mapa do país, olho as cidades do sul que estão a ser evacuadas, procuro os clubes de futebol. É uma espécie de guia mental que mesmo agora, aos 45 anos, continuo a utilizar. No Tadamon, há pouco mais de um mês, tinha sido apresentado um jovem brasileiro, Guilherme Farias, a sonhar ter ali o início da sua carreira profissional. O que seria feito dele? Hoje já não precisamos de enciclopédias, umas poucas pesquisas no computador e estamos a falar com alguém que acaba de viver cenas que só pensava possíveis em filmes. A vida é assim. Um dia estás a sonhar com o teu futuro, no outro estás a ser ajudado para fugir a uma guerra. O futebol faz-me perceber estas coisas e faz-me preocupar com pessoas de quem nunca ouvi falar. «Graças a Deus estou bem», escreve-me. Assim seja.
Clubismos agora à parte
O que o futebol também no ensina é a perceber o que as pessoas podem fazer para nos tentarem vender o seu peixe. No futebol estamos habituados aos nossos amigos e conhecidos que são brilhantes nas suas vidas profissionais mas acham que o seu clube é roubado a cada jornada. No futebol estamos habituados a ouvir os treinadores tentarem explicar com palavras complicadas aquilo que nós vimos que não aconteceu. Estamos habituados a perceber como os jogadores repetem um discurso ensaiado para não serem identificados como emocionalmente frágeis. Tudo isso nos ensina o futebol. É também por isso que, hoje, quando caem bombas no Médio Oriente, sabemos que «retaliação», «legítima defesa», «comunidade internacional» é apenas uma forma de ver as coisas.
«O futebol ensina-nos a ser humanos, mesmo no meio de uma atividade que tem tudo para se tornar selvática. Tudo isto se aprende a ver futebol. Tudo isso me ocorre quando caem bombas e morrem pessoas, e eu estou aqui.»
Muitos falam da futebolização da guerra, mas eu tendo a pensar que acontece exatamente o contrário. O futebol serviu para nos abrir os olhos em relação ao que determinados especialistas nos tentam vender sem contraditório. E pelo futebol somos capazes de perceber como se constroem os problemas, como é que as pessoas têm os mesmos direitos de jogar pelas regras sejam elas de que países forem, de que a competição se faz dentro de um campo onde não tem que morrer ninguém, que no final do jogo, satisfeitos ou insatisfeitos com o resultado, apenas nos preparamos para o jogo que se segue. O futebol ensina-nos a ser humanos, mesmo no meio de uma atividade que tem tudo para se tornar selvática. Tudo isto se aprende a ver futebol. Tudo isso me ocorre quando caem bombas e morrem pessoas, e eu estou aqui.
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