O jogo de futebol é uma imitação da vida, na medida em que se concentram num curto espaço de tempo todas as tensões que o trabalho, as relações sociais, as paixões, a cultura e a tradição nos impõem, para além da questão competitiva que acaba por dar um resultado à exposição e choque de intenções que o jogo nos provoca. Dessa imitação da vida procura-se, no entanto, uma perfeição que nos é, no quotidiano, inalcançável. Uma perfeição que é exigida ao coletivo, que não pode ter qualquer tipo de falha. Ao jogador, que mistura numa mesma dimensão aquilo que é enquanto trabalhador, no exercício da sua profissão, com aquilo que é enquanto representação da heroicidade admirada por milhões de adeptos. Ao próprio jogo, ao qual se pede espetáculo e resultado encapsulados numa só medida.
Essa perfeição é depois transformada nas exigências que são colocadas aos atores do jogo, desprendendo-se de entendimentos emocionais que a própria disputa origina. Como se quase nunca se percebesse que aquilo que está em choque são duas equipas, com diferentes jogadores, mas com os mesmos objetivos. Ora, dessa incompreensão que é gerada num misto de ambição desmedida e incapacidade para ler a realidade que se observa, cresce uma falha que separa cada vez mais os intervenientes daqueles que assistem aos seus feitos. Acabamos, no final de contas, a afastarmo-nos cada vez mais daquilo que os jogadores e as equipas realmente fazem, das dinâmicas que o jogo nos oferece, mas nos concentrarmos em imagens recortadas que implicam, quase sempre, o entendimento de uma outra realidade.
A Argentina não chorará por mim
A Argentina entrou neste Mundial com o peso de transportar o seu mais genial jogador do século XX num deus. Para se ser maior que Maradona é preciso ser-se maior do que o mundo. Messi veio para a Europa ainda uma criança, desenvolveu-se numa academia das melhores do mundo em Barcelona, num clube que se redesenhou à imagem do talento deste jogador. Maradona cresceu nas ruas, enfrentou o profissionalismo como um caminho para a sustentação da sua família, lutou contra um futebol que era cruel e agressivo como uma guerra sem regras, representou o seu país em pleno conflito militar com uma potência europeia. Não se deseja ser Maradona impunemente e o peso do último Mundial de Messi fez com a equipa argentina tremesse. Um tremer que se sentiu frente à Arábia Saudita, à Austrália e, uma vez mais, frente aos Países Baixos.
Os encontros entre albicelestes e laranjas são um clássico dos Mundiais. E o que pudemos assistir na passada sexta-feira entre para a galeria de épicos. Com os neerlandeses a aproveitarem os dez minutos finais para restituir vida à contenda, o prolongamento e os penáltis permitiram um quadro de enorme tensão que tocou todos os intervenientes. As imagens de provocações entre as duas partes confirmam o ambiente que se sentia no jogo. Quando a derrota parece mais inevitável, todos os sentidos são acionados de forma a salvar a pele e o resultado. Quando os argentinos festejam na cara dos neerlandeses, quando Messi manda Weghorst ir à sua vida, aquilo que um europeu sentado no seu sofá de privilégio vê é a sempre eterna maleducação dos latinos. Neymar e Cristiano Ronaldo já foram vítimas dessas mesmas leituras. Mas do lado do sul-americano aquilo que se regista é essa capacidade de não se vergar perante uma autoridade que insiste em colocar as regras acima dos acontecimentos. E o que aconteceu é a possibilidade de se poder continuar a acreditar no alcance da divindade. O que não é coisa pouca para qualquer jogador.
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