|Um outro Mundial

Argentina - França, muito mais do que um jogo

A dança dos presidentes por uma foto com as estrelas do jogo, o encanto literário da Argentina pelo desporto do pontapé na bola, as tensões nacionalistas que uma equipa multicultural sob o signo da França procura atenuar. A antevisão de tudo o que está em jogo na final do Mundial. 

CréditosNoushad Thekkayil / EPA

Nenhum Mundial de futebol se realizou sem que a política nele estivesse presente. Mesmo entre aqueles que recusam a politização do futebol se sente o fascínio do jogo como degrau para aparecer num palco aos olhos dos seus concidadãos. Assim foi com Emmanuel Macron, presente na meia-final entre França e Marrocos e com lugar marcado para a final. O presidente francês não fez apenas figura de corpo presente. Insistiu em visitar os balneários de vencedores e vencidos, passeando a sua imagem entre franceses e marroquinos. Na sua ânsia de marcar agenda através de um auto-simbolismo imbuído pelo espírito do diálogo, Macron teve mesmo que esperar à porta do balneário dos marroquinos, que o fizeram esperar, seguramente sem grande vontade de participar num espetáculo que não era seu. 

É essa ânsia de participar no espetáculo que deverá fazer Alberto Fernández, presidente da República Argentina, atravessar mares e continentes para marcar presença na final do Mundial. O ano passado fez viagem mais curta, até ao Rio de Janeiro, para assistir à final da Copa América, onde os argentinos festejaram a vitória, mas não se predispuseram a tirar uma foto presidenciável. Tem sido, aliás, essa a marca da Argentina de Messi. Sobretudo porque, no país, se preparam já as eleições para o ano de 2023 e a vontade de colagem de Alberto Fernández tem sofrido enorme oposição da sua opositora Cristina Kirchner, preocupada com a eventualidade desse trunfo futebolístico poder mudar a vontade popular. Enquanto os líderes políticos se subjugam para aparecer na fotografia, a população não se deixa enganar.

Curiosamente, em Portugal, a ânsia do presidente Marcelo Rebelo de Sousa estar na linha da frente do comentário aos jogos da seleção, mais do que reforçar o seu papel presidencial, retirou-lhe um necessário distanciamento que se pede a quem terá mais com que se ocupar ao gerir os destinos da nação. 

Uma Argentina só coração

O encanto do futebol argentino esteve sempre na comunhão que unifica o que acontece dentro de campo com aquilo que se gera fora dele. No Catar, a presença massiva de adeptos argentinos, conjugando as cores nacionais com símbolos dos clubes que admiram, cantando e vibrando antes, durante e depois dos jogos, transformou as suas partidas no melhor símbolo da conquista do espaço público pelo povo apaixonado pelo jogo. Essa dimensão ajuda a explicar a transformação em divindades daqueles que chutam a bola pelo relvado. Assim foi com Diego Armando Maradona, que se fez bem mais do que ser um jogador, na forma como liderou a equipa, mas também o povo, na luta pelos seus direitos e afirmação. Assim se espera que Messi o faça também. 

Mas futebol e Argentina têm uma relação bem mais profunda, presente na sua literatura, na sua vida, na forma como bate o seu coração. Eduardo Galeano terá sido dos autores que melhor foi capaz de descrever esta forma de se ser argentino e apaixonado pelo futebol. Mas é também da Argentina que nascem os cruzamentos aparentemente improváveis. Como ver um jogador campeão do mundo, depois treinador e dirigente, a tornar-se num escritor, num intelectual do jogo, na maneira como semanalmente nos descreve aquilo que vê acontecer no futebol que continua a ser a sua razão de viver. Jorge Valdano tem sido visto nas bancadas do Catar, com aquele ar cansado das figuras convidadas para uma festa que, seguramente, se habituaram a viver de outros modos. Mas as suas palavras continuam a encantar-nos. Como se a Argentina já fosse campeã, mesmo antes dos jogos começarem. 

As muitas Franças numa só

O futebol francês há muito que se transformou numa verdadeira montra da diversidade de origens que compõem, hoje, a população francesa. No grupo de Deschamps encontramos jogadores com ascendentes nos países da Península Ibérica (o avô materno de Griezmann, Amaro Lopes, emigrou de Paços de Ferreira no final dos anos 50), na Ásia (Filipinas), no Caribe (Martinica) e um pouco por toda a África. Na língua, na literatura, na música, em todas as áreas da vida pública, a França do século XXI é um país diverso e aberto. Mas onde essa diversidade penetra, também a resistência se manifesta. E no final do encontro das meias-finais, entre França e Marrocos, vários militantes da extrema-direita foram identificados pela polícia por se envolverem em ações de violência e agressão a adeptos marroquinos. 

O discurso de Eric Zemmour na defesa das “ruas francesas” de uma invasão árabe encontrou espaço para ecoar no acontecimento desportivo. A rápida ação policial não evitou confrontos mais graves em Paris e Lyon, bem como uma morte por atropelamento de um jovem de 14 anos em Montpellier, ainda em investigação, segundo a edição de ontem do jornal Libération. Essa tensão alimentada por forças que se recusam a permitir que as populações encontrem o seu caminho para melhorarem as suas condições de vida mas, pelo contrário, procuram incendiar as suas preocupações para ações contra aqueles que consigo são parecidos, nas dificuldades e nas ambições, não deixa de contaminar todos os aspetos das nossas vidas. É também contra isso que se joga em campo. Tal como em 1998, a França multicultural e diversa, de diferentes origens, línguas e credos, segue debaixo da bandeira azul, branca e vermelha, para afirmar a sua união. Um novo título de campeões, seguramente, não lhes ficará mal.

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