Vivi quase uma década da minha vida de estudante universitário e de jovem médico numa «República» de Coimbra fundada por estudantes africanos maioritariamente de Angola e por isso chamada «Kimbo dos Sobas» (Aldeia dos Chefes).
Fui o primeiro português «da metrópole» a ser aí aceite, num reconhecimento implícito da unidade da luta anticolonial e de oposição ao fascismo.
No «Kimbo», criei cumplicidades fraternas que só o convívio diário de uma casa colectiva e a generosidade da juventude propiciam, laços que nos passaram a unir para toda a vida.
Lutávamos todos por um mundo melhor, com liberdade e sem fome nem exploração do homem pelo homem. Os angolanos, pela libertação da sua pátria do jugo do colonialismo português. Os portugueses (nascidos na «metrópole» ou no «ultramar»), pelo fim da ditadura de Salazar e Caetano e da guerra colonial.
À sombra das paredes do nosso «Kimbo» passavam decisões duras que iriam condicionar o futuro de cada um:
Aproveitar o treino militar, desertar e ir para a guerrilha, para os angolanos. Para os portugueses lutar contra a guerra e a ditadura, na legalidade ou na clandestinidade e, quando no exército, esclarecer soldados e oficiais para «virar o bico ao prego» e tentar organizar deserções colectivas.
Cada um junto do seu povo na mesma luta. Nenhuma contradição. Combater em frentes diferentes pelos mesmos objectivos.
Nessas voltas do destino, houve despedidas festejadas sem delas falarmos, com abraços apertados em silêncio pelo receio da denúncia, sem saber se algum dia nos voltaríamos a ver.
Nada disto foi fácil para a pequena irmandade dessas gerações de «Sobas», parte da qual ainda participou na Crise Estudantil de 69.
Alguns conheceram a tortura e a prisão em Caxias, Peniche, na Trafaria, no Tarrafal (reaberto por Adriano Moreira para os militantes dos movimentos de libertação das colónias), na prisão de S. Nicolau, em Luanda, outros emboscados na guerrilha ou assassinados nas convulsões da cisão de 77 do MPLA, que tantas feridas abriu.
Mas, nesses verdes anos do «Kimbo», antes de mergulharmos pelos diversos caminhos, passei os dias a ouvir falar de Angola e Luanda, das suas ruas, dos seus cinemas, dos seus restaurantes, da sua baía, da marginal, da «ilha», da Maianga, do Cacuaco, das praias da Cazanga e do Mossulo.
E se a cidade passou a integrar o meu imaginário, a verdade é que só a conheci em 2006, quase quatro décadas mais tarde, ao participar num Curso de Ortopedia Infantil no Hospital Pediátrico David Bernardino, uma unidade hospitalar em muitos aspectos exemplar, reflexo do impoluto e extraordinário empenho do seu «histórico» director de muitos anos, Dr. Luís Bernardino, e dos seus colaboradores mais próximos.
Lembrar-me-ei sempre da viagem nocturna no pequeno Fiat que me transportou do aeroporto ao hospital onde ficaria hospedado, com os máximos a iluminarem a carrinha em frente e o anúncio da firma e da rua onde se situava, descobrindo, emocionado até às lágrimas, que esta tinha o nome de um dos meus companheiros do Kimbo, tragicamente desaparecido.
A paz era ainda então quase uma novidade numa cidade degradada que transbordava de gente fugida dos campos, dos combates e das minas, uma urbe pobre e insegura, com «musseques» miseráveis e crianças de rua, desmesuradamente cara no limitado circuito «civilizado» frequentado por gente do petróleo e pela burguesia abastada.
Só quatro anos antes, com a morte de Savimbi e a paz com a Unita, Angola tinha fechado o longo ciclo de quarenta anos de guerra começado com a luta de libertação do jugo colonial, logo seguido pela heróica resistência à ofensiva da FNLA de Holden Roberto e dos mercenários da CIA, com portugueses da extrema-direita do ELP (Exército de Libertação de Portugal) e tropas do Zaire de Mobutu e da África do Sul, que, deixando um rasto de morte e destruição, chegaram às portas da capital querendo invadi-la no próprio dia da declaração de Independência (11 de Novembro).
«Afinal, a brutal censura angolana apregoada pela nossa comunicação social parece não ser bem como dizem. Para mais, quando o entrevistado ingenuamente confessa que iniciou a sua vida de "activista" depois de um curso patrocinado pelo "National Institute for International Affairs", organização criada pelo Congresso americano e presidida por Madelaine Albright»
É difícil imaginar um ambiente mais dramático do que o da cerimónia onde chegava o difuso ressoar dos tiros da batalha de Kifangongo travada a poucos quilómetros dali, onde se decidia o futuro do país e da própria população de Luanda, salva da chacina anunciada pelo exército zairense, com a derrota da FLNA e dos seus ferozes aliados.
Mas a guerra continuaria durante mais de duas décadas, imposta pela Unita de Savimbi com o continuado apoio dos estados do «apartheid», dos USA e de toda a direita Ocidental, combatidos com a ajuda solidária de soviéticos e cubanos, tendo tido o seu auge na famosa batalha de Cuíto-Canavale.
Todo esse longo período de destruição e sacrifício, que cruzou o próprio nascimento de Angola como nação soberana, é hoje por muitos esquecido ou menorizado, como se esses anos de guerra, com todo o cortejo de carências, projectos suspensos, tráfico de armas, mercado negro, corrupção e miséria, pouco contassem nas dificuldades e desequilíbrios ainda sentidos na ancoragem do aparelho de estado e na normalização do seu enquadramento e práticas institucionais.
A recusa da ditadura de Salazar de proceder em tempo oportuno a um processo pacífico de descolonização assegurando a continuidade de muitos portugueses que, em Angola, viviam honestamente garantindo serviços essenciais, desembocou numa guerra prolongada e criminosa que obrigou ao forçado «retorno» de muitos milhares em condições dramáticas, deixando Angola despida de quadros e técnicos que os poucos existentes não podiam suprir, aumentando as dificuldades, o divisionismo e o prolongar dos conflitos.
E essa continua a ser uma pesada responsabilidade da direita portuguesa que ainda hoje procura capitalizar o capital de descontentamento dos «retornados» e as memórias distorcidas da realidade colonial em seu favor, trocando descaradamente culpas e culpados.
Desde essa primeira visita, em 2006, voltei quase todos os anos a Luanda por razões profissionais («pro bono»), aproveitando para estar como os meus amigos do Kimbo. E lá voltei, há uma semana, já depois de terminado o processo eleitoral.
Em apenas década e meia de paz, dificilmente se pode ignorar a espantosa melhoria observada em todos as frentes, sem com isso menorizar os problemas que ainda existem e os evidentes contrastes sociais.
Mas sobre isso há sempre, nos media dominantes em Portugal, um interesse falsamente paternalista para com Angola, por onde perpassa um odor de neocolonialismo e de indisfarçada hostilidade, reduzindo a realidade plural e dinâmica da sua sociedade, a uma redutora avaliação cheia de rótulos estereotipados de «estado corrupto», «pobreza e fortunas obscenas», «censura» e «falta de liberdade».
Na realidade, há em tudo isso muito de verdade e de mentira, e a Angola que existe, apesar de toda a evolução, está ainda longe da pátria idealizada pelos meus companheiros do Kimbo que passaram sacrifícios indescritíveis lutando por um país mais livre, independente e justo.
Ma também para os portugueses que combateram o fascismo e viveram a Revolução de Abril, o Portugal de hoje está longe do país que então imaginaram.
E lições de superioridade moral denunciando a corrupção e novo-riquismo das elites angolanas em contraste com a pobreza dos «musseques», são dificilmente aceites se, quem as dá, convive e defende, de forma cúmplice, o facilitismo e a promiscuidade corrupta que continuam a envolver dirigentes políticos portugueses e as velhas e novas elites da finança lusa, dos Espírito Santo aos Oliveira e Costa, de Armando Vara a Duarte Lima, do escândalo dos vistos Gold às equivalências de Relvas e dos chefes da Protecção Civil, justificando os estratosféricos salários de Zainel Bava e Granadeiro que levaram a PT à falência, saudando os cortes nos salários e pensões enquanto milhares de milhões foram gastos a tapar os buracos da especulação dos bancos, com mais um terço dos portugueses na pobreza.
Nisso, Portugal é um espelho um pouco mais embaciado e com menos contraste do que se pode ver em Angola, sem as atenuantes de ter tido uma guerra prolongada no seu território nem a justificação da verdura da estrutura social e política de uma «nova» nação.
De resto, muitos dos corruptos de um lado são sócios ou parceiros dos corruptos do outro, pelo que, também nesse campo, podemos pensar que temos muito a ligar-nos.
É nesse complexo contexto, que a forma pacífica, pluralista e organizada como decorreram as recentes eleições em Angola, elogiadas por todos com quem falei, constitui uma invulgar afirmação de maturidade política, que justifica a confiança com que os angolanos parecem encarar o futuro num país socialmente mais justo e coeso, apesar das dificuldades criadas pela baixa do petróleo e a falta de divisas.
Claro que o MPLA já não é o que era, e do antigo partido dos trabalhadores de inspiração marxista já pouco resta. Mas talvez essa seja apenas mais uma prova de que não basta o voluntarismo dos dirigentes para construir o socialismo num país quase sem proletariado e ainda com processos de produção pré-capitalista, embora isso não possa servir de justificação para o aprofundar das desigualdades e da exploração dos mais fracos, num território cheio de riquezas naturais.
De qualquer forma, depois de um passado tão conturbado como heróico, Angola parece ter dado mais um importante passo na consolidação da sua democracia.
E no Novo Jornal, que comprei já no aeroporto, em entrevista anunciada na primeira página, Nuno Álvaro Dala, um dos revoltados companheiros do tão badalado Luaty e Beirão, proclama: «O MPLA finge que Governa e os outros partidos fingem que fazem oposição» […] «a política feita em Angola nos últimos 15 anos tem sido uma monumental mentira».
Afinal, a brutal censura angolana apregoada pela nossa comunicação social parece não ser bem como dizem. Para mais, quando o entrevistado ingenuamente confessa que iniciou a sua vida de «activista» depois de um curso patrocinado pelo «National Institute for International Affairs», organização criada pelo Congresso americano e presidida por Madelaine Albright, ex-Secretária de Estado dos USA, patrocinadora da destruição da Jugoslávia, a «humanista» que, em 1996, numa entrevista ao «Sixty Minutes», considerou friamente que a morte de meio milhão de crianças causada pelas duras sanções então aplicadas ao Iraque «é um preço que vale a pena».
Como se vê, gente preocupada com a paz na Terra e a felicidade do petróleo. Talvez seja por isso que os árabes lhe chamam «a urina do Diabo».
E os angolanos também parecem saber isso…
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