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Matança

Ora a perda de cem vidas humanas, nas circunstâncias em que ocorreu – dois picos de vagas incendiárias muito concentradas no tempo e imprevisivelmente diversificadas no espaço –, não é um acidente: é uma matança, um selvático assassínio em série.

Populares tentam salvar o gado durante o violento incêndio em Vieira de Leiria, Marinha Grande, a 15 de Outubro de 2017
CréditosRicardo Graça / Agência Lusa

Anuncia-se que, por ora, as chamas estão extintas; fazem-se os enterros, recolhem-se os salvados, secam-se as lágrimas, respeita-se o luto, limpam-se os destroços, recontam-se as poupanças – se ainda as há – deitam-se mãos à obra porque a vida continua e sempre é menos dura sob o abrigo de um tecto. Até à próxima.

Sem surpresa, e como já percebemos, agora segue-se a campanha feroz contra o governo, exigem-se cabeças de ministros, sobe de tom a troca de soundbites como balas, exercita-se a caridadezinha público-privada, provavelmente teremos de assistir às repugnantes práticas de necrofilia política dos que, habituados a tratar mal os vivos jamais respeitarão os mortos.

Cem mortos e dezenas de feridos é o rescaldo provisório da hecatombe dos incêndios deste ano em Portugal. Ano após ano, fogos florestais sempre houve; mas não há memória de uma tragédia humana com esta envergadura, de uma insegurança, de um sentimento de fragilidade e de terror que se estende a todos os cidadãos que habitam no território português.

Onde havia jogos sujos de madeireiros e se apostavam grandes interesses imobiliários e florestais tornou-se este ano comum o sacrifício de vidas humanas. Salta à vista, sente-se no peito, que o País ficou desestabilizado num tempo em que, finalmente, recomeçava a olhar em frente.

Escrevi há dois meses que as circunstâncias qualitativamente diferentes dos fogos deste ano exigiam abordagens, medidas e respostas diferentes. Lembrei o caso, também único, do Verão de 1975, quando a multiplicação de incêndios, então centralizados no Alentejo, tinha como objectivo político não apenas a destruição da Reforma Agrária mas também a expansão de um clima de pânico que forçasse o país e os seus habitantes a desejarem um recuo drástico na Revolução.

E admiti a hipótese de estarmos agora perante uma desestabilizadora operação de terrorismo puro e duro, uma prática que, embora não pareça a quem se regula pela comunicação social dominante, não se cinge às malfeitorias do Daesh, nem sequer ao universo do radicalismo islâmico.

A menção ao terrorismo incomodou algumas pessoas, que logo a catalogaram na imensa pasta da «teoria da conspiração», onde afinal cabe tudo o que não corresponde às medidas autorizadas e padronizadas de análise político-militar-económica-financeira.

Ora a perda de cem vidas humanas, nas circunstâncias em que ocorreu – dois picos de vagas incendiárias muito concentradas no tempo e imprevisivelmente diversificadas no espaço –, não é um acidente: é uma matança, um selvático assassínio em série.

Figuras governamentais como o secretário de Estado da Administração Interna, mas principalmente os testemunhos doridos dos bombeiros e de serviços de protecção civil, dão-nos a certeza de que muitos dos focos de incêndio foram provocados por mãos humanas.

Nem poderia ser de outra maneira: milhares de fogos acumulados em quatro dias (grosso modo) – mais de 700 só no passado domingo – e tocando desordenadamente grande parte do território nacional, tornando insuficientes as desmultiplicações possíveis dos serviços e meios de socorro existentes, só podem ser fruto de uma estratégia coordenada movendo centenas de piões; ou então Portugal é um perigoso ninho de pirómanos adormecidos os quais, movidos por um misterioso surto epidémico, e cada um por si, decidem atear e reacender fogos praticamente ao mesmo tempo e em sítios diferentes. Só acredita nesta delirante saga hollywoodesca quem quiser.

Além disso, não há circunstâncias climáticas, por muito duras que sejam e alteradas que estejam, susceptíveis de se combinarem de forma nociva e convergente para provocarem os efeitos trágicos registados, porque se fazem sentir de maneiras diferentes em zonas distantes e diversificadas como as que foram atingidas pelos incêndios, principalmente na vaga mais recente.

«(...) o executivo arrisca-se agora a queimar grande parte do capital de prestígio que amealhou.»

Quando se escuta o primeiro-ministro de Portugal, porém, verifica-se que não existe intenção de abordar a hecatombe dos incêndios deste ano de acordo com particularidades específicas que saltam à vista – a menos relevante das quais não é, por certo, a matança de uma centenas de cidadãos portugueses.

Para o governo, tudo continua a acontecer devido às insuficiências do ordenamento florestal, em circunstâncias que são «estruturais e não conjunturais». Isto é, a «época de incêndios» deste ano foi igual às de há cinco, dez ou vinte anos, resultante das mesmas causas, ainda que as consequências tenham sido muito diferentes e mais graves. Assim sendo, apenas conseguimos observar o Estado a fugir da definição e da denúncia de um inimigo que não olha a meios, que manipula e liquida a vida de cidadãos portugueses desde que isso sirva os seus fins.

Num país onde os serviços de espionagem se entretêm a espiolhar os cidadãos porque cada um de nós pode ser um terrorista islâmico em potência, quiçá um perigoso anti-neoliberalista, ou em que os detidos por atear incêndios são olhados como «lobos solitários», e depois quase sempre libertados, parece não haver condições para investigar o que poderá existir por detrás de cada alegado pirómano.

Ou será que os serviços de segurança e de investigação criminal não terão disponibilidade para se ocuparem de todas as possíveis pistas que possam esclarecer a morte de uma centena de portugueses? Mortes que foram assassínios, pois, segundo tantos testemunhos, houve fogos desencadeados de modo a dificultar ao máximo, ou até tornar impossíveis as operações de salvamento.

Este quadro deixa-nos a sensação de que a palavra «terrorismo» aplicada aos incendiários queima os sofisticados circuitos dos gadgets dos agentes de espionagem. Ora basta que alguém dê um piparote num bobby no Hide Park de Londres ou um sopapo num flic à entrada do Jardim das Tulherias, em Paris, para que estejamos perante atentados terroristas que dão instantaneamente a volta ao mundo e suscitam novas e cada vez mais apertadas medidas de segurança afectando comunidades inteiras; em Portugal, eventuais teias incendiárias assassinam cem pessoas e parece não haver interesse da comunidade de investigação, ou vontade política para esquadrinhar todas as circunstâncias até à mais recôndita hipótese.

As medidas de reordenamento florestal são essenciais, os pareceres científicos de uma laureada Comissão Técnica Independente serão valiosos; esses resultados, porém, seriam mais úteis e de efeito geral maximizado se acompanhados pelo despiste de todas as eventualidades criminosas, incluindo a hipótese terrorista, associadas aos incêndios em Portugal.

Se, por um acaso tão frequente por essa Europa afora, um qualquer indivíduo fizesse um telefonema reivindicando para o Daesh a autoria da vaga de fogos no território português, não faltaria quem gritasse «terrorismo, terrorismo!».

Porém, tal não aconteceu, e ainda bem: a tragédia é um acontecimento entre portugueses e qualquer manobra desse tipo criaria um ruído que nos deixaria ainda mais longe da realidade. Já é suficientemente gravoso que o Estado se exima de fazer aquilo que o mais comum dos sensos aconselharia para segurança dos portugueses: uma exaustiva investigação criminal.

A ausência de uma acção enérgica de investigação e a insistência numa gestão comum de circunstâncias recorrentes fragilizam o governo, transformam-no em bombo da festa que se põe a jeito, à mercê dos políticos sem escrúpulos que se movimentam na oposição, dos pescadores de águas turvas que medram no lodo da instabilidade, e, sem dúvida, dos que estão por detrás da estratégia incendiária.

É fartar vilanagem, com a comunicação social na dianteira, tocando a rebate, usando os mortos para disseminar recados exigindo demissões ministeriais, ou até de todo o governo. O terror, o boato e a mentira sempre foram pilares da desestabilização. Existe, porém, um facto dispensando apresentação de prova: o agravamento do fenómeno incendiário que se regista em Portugal coincide com a vigência de um governo que, além de ser uma lufada política de ar fresco, quebrou tabus, pôs em causa doutrinas manipuladoras que apodreciam a democracia portuguesa.

Um governo que, apesar das suas enormes limitações e das flagrantes tibiezas, como a situação presente demonstra, inquieta sistemas e poderes instalados, inventores de normas arbitrárias que lhes garantem privilégios por uma espécie de usucapião.

Porém, encolhido e defensivo quando teria tudo a seu favor, incluindo o apoio das populações, se optasse por uma estratégia determinada e enérgica que conduzisse ao levantamento da realidade incendiária até às últimas consequências, o executivo arrisca-se agora a queimar grande parte do capital de prestígio que amealhou.

Vulneráveis a campanhas de propaganda sem escrúpulos, enredados numa teia de insegurança e até de terror, os portugueses poderão não perdoar ao governo os efeitos da gestão burocrática de uma situação que adquiriu uma gravidade excepcional. Entretanto, moções de censura contra o executivo entram no Parlamento; algures, por detrás da teia de «lobos solitários», os verdadeiros pirómanos terroristas agradecem as hesitações de uns, o descaramento de outros, enquanto esfregam as mãos. E continuarão a matança, até que se sintam recompensados e satisfeitos.

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