Foi há um pouco mais de dez anos o início das operações da UBER em Portugal. A entrada da UBER em Portugal representa o início do processo de liberalização do táxi, do Transporte Remunerado de Passageiros em veículo Ligeiro. Com uma fundamental diferença em relação a outros processos de liberalização nos transportes: na generalidade do sector as multinacionais pressionaram os governos – nomeadamente através da UE – para que se liberalizasse. No táxi, o grande capital age de forma directa, através de uma multinacional que usa um gigantesco poder económico para provocar a liberalização do sector.
Conta, naturalmente, com a cumplicidade de um Estado e uma comunicação social submetidos aos interesses do grande capital. Mas porque a liberalização implica a destruição de um sector económico capitalista já existente, com a expropriação, não do Estado e das empresas públicas, como no resto do sector de transportes, mas com a expropriação e proletarização de um sector económico privado, o táxi, composto no essencial por milhares de micro e pequenas empresas, os governos vão ter maiores dificuldades de liberalizar por cima. Aliás, ainda hoje, o processo não está concluído como desejaria o grande capital. Também graças à luta dos profissionais do táxi, onde a resistência à liberalização tende a unir trabalhadores e pequenos e médios empresários pois são ambos vítimas de um processo que só às multinacionais interessa.
Actuação ilegal nos primeiros 4 anos
Houve alguma comunicação social que chegou a falar nos dez anos do TVDE [Transportes em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Electrónica] em Portugal. O que não é exacto, pois o regime do TVDE apenas foi criado em 2018. O que deveria recordar-nos (mas não recordou a quem fez a festa desses dez anos) que durante os primeiros quatro anos de actividade a UBER operou em Portugal de forma completamente ilegal.
As plataformas ilegais funcionaram sem que o Estado fizesse fosse o que fosse para as retirar da rede, os carros operavam na total ilegalidade sem que a PSP e a GNR fizessem algo de minimamente sério para impedir o crime, e sem que as ditas reguladoras ditas independentes – AdC, AMT e IMT – fizessem mais que assobiar para o lado. E isto apesar de todas as queixas e denúncias, e enquanto continuavam a fiscalizar o táxi. Protestava o sector do táxi, que sofria uma concorrência completamente desleal, que praticava preços significativamente menores e utilizava uma tecnologia cuja implantação exigia um investimento só ao alcance dos Estados ou do Grande Capital. Esta situação atravessou dois Governos, primeiro o Governo PSD/CDS, e depois o Governo minoritário do PS.
Enquanto isso a Comunicação Social Dominada desempenhava o seu papel. Exultava a modernidade, os preços baixos, a limpeza dos carros da UBER, a urbanidade dos seus motoristas. Tudo em confronto com um sector do táxi cuja caricatura foi igualmente exacerbada.
Legalização da UBER – a criação do Regime TVDE
O PCP mantinha uma denúncia pública sistemática do carácter ilegal da actuação da UBER, com iniciativas concretas na Assembleia da República entre 2014 e 2017. Mas a impunidade continuava.
Finalmente, o PS e o PSD avançam para a legalização da UBER, com a criação do Regime TVDE através da lei 45/2018. Perante a pressão habitual, prometendo uma maior, melhor e mais barata oferta, só o PCP resistiu e só o PCP se opôs à lei do TVDE apresentando argumentos fundamentais que a vida veio comprovar: (1) A criação de um segundo regime para a mesma actividade económica é uma aberração, pois inevitavelmente os dois regimes iriam concorrer entre si, e nesse sentido era um ataque directo ao regime existente, o táxi; (2) A lei aprovada representava a liberalização da actividade, tendo como único beneficiário as multinacionais; (3) A questão tecnológica era uma desculpa, as plataformas já existiam no táxi, evidentemente limitadas pela lei que não permitia muitas das soluções da UBER, e poderiam desenvolver-se no quadro de uma modernização do sector do táxi que o mesmo exigia há anos e os sucessivos governos arrastavam de grupo trabalho para grupo de trabalho (importa referir que só no final de 2023 saiu a Lei de Modernização do Táxi para a qual os primeiros grupos de trabalho foram criados cerca de 15 anos antes, e sobre o conteúdo da qual fora aprovado, em 2019, o Projecto de Resolução 1553/XIII do PCP, que exortava o Governo a concretizar um conjunto de medidas de modernização do sector do táxi no sistema tarifário, na frota, nos sistemas de pagamento, na legislação e regulamentação do sector, nas relações laborais.)
«As plataformas ilegais funcionaram sem que o Estado fizesse fosse o que fosse para as retirar da rede, os carros operavam na total ilegalidade sem que a PSP e a GNR fizessem algo de minimamente sério para impedir o crime, e sem que as ditas reguladoras ditas independentes – AdC, AMT e IMT – fizessem mais que assobiar para o lado.»
O sector do táxi travou uma brava luta contra a lei do TVDE, onde contou com um único apoio político: o PCP. Todas as outras forças ajoelharam aos pés da multinacional, da liberalização e da prometida modernidade.
A resistência não foi suficiente para travar a lei, tendo conseguido, no entanto, duas concessões importantes: o compromisso – escrito na própria lei – que a mesma seria revista em três anos, e o compromisso de que seriam introduzidos contingentes, definidos pelas autarquias, para limitar o número de licenças, como acontece no táxi.
Nem um nem outro compromisso foi respeitado, apesar das sucessivas iniciativas políticas do PCP exigindo e colocando mesmo à votação quer a definição de contingentes municipais ou intermunicipais, quer a suspensão de emissão de novas licenças até à revisão da lei que deveria ter ocorrido em 2021. Sempre chumbadas por PS e PSD e restante carneirada neoliberal.
A prática da lei TVDE
Com a entrada em vigor da Lei 45/2018 foi completamente liberalizado o transporte remunerado de passageiros em veículo ligeiro, desde que realizado através de plataforma electrónica. E os resultados foram os que se deve esperar de qualquer liberalização:
– Criaram-se várias oportunidades de negócio, na formação de motoristas, como parceiros da multinacional, como motorista por conta própria, que atraíram muita gente para a actividade;
– Existiam em Dezembro de 2023, de acordo com o IMT, 13 plataformas electrónicas, cerca de 16 mil operadores de TVDE, 69 873 motoristas e 61 entidades formadoras. Para se ter uma ideia, o contingente de táxi total de Portugal Continental é de 13 470 licenças!
– As zonas e horários de actividade solvente, nomeadamente as grandes áreas metropolitanas e as zonas turísticas, foram literalmente inundadas de carros. Já as zonas onde a procura é mais escassa, em nada beneficiaram com o novo regime, tendo até perdido oferta.
– O preço reduziu-se, mas essa redução ou é conjuntural ou tem uma fonte negativa: as grandes multinacionais podem e estão dispostas a perder algum dinheiro numa primeira fase para dominarem o mercado numa segunda; o controlo absoluto do sistema pela multinacional permite-lhe reduzir as margens para os empresários e para os motoristas, impondo um nível inaceitável de exploração dos profissionais; o aumento exponencial do número de carros a operar teria de baixar um preço liberalizado, pela lei da oferta e procura, mas criou evitáveis problemas (congestionamento nas cidades, redução das margens de cada carro, poluição, promoção do transporte individual face ao colectivo, etc.).
Hoje, toda a gente em Portugal reclama a mudança da lei. Inclusive aqueles que a geraram e têm evitado a sua revisão. É, nesse sentido, uma lei unânime. Mas como as multinacionais estão razoavelmente satisfeitas, e são elas que mandam, os sucessivos governos vão inventando desculpas para nada mudarem.
Foi realizado um debate na Assembleia da República, mas sem que antes o Governo tenha levado a debate o Relatório produzido pelo IMT [Instituto da Mobilidade e dos Transportes] e as propostas de alteração à lei realizadas pela AMT [Autoridade da Mobilidade e dos Transportes]. Um debate que se centrou em lateralidades – o facto de alguns motoristas não falarem português – não resolvendo nenhuma das contradições profundas que afectam o sector. Mais que mudar algo, o CH quer capitalizar apoios junto do TVDE e o PSD quer mostrar serviço junto das multinacionais. É o jogo parlamentar, destinado a acomodar o descontentamento.
O futuro do sector
É preciso ter claro que as multinacionais estão medianamente satisfeitas, mas querem mais. Elas almejam controlar todo o sector, o que implica destruir o que resta do sector do táxi, forçando-o à progressiva assimilação pelas plataformas. Já os profissionais do TVDE querem mecanismos de defesa contra a sobre-exploração – contingentes, preços mínimos, pagamento do serviço em vazio – que no fundo são similares aos do táxi. E os profissionais do táxi querem defender a viabilidade da sua actividade. O governo irá, inevitavelmente, manobrar os profissionais do TVDE e do Táxi, e se possível virá-los uns contra os outros, para servir o seu único amo: as multinacionais. A total liberalização do sector é o passo que se segue no processo de concentração e centralização nas multinacionais de mais esta actividade económica.
É preciso resistir a esse processo, assuma ele as formas que assumir, mas é preciso igualmente ter clara a alternativa que melhor serve o interesse nacional, ou seja, o interesse dos profissionais do sector, dos utentes dos transportes públicos e da economia nacional.
Desde logo, é necessário suspender a emissão de novas licenças, e progressivamente reduzi-las até tornar a actividade sustentável. Um importante contributo para tal, agora até reclamado por muitas autarquias do PS e do PSD, é dar-lhes o direito de determinarem contingentes (municipais ou intermunicipais) também para o TVDE. Depois, é preciso dirigir a fiscalização para reprimir a sobre-exploração laboral, fazendo respeitar o direito de todos os trabalhadores terem um horário de trabalho máximo e a uma retribuição mínima por esse trabalho. E, inevitavelmente, colocar-se-á por fim que Portugal tem que se libertar das multinacionais. Como? Criando uma plataforma única e pública – mas que até pode adoptar formas cooperativas – que opere com um regime de preços não liberalizados.
Mas este futuro não nascerá na Assembleia da República. Só poderá nascer da unidade e luta dos profissionais do sector. Até lá, mandarão as multinacionais, com os governos e os partidos da política de direita a disfarçarem as suas verdadeiras intenções porque necessitam de dividir entre si os votos.
Uma última referência
Uma das razões porque a UBER foi tão acarinhada pelo capital é exterior ao sector e à sua importância relativa. É que a UBER representou a primeira ofensiva numa nova tentativa de subversão do estatuto jurídico da relação laboral, fragilizando o trabalhador ao disfarçá-lo de outra coisa. O que, apesar de aparecer neste artigo como quase uma nota de rodapé, até é o mais importante de todo este processo.
O preço da força de trabalho foi tão esmagado para baixo que ultrapassou o limite mínimo, e hoje só atrai aqueles trabalhadores que conseguem reduzir as suas necessidades materiais porque não alugam casa (ou porque dormem na bagageira ou porque partilham quarto com outros 15), porque não têm filhos a cargo (ou pelo menos, não os têm em Portugal), porque não comem em condições nem tiveram qualquer azar que os obrigue a ter despesas médicas, etc. Alguns dos que aceitam trabalhar pelo preço que o TVDE paga não falam português... que é o que preocupa a direita.
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