Nos próximos dias 25 e 27 de Abril, quando celebramos 45 anos da Revolução de Abril e também da libertação dos presos políticos de Peniche, assistimos a uma vitória da defesa da memória sobre tendências de branqueamento e apagamento do fascismo. O que significa a inauguração da primeira fase do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, no Forte de Peniche?
Era para haver apenas uma cerimónia, mas, por razões de agenda do primeiro-ministro, a inauguração da primeira fase do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade do Forte do Peniche passou a ser feita em dois momentos. No dia 25 a cerimónia oficial, com as entidades formativas e outras entidades, convidados e ex-presos. E dia 27 aquilo a que se pode chamar uma inauguração popular.
Este acontecimento tem um enorme significado político e histórico. Desde logo, porque passaram 45 anos e apesar de ter sido decidido em 1976 que haveria, em Peniche, um Museu da República e da Liberdade, passaram 20 governos sem que este facto tenha acontecido.
Daí a importância da inauguração da primeira fase do museu, com a inauguração do memorial aos 2510 presos que por ali passaram. É uma justa homenagem à participação do povo de Peniche na luta pela liberdade. Aliás, é uma terra que teve um número significativo de presos, que também lá vão estar com os seus nomes, as suas biografias e retratos.
É um acontecimento que, repito, não se trata ainda da inauguração do Museu. Trata-se da fase inicial, que tem uma exposição que nos dá uma imagem dos futuros conteúdos a integrar o museu. Hoje vemos luz ao fundo do túnel. Pensamos que este caminho é irreversível e que finalmente se abriu a possibilidade de haver uma coisa que já faltava.
Um Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, que faz associação entre estas duas questões: a conquista da liberdade é inseparável da resistência. Independentemente do mérito que os militares tiveram no derrube da ditadura, que é inegável e não devemos esquecer, isso não teria acontecido sem a longa resistência de mais de 48 anos de luta, pela qual o povo português pagou um muito elevado preço, com milhares de presos, torturados e assassinados.
Desde a primeira hora que a URAP e muitos democratas e antifascistas se insurgiram contra a opção de concessão do Forte de Peniche para fins hoteleiros. Como descreve o início de todo este processo, desde a notícia de que se visava concessionar o Forte de Peniche até ao anúncio pelo ministro da Cultura, da retirada da Fortaleza de Peniche do programa Revive?
Como é sabido, esteve no horizonte e quase a concretizar-se um atentado à democracia. Um projecto de destruir as instalações da cadeia que funcionaram na Fortaleza de Peniche, para a transformar num hotel de charme. O facto de se ter pensado já em si coloca enormes interrogações. Ainda mais grave é que se tratava de destruir o símbolo mais odioso do sistema carcerário no continente. E era praticamente o último símbolo. Tinham desaparecido a sede e a escola da PIDE, Caxias, Porto, Angra do Heroísmo, os tribunais plenários. É o último grande símbolo da existência da repressão fascista.
«Um Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, que faz associação entre estas duas questões: a conquista da liberdade é inseparável da resistência.»
Conseguiu-se, felizmente, reverter essa situação. Houve um sobressalto das forças democráticas e antifascistas, que se mobilizaram. A URAP teve aqui um papel importantíssimo com uma petição com 5 milhares de assinaturas.
Com esta decisão, de certo modo, conseguiram-se duas conquistas. Uma foi a própria preservação daquele monumento da repressão fascista e, simultaneamente, um local muito adequado – que aliás já se dizia no decreto de 1976 – para a instalação do Museu Nacional da Resistência.
Estão previstas partes museológica, arquivística, de consulta e documental. Trata-se de um museu cujo objectivo fundamental é não deixar esquecer que o fascismo existiu. E que o conhecimento sobre o que foi o fascismo e como a liberdade foi conquistada possa passar para as novas gerações. É um instrumento de pedagogia democrática e de valores da liberdade, sem o qual não é possível preservar a liberdade conquistada em 1974.
Como vê a influência do actual quadro político na concretização do Forte de Peniche como memorial?
Não podemos esquecer que foi este Governo que tomou a decisão. Mas esta política de silêncio e de apagamento da memória não é só dos governos de direita. Passaram 20 governos de várias composições com PS, PSD e CDS.
Há um facto histórico: este passo foi dado com este Governo e neste quadro político concreto e isso não é pouco. É muito difícil imaginar que um governo de direita recuava neste aspecto. Antes pelo contrário.
Como vê, num mundo onde surgem muitas forças anti-democráticas, neo-fascistas e de extrema-direita, com particular incidência em alguns países europeus, que em Portugal se verifique esta valorização da memória, com participação popular?
A instalação definitiva do Museu no Forte de Peniche tem ainda um outro significado quando em vários países do mundo e, nomeadamente na Europa, se assiste à resistência em sublinhar os símbolos da apologia fascista. É o caso de Vale dos Caídos [em Espanha] e outros.
É diferente a memória da repressão fascista dos símbolos de propaganda fascista, como no caso da Polónia, em que tudo o que é nome de revolucionários está a ser apagado, sendo recuperados símbolos do fascismo e nazis.
Ora bem, isto vai ao arrepio dessa corrente e é curioso que as entrevistas que se têm dado e a divulgação sobre a decisão de se criar o Museu da Resistência e da Liberdade em Peniche têm causado grande entusiasmo em Espanha e no Brasil, entre outros países. Precisamente porque consideram que esta decisão é um apoio à sua própria luta contra o ressurgimento de tendências fascistas e fascizantes, que hoje é uma ameaça muito séria.
«Se não houver uma pedagogia de formação democrática, criamos uma sociedade muito permeável àqueles que precisamente sonham em aniquilar os valores da liberdade.»
Portanto, falar do fascismo e do que ele significou de opressão, obscurantismo e miséria, para os jovens é falar de um mundo que não conhecem e até têm muitas dificuldades em imaginar que isto se passou assim. Se não houver uma pedagogia de formação democrática, criamos uma sociedade muito permeável àqueles que precisamente sonham em aniquilar os valores da liberdade.
Fez parte da Comissão de Instalação dos Conteúdos e da Apresentação Museológica que elaborou e entregou ao ministro da Cultura, aquando dos 44 anos da libertação dos presos políticos, um guião com os conteúdos para o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade. Como avalia este trabalho?
Quanto aos conteúdos, o museu vai ter documentos da resistência e documentos do fascismo, documentos que mostram o que é o fascismo. Além do memorial, com os nomes dos 2510 presos que somam dezenas de milhares de anos de privação da liberdade, quando estiver definitivamente instalado, terá um mural dedicado aos mártires.
O fascismo não teve só presos. Infelizmente, teve também muitos antifascistas assassinados nas ruas, nos campos, em luta, torturados até à morte na PIDE, no Campo de Concentração do Tarrafal. O museu vai integrar um memorial à memória aos mártires e que são aqueles que lutaram pela liberdade e não tiveram a felicidade de a ver.
A nossa população conhece muitos nomes de gente muito diversa, artistas, futebolistas, etc. Mas muito poucos conhecem aqueles que deram a vida para que o nosso povo viva em liberdade. Isso já em si coloca um problema. É um dever democrático carregar a memória dessa gente. Sem essa luta a gente não tinha liberdade. O memorial vai preencher essa justiça de não esquecer esses nomes.
Os conteúdos vão ter uma base cronológica. Como nasceu o fascismo, como se implantou, que o fascismo não nasceu de geração espontânea, teve um caminho. As medidas que tomou, a filosofia, a ideologia, os crimes que cometeu, mas também quem foram as classes beneficiadas. Fala-se muito da PIDE, do Estado, de Salazar. Mas nunca se fala de que o fascismo existiu para beneficiar os agrários, os grandes grupos económicos e financeiros. Sem esses, a base social do fascismo não teria existido.
É um Museu da Resistência e da Liberdade, não é um Museu sobre o 25 de Abril. Isso é outra coisa que terá de haver e que alguns militares reivindicam, com razão. O 25 de Abril é corolário da resistência, é o dia da liberdade.
O museu terá também, e já nesta fase terá alguns aspectos, sobre as cadeias, que eram naturalmente um lugar de sofrimento, repressão e humilhação, mas que foram também lugares de muitas lutas contra a repressão, contra a barbaridade dos carcereiros e pela dignidade dos presos. E as próprias fugas, houve muitas fugas das cadeias, algumas mais célebres, outras menos célebres. Não se podem pôr todas ao nível de Caxias e de Peniche, como a do Dias Lourenço, que teve um carácter espectacular, mas houve muitas outras que não foram pouco importantes e que foram grandes derrotas para o fascismo.
Por último, para futuro, o que diria às crianças e jovens portugueses se lhes pudesse falar desta questão?
Eu tenho alguma experiência, porque eu e a Conceição Matos já fomos porventura a umas cem escolas, já falámos para muitos milhares de jovens. É curioso que, a princípio, quando começámos a ir às escolas, havia algum espanto quando dizíamos que no fascismo se matavam pessoas, que se espancavam, mas havia jovens ainda com memória, pois, sendo crianças, tinham pais ou avós que conheciam ou até familiares ou vizinhos envolvidos.
Depois isso foi-se esbatendo. Começaram a aparecer uns miúdos que só conheciam «o meu avô». E agora raramente se encontra um jovem que tenha relações familiares directas. E percebe-se, são 45 anos, um pai que tenha hoje 45 anos não tinha nascido e não viveu no fascismo.
«É um dever democrático carregar a memória dessa gente. Sem essa luta a gente não tinha liberdade.»
Falamos de jovens para quem «a liberdade é como respirar». Não lhes passa pela cabeça, e até acham absurdo, que expressões de sentimentos de rapazes e raparigas nas escolas e coisas tão elementares como manifestações afectivas fossem proibidas. Para eles é uma coisa estranhíssima, às vezes até ficam a pensar se não é «tanga». Uma vez, um miúdo perguntou-me se aquilo não eram umas «galgas», tal era o absurdo. Não podiam andar de mão dada, não podia haver rapazes e raparigas na mesma escola, não podiam ir ao cinema ver os filmes que queriam, nem podiam ouvir as cantigas que queriam. Para eles é uma coisa difícil de encaixar. Uma coisa tão absurda, tão obscurantista...
Mas não se trata só de falar do passado, nem incutir nos miúdos um grau de cultura só sobre o passado. Trata-se também de os estimular na defesa da liberdade e de aprender a dizer «nunca mais!».
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