Por motivos só aparentemente aleatórios, há anos que ficam registados nas páginas douradas da memória dos povos e outros que se recordam como se tivessem sido arbitrariamente apagados.
Em termos globais, 1969, com Neil Armstrong a pisar pela primeira vez o solo lunar, está colocado, seguramente, num dos planos mais salientes do século passado.
No pequeno rectângulo luso, então mergulhado em quase meio século de ditadura, 1969 ficou ligado à esperança de mudança, criada nas almas mais crédulas, da «Primavera Marcelista» que sucedeu à queda da cadeira de Salazar, ilusão já totalmente desvanecida em 1973, com a continuação da guerra em África e a agudização da repressão.
Quanto a 1973, parece, injustamente, repousar no leito mais baço do esquecimento, apesar do auspicioso início com o acordo de cessar-fogo no Vietnam (que consagrou a derrota dos EUA e a inutilidade absurda dessa guerra que causou milhões de vítimas, considerada, na altura, essencial para a defesa do «mundo livre»), e a esperança criada com a eleição do presidente Allende, no Chile, em Março.
Na realidade, o ano que antecedeu o da nossa libertação acabou tragicamente, em Novembro, com o sangrento golpe de Pinochet financiado pelos EUA, depois travestidos em pomba da paz e campeões da democracia, com «putch´s», atentados, invasões e bombas no currículo.
Foi nesse enquadramento global que aconteceram o segundo Congresso da Oposição, em 1969, e o terceiro, em 1973, de que se comemora este ano o cinquentenário, ambos realizados em Aveiro, minha cidade natal.
Foram também (69 e 73) anos de «eleições» em que a resistência à ditadura se manifestou de forma pujante, no meio de lutas menos conhecidas travadas nos campos, nas empresas, nas universidades e nas diversas frentes da guerra colonial.
«[…] se, em 69, a «Primavera marcelista» se manteve frouxa e enganadora, em 1973, o frio invernoso estava de volta e, de primaveril, o que mais se aproximou foi o III Congresso da Oposição em Aveiro e a “campanha eleitoral”, que hoje sabemos ter sido a última antes dos cravos da libertação»
Contudo, algumas diferenças marcam o contexto sócio- político das duas datas:
Em 1969, para criar uma aparência de mudança num momento de fragilidade do regime – e face a um crescendo de greves, manifestações e actos de resistência, onde se integra a maior crise estudantil – este «adoçou» as formas mais exuberantes da repressão, de que é exemplo a prisão dos dirigentes estudantis de Coimbra pela Polícia Judiciária e não pela PIDE, então passada a «Direcção Geral de Segurança».
Em 1969 houve «conversas em família» na TV, uma «ala liberal» que prometia tíbios esboços de protesto na Assembleia Nacional do partido único («União Nacional» passada a «Acção Nacional Popular»), e acenos nos bastidores de uma eventual legalização da oposição mais cor-de-rosa, desde que se portasse bem e se demarcasse do PCP, único partido activo e organizado (na clandestinidade), por isso tratado como «associação criminosa» com direito a tortura, prisão maior e «medidas de segurança» sem limite para os seus membros.
Hoje, tantas décadas passadas, parece incompreensível que o simples pedido de direito à palavra por parte de um representante da comunidade estudantil tenha sido considerado como um gesto de intolerável subversão. O último ano da sexta década do século passado, não foi para Portugal um ano qualquer. Meio século depois, para grande parte dos portugueses, a distância é tanta que o tempo dilui factos e personagens, e vai apagando a sua relevância e memória. Talvez seja oportuno, num tempo em que se pretende diminuir o papel da História nos programas escolares, lembrar um passado que os mais velhos viveram, quanto mais não seja pela sua ligação ao presente e lições que dele se possam tirar. A memória de um tempo brutal e opressivo serve, seguramente, para prevenir sacrifícios futuros, se a conseguirmos passar às gerações mais novas. Relembremos que já em finais de 1968, depois da queda da cadeira de Salazar, em Agosto, num regime que proibia qualquer protesto colectivo, as greves começaram a rebentar por todo o lado. «A memória de um tempo brutal e opressivo serve, seguramente, para prevenir sacrifícios futuros, se a conseguirmos passar às gerações mais novas» A da Lisnave, ainda nesse mesmo ano, as da General Motors e da Ford, já em Fevereiro de 1969, e logo, em Março, as da Covina, Cel-Cat, Diogo de Ávila, Utic, Robiallac, Parry & Son, Trefilaria, Fábrica Simões, Arsenal, Cimentos Tejo, Firestone, CNE, CUF, Tabaqueira, Loiça de Sacavém, Sacor, Sapec, Ecril, Mague, Tudor, Nitratos de Prata, a que, entre outras, ainda se pode acrescentar a dos ferroviários. Nesses primeiros meses de 1969, num país pouco industrializado, mais de cem mil operários estão em greve, desafiando uma ditadura que a proíbe e reprime. E essa componente da luta operária, tantas vezes esquecida ou menorizada, mostra que o passado que mais se escreve, tem, frequentemente, uma marca de classe. Em Aveiro, então bem mais pequena do que é hoje, o núcleo duro de opositores à ditadura, então em plena fase de encenação da «Primavera Marcelista», preparava já o II Congresso Republicano. No centro da importante iniciativa, como já o tinha sido no I Congresso, também em Aveiro, em 1957, encontrava-se Mário Sacramento, médico, escritor, intelectual de primeira grandeza1, com enorme prestígio e projecção nacional, depois tão esquecido nas homenagens do poder, que tantas vezes preferiu salientar personalidades medíocres ou de segunda linha, talvez pelo «pecadilho» de ser membro do então único partido resistente organizado e na clandestinidade, o PCP2. Mário Sacramento morreu há meio século, em Março desse ano de 69, com 48 anos de idade e cinco prisões que lhe marcaram o corpo e a mente, a primeira quando era ainda aluno do liceu. «Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem – físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais. Mas, que as não tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que me foi possível para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado! E lembrem-se que nós, os mortos, iremos nisso ao vosso lado!». (Carta-Testamento, Abril, 1967)3. O II Congresso da Oposição ir-se-ia concretizar dois meses depois da sua morte, em Maio de 69, preparando o caminho para as eleições de 26 de Outubro, outra fachada democrática com que o regime procurava disfarçar a sua alma fascista, depois da derrota de Hitler e Mussolini na II Guerra Mundial. «Mário Sacramento morreu há meio século, em Março desse ano de 69, com 48 anos de idade e cinco prisões que lhe marcaram o corpo e a mente, a primeira quando era ainda aluno do liceu» O lugar de secretário do II Congresso ficou com uma cadeira vazia4, símbolo da importância da perda, salientada também no desenho gigante do seu perfil, pregado no pano de fundo do palco por onde passariam algumas das maiores figuras da cultura portuguesa. O grande resistente, tão precocemente desaparecido, não chegou a ver o III Congresso da Oposição em Aveiro, em 1973, que continuou o trilho já aberto, e cujo último acto – uma grande manifestação de romagem à sua campa – foi violentamente reprimido pela polícia de choque, mostrando o medo que o regime tinha da força da sua memória. Também não chegou a ver o início da maior Crise Estudantil, em Coimbra, desencadeada cerca de um mês depois de nos ter deixado, com o pedido do Presidente da Associação Académica de Coimbra (AAC) de, em nome dos estudantes, usar da palavra na cerimónia de inauguração do novo edifício das Matemáticas, a 17 de Abril de 1969. Hoje, tantas décadas passadas, parece incompreensível que o simples pedido de direito à palavra por parte de um representante da comunidade estudantil, num evento marcante da Universidade a que pertencia, tenha sido considerado como um gesto de intolerável subversão, provocando a maior perturbação nas hostes da ditadura que desencadeou uma cascata de actos repressivos – prisão do Presidente da AAC no mesmo dia, suspensão de oito dirigentes e posteriores processos disciplinares a mais de quatro dezenas, prisões e interrogatórios pela PSP e Judiciária, encerramento da AAC, mobilização coerciva para a tropa – a que os estudantes foram respondendo com greves a aulas e exames, para além de outras manifestações de solidariedade e de protesto. Naturalmente que a justamente chamada «Crise de 69» – que, ao contrário de como é habitualmente relatada, se prolongou com picos de uma ainda maior violência até meados de 71 (numa sucessão de eleições, greves, manifestações, cargas policiais, prisões e tortura de estudantes pela PIDE em Caxias e novo encerramento da AAC) – não caiu do céu ou foi fruto de uma cartada solta dos seus dirigentes. «Hoje, tantas décadas passadas, parece incompreensível que o simples pedido de direito à palavra por parte de um representante da comunidade estudantil num evento marcante da Universidade a que pertencia, tenha sido considerada como um gesto de intolerável subversão» Antes do pedido da palavra que marcou o estalar da Crise – iniciativa nascida na Junta de Delegados de Ciências (utilizadores das novas instalações) e adoptada pela Direcção da AAC e pelo seu Presidente – houve todo um percurso de mais de uma década de persistentes lutas e protestos estudantis contra o ambiente opressivo e retrógrado das Universidades Portuguesas, com maior relevância em 1957, 1962 e 1965, alguns dos quais (como em 1962) com uma expressão simultânea nas três universidades existentes na altura. Para quem viveu a crise estudantil de 1969 em Coimbra, que agora também comemora a passagem de meio século, a sua importância pelo papel que desempenhou na frente de luta contra a ditadura e na compreensão das formas de resistência cívica às arbitrariedades do poder, não pode ser diminuída. O enfrentamento que constituiu a greve aos exames, quando o risco de perda do ano e por vezes do curso, com automática mobilização para a guerra, eram então postos em cima da mesa de muitos dos que não queriam trair a vontade da imensa maioria expressa em Assembleia Magna, representou um sacrifício colectivo que mudou a academia e a cidade para sempre. A alegria que impregnou a luta e a dignidade conquistada marcou indelevelmente os que viveram essa época e foram muitos e inesquecíveis os momentos de fraterna emoção que afloraram no meio dos obstáculos vencidos. Coimbra começou o ano de 1969 ainda mergulhada num ambiente de atrasado provincianismo, com a boémia das bebedeiras, os lares para raparigas e a separação dos sexos, onde apenas se consentiam os bailes às quartas e sábados (em que ainda se perguntava «a menina dança?»), marca do atraso cultural e da falta de cosmopolitismo de um quotidiano triste e baço ainda mais marcado que no das grandes cidades do Porto ou de Lisboa, e entrou na década de setenta, respirando já um ar mais puro, com uma academia mais livre, moderna e politizada, onde rapazes e raparigas conviviam sem os velhos e caducos preconceitos que viam no simples uso de calças ou na ida ao café sem companhia, uma inaceitável degradação da moral feminina. «A alegria que impregnou a luta e a dignidade conquistada marcou indelevelmente os que viveram essa época e foram muitos e inesquecíveis os momentos de fraterna emoção que afloraram no meio dos obstáculos vencidos» E se em 69, só na despedida dos estudantes castigados que iam para a tropa surgiram protestos explícitos contra a guerra colonial (questão sensível que o regime não tolerava), nos anos seguintes a consciência da sua perversa continuação e da entrega da riqueza do país a interesses de uma elite parasitária que não tinha em conta a miséria e desastre em que mergulhava todo um povo, tornou-se cada vez mais consensual e consciente, aflorando em todas as frentes políticas em que a juventude marcava presença. Também quanto a isso Mário Sacramento usou a História e os seus ensinamentos para contornar, com elevação, a censura do regime, dizendo tudo. Deixemo-nos agarrar pelo brilho do seu último discurso, nas comemorações do 31 de Janeiro, em 69, no velho Teatro Aveirense: «O 31 de Janeiro de 1891 foi, assim, o estrebuchar de um povo que supôs bastar-lhe a mudança de patrão – o rei, no caso – para resolver os seus dramáticos problemas. Não há dúvida que o patrão se tornara um mero feitor de interesses abstencionistas, pois os verdadeiros donos do País eram os proprietários ingleses do vinho do porto, por exemplo, ou as companhias estrangeiras que exploravam os nossos recursos metropolitanos e ultramarinos. Merecia que o escorraçassem, e a quantos partilhavam tais despojos! Mas mudar de feitor não é transformar as estruturas que administre por conta alheia. Distinguir o falso dono do verdadeiro proprietário – seja ele inglês, americano ou alemão – é o passo fundamental que desde sempre se nos impôs dar para que a Pátria seja verdadeiramente nossa e, como tal, soberana e livre.» Haverá mensagem mais actual, quanto à política imperial e predadora dos EUA de Trump e da União Europeia de Merkel, Hollande ou Macron, com os seus ultimatos e a suas «regras» que atropelam toda a legalidade e legitimidade e o respeito pela soberania e dignidade das nações ? «[…]Onde os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos não estão enraizados e podem ser coartados sem dificuldade. A política não é mais do que a cúpula do edifício societário. Pode ser pintada de mil maneiras, mas não deixa por isso, de fazer corpo com as paredes que a sustentam». Haverá palavras mais oportunas, num momento em que o fino verniz da verve democrática do neoliberalismo estala, sacrificando, «em casa», as liberdades e direitos dos cidadãos, cavando mais as desigualdades, descredibilizando as estruturas democráticas? Pode-se ser mais claro quando a extrema-direita fascista cresce e integra ou domina o poder em quase metade dos países da Europa, onde ressurge abertamente o racismo, a xenofobia e o tratamento desumano dos refugiados das guerras que o grande capital engendra? «Mas pode-se ver o fim à História? É evidente que não. A História é um fazer incessante e nunca ninguém viu ou verá tudo aquilo por que se bateu ou luta, pois fica algo a meio do caminho. Ficou a meio do caminho o 31 de Janeiro de 1891. Está a meio do caminho o 31 de Janeiro de 1969, pois há outros oradores depois de mim. Vai a meio do caminho, quanto à Humanidade, a ida à Lua, a Vénus, a Marte e não seremos nós os Vascos da Gama de tais jornadas. Nenhum desses planetas aceitaria, aliás, ultimatos como o que Afonso de Albuquerque enviou ao sultão de Ormuz ou que o embaixador Petre entregou a D. Carlos de Bragança. Não se faz a História com ultimatos, nos nossos dias. Mas faz-se, como há 78 anos, com vivas como este. Viva a libertação!» «[…]onde os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos não estão enraizados e podem ser coartados sem dificuldade» O que Mário Sacramento não adivinhava é que com a queda da União Soviética e o fim da Guerra Fria, os ultimatos como o de Afonso de Albuquerque ou do embaixador Petre voltariam. Na antiga Jugoslávia, no Iraque, na Líbia, na Síria, na Cisjordânia, na Venezuela. Também por isso, no mês dos cravos, podemos repetir o último «viva!» com que terminou o discurso de 31 de Janeiro de 1969. Ele permanece tão actual como na altura. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. 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1969 – cinquenta anos depois
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Quanto à guerra colonial, contudo, nenhum amolecimento, nenhuma cedência, nem na aparência. Continuou a lei da rolha absoluta e a firmeza do chicote sem disfarces nem açúcar, mantendo o lema de que «a pátria não se discute», porque qualquer dúvida era «ser contra a nossa civilização e querer entregar o Ultramar aos comunistas» (que comiam criancinhas e davam injecções atrás da orelha aos velhos).
Tudo isso embrulhado num ambiente de intoxicação colectiva, em alguns aspectos similar ao que se passa actualmente com a guerra na Ucrânia que, embora sem soldados portugueses no terreno e sem PIDE, também não se pode discutir (há o agressor e o agredido e… ponto final!).
A verdade é que já então Portugal integrava a NATO (foi um dos países fundadores), organização mais interessada no anticomunismo feroz do regime de Salazar e Caetano, do que nas liberdades democráticas que tanto apregoa.
Mas se, em 69, a «Primavera marcelista» se manteve frouxa e enganadora, em 1973, o frio invernoso estava de volta e, de primaveril, o que mais se aproximou foi o III Congresso da Oposição em Aveiro e a «campanha eleitoral», que hoje sabemos ter sido a última antes dos cravos da libertação.
É desse III Congresso que agora se comemora o meio século que passou, quase o tempo que a ditadura tinha na altura, o que dá uma ideia de como todas as crianças, jovens e adultos de então (excepto os mais velhos) tinham nascido e crescido sob o seu jugo, interiorizando como «natural» e «normal» a imutabilidade de décadas de violência e opressão.
Para os que não viveram essa longa noite, é difícil descrever as dificuldades por que passavam os que resistiam a esse domínio do quotidiano e da consciência, feito não só de repressão e censura, mas também de propaganda e condicionamento das mentes sujeitas a essa «normalidade» artificial, onde o hábito, o medo e os pequenos condicionamentos e cedências se entranhavam na carne e envenenavam o ar.
«Para os que não viveram essa longa noite, é difícil descrever as dificuldades por que passavam os que resistiam a esse domínio do quotidiano e da consciência, feito não só de repressão e censura, mas também de propaganda e condicionamento das mentes»
Nesse aspecto, o ambiente vivido nos primeiros anos da guerra colonial pelos que a ela se opunham, pode-se comparar, de certa forma, aos que, nos tempos que correm, não apoiam as provocações e a corrida armamentista da NATO e têm a coragem de criticar a ajuda bélica ao regime reaccionário, xenófobo e corrupto da Ucrânia, mesmo quando defendem a paz sem apoiarem o capitalismo autoritário de Putin.
Claro que em 1973 havia a censura assumida, a PIDE, a tortura e o risco real de prisão no Aljube, em Caxias ou em Peniche. Mas a realidade paralela descrita então na TV ou em programas de rádio como «Rádio Moscovo não fala verdade» (que negava a existência do Sputnik e aguçava os mais primários preconceitos anticomunistas contra todos os que se lhe opunham, acusando-os de estarem a soldo de Moscovo), parece ressurgir agora, a pretexto de uma guerra longínqua travada nas fronteiras da Rússia (não comunista), com a intoxicação propagandística que vitupera qualquer esboço de análise ou de contraditório, aproveitando velhos preconceitos russófobos para impor o «novo normal» das fake news a que já nos habituaram as belicosas narrativas da NATO e dos EUA.
O III Congresso de Aveiro, realizado de 4 a 8 de Abril de 1973, foi também, quanto à análise e contestação da guerra nas colónias – então apresentada pelo regime como a «defesa das províncias ultramarinas contra o terrorismo» –, um marco no avanço da Oposição à política belicista da ditadura, que procurava manter os interesses do império em África, remando desesperadamente contra os ventos da História.
Quanto a esse crucial problema, o III Congresso de Aveiro foi importante pelo acordo alcançado entre os diversos sectores democráticos na condenação da guerra nas colónias, quebrando o inicial isolamento do PCP, pioneiro na assunção de uma posição claramente anticolonial.
Assim, na «Declaração Final do III Congresso da Oposição Democrática», aprovada na sua sessão de encerramento, pode ler-se (pag. 154): «os objectivos imediatos, possíveis de atingir através da acção unida das forças democráticas, são: Fim da guerra colonial; Luta contra o poder absoluto do capital monopolista; Conquista das liberdades democráticas».
Os três «Dês» do MFA e da Revolução de Abril que aconteceria no ano seguinte – Democratização, Desenvolvimento e Descolonização – eram já aí enunciados (e metade das duas centenas de intervenções reflectiam trabalhos colectivos) dando-se outro passo em frente na caracterização do adversário principal, apontando a luta contra o poder do grande capital monopolista.
Para as gerações mais novas ou menos informadas, pode parecer estranho ou contraditório a realização de «Congressos da Oposição» e de «eleições», num país que se encontrava há muito sob o jugo de uma brutal ditadura.
«O III Congresso de Aveiro, realizado de 4 a 8 de Abril de 1973, foi também, quanto à análise e contestação da guerra nas colónias – então apresentada pelo regime como a “defesa das províncias ultramarinas contra o terrorismo” –, um marco no avanço da Oposição à política belicista da ditadura»
Mas o nazi-fascismo tinha sido derrotado em 1945 pela aliança do «Ocidente» com a União Soviética (tendo esta suportado os maiores custos humanos e materiais mas também recebido os principais louros da vitória), e o «Estado Novo» de Salazar, confesso admirador de Hitler e de Mussolini, teve de se adaptar, aceitando pintar-se com um fino verniz democrático para enganar quem quisesse ser enganado, (como os países da NATO), aproveitando o clima da Guerra Fria.
Quanto à Oposição, aproveitava esses períodos para esticar ao máximo os limites que iam sendo cedidos pela pressão da movimentação popular, não só no quadro da realização dos eventos em si (comemorações, jantares, homenagens, congressos, «eleições») mas, principalmente, pelas oportunidades conseguidas durante a sua preparação, justificando contactos, reuniões, cartazes, comunicados, manifestos e publicações, desenvolvendo uma actividade que, em tempos «normais», seria duramente reprimida.
No quadro unitário de luta legal e semilegal, em que o papel do PCP era essencial (ancorado na sua organização clandestina), jogava-se um delicado equilíbrio de estratégias contrárias: o regime encenava uma liberdade que não existia para fins de propaganda interna e internacional; os democratas aproveitavam o aliviar da pressão para reunir, mobilizar e denunciar o carácter ditatorial do regime, apresentando soluções alternativas e pressionando os limites, sem caucionar os objectivos propagandísticos do governo.
«embora permitindo a realização do III Congresso, o governo de Marcelo Caetano não deixou de utilizar as forças repressivas para dificultar o acesso aos que nele queriam participar»
Assim, embora permitindo a realização do III Congresso, o governo de Marcelo Caetano não deixou de utilizar as forças repressivas para dificultar o acesso aos que nele queriam participar, na esperança de que este se resumisse a um punhado de declarações formais de algumas personalidades, esvaziadas de profundidade e de sentido colectivo.
Notas ameaçadoras publicadas nos jornais e transmitidas na rádio e televisão tentaram desmobilizar os que tencionassem participar no congresso, e o regime não hesitou em, para além de prisões e proibições de todo o tipo, montar um importante dispositivo policial à volta da cidade de Aveiro, interceptando automóveis e camionetas vindas das mais diversas regiões do país, fazendo até parar comboios (como o «Rápido» Porto-Lisboa) durante horas.
O parque de campismo de Aveiro foi encerrado e divulgaram-se boatos sobre a existência de mortos e falsos apelos da organização à desmobilização dos congressistas.
Apesar disso, o governo, nada conseguiu.
A maioria das barreiras foram ultrapassadas, encontraram-se desvios por estradas secundárias, alguns continuaram a pé ou de bicicleta e, dos chegados a Aveiro, muitos encontraram abrigo em casas de democratas locais (como a dos meus pais, onde todos os cantos foram ocupados por jovens e estudantes de Coimbra) e o III Congresso foi um êxito, juntando milhares de pessoas numa festa da democracia.
No último dia, vendo frustrada a tentativa de se apresentar como aceitável aos olhos da Europa e do mundo, o regime mostrou mais as suas garras e mobilizou a polícia de choque para impedir a romagem à campa de Mário Sacramento, figura notável da intelectualidade e da democracia portuguesa, comunista, preso e torturado múltiplas vezes, inspirador dos Congressos de Aveiro, precocemente falecido em 1969.
«Há dezenas de anos que sofro o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem. Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!» Estes são extractos do testamento político do médico, escritor neo-realista, ensaísta e político português Mário Emílio de Morais Sacramento, nascido a 7 de Julho de 1920, em Ílhavo. Figura destacada do movimento da oposição democrática ao fascismo, a sua actividade, nomeadamente como militante do PCP, levou-o por diversas vezes às prisões da polícia política de Salazar – PIDE (PVDE, entre 1933 e 1945) –, incluindo a do Aljube e de Caxias. Mário Sacramento participou nas campanhas eleitorais para a Presidência da República, do general Norton de Matos e do professor Ruy Luís Gomes, foi secretário-geral do I Congresso Republicano de Aveiro, que decorreu em 6 de Outubro de 1957, e integrou a representação da Sociedade Portuguesa de Escritores no Congresso dos Escritores Europeus, realizado em Itália, em 1965. Com a saúde a deteriorar-se, recolheu à Pousada de São Lourenço, no Caramulo. Foi aí que, em 1967, escreveu o seu famoso testamento político, onde deixou o alerta de que «o fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra!». O autor viria a falecer dois anos mais tarde, no Porto. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Nacional|
Mário Sacramento nasceu há 100 anos
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E as muitas centenas de pessoas que se dirigiam, pela avenida principal, ao cemitério, viram-se espancados pela polícia que investiu sobre elas com uma violência inaudita.
O III Congresso da Oposição, foi, pela profundidade e expressão colectiva das suas teses e conclusões, um marco na luta do povo português por uma sociedade mais justa, livre da exploração e do colonialismo, preparando a campanha eleitoral que se iria seguir em condições particularmente duras, fazendo já adivinhar o fim da Ditadura em Abril do ano seguinte.
Mas, como disse Mário Sacramento no seu derradeiro discurso, em 31 de Janeiro de 1969, «onde os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos não estão enraizados e podem ser coarctados sem dificuldade.»
Nada mais verdadeiro, nada mais actual.
Por isso, no próximo dia 1 de Abril, numa organização da União dos Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) comemorando os cinquenta anos da realização do III Congresso de Aveiro, alguns dos que nele participaram e muitos cidadãos que comungam os mesmos ideais, irão desfilar nessa cidade, em defesa princípios aí defendidos, cada vez mais ameaçados a pretexto da crise financeira, da Covid ou da guerra na Ucrânia.
Meio século depois, apesar dos avanços conseguidos, continua ser imprescindível a unidade na luta pela paz, pela democracia e contra o domínio do grande capital.
Jorge F. Seabra, Março, 2023
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