«Hoje em dia, as pessoas não respeitam nada.
Dantes, punham-se num pedestal a virtude, a honra, a verdade e a lei.
A corrupção campeia na vida americana dos nossos dias.
Onde não se obedece a outra lei, a corrupção é a única lei.
A corrupção está a minar este país.
A virtude, a honra e a lei esfumaram-se das nossas vidas.
Declarações de Al Capone ao jornalista Cornelius Vanderbilt Jr.
(Liberty, 17 de Outubro de 1931), alguns dias antes de ser preso.
Causa alguma perplexidade que os eurodeputados do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde (GUE) tenham atribuído o prémio «Jornalistas, denunciantes e defensores do direito à informação», que vai na sua segunda edição, a Julian Assange, o fundador da Wikileaks, a Yasmine Motarjemi, denunciante de falhas de segurança alimentar da Nestlé e ao português Rui Pinto, por participação no Football Leaks.
Estranho por se fazer equivaler as denúncias de Assange e Motarjemi às de Rui Pinto. Estranheza multiplicada pelo método processual de cada um dos premiados e pelo seu percurso na defesa do direito à informação. Os dois primeiros desvendam os mecanismos que suportam o funcionamento do estado burguês. Assange apresentou as evidências contemporâneas da verdadeira natureza e do real funcionamento do estado imperialista e seus lacaios.
Assange e a Wikileaks desmontaram a face humana do imperialismo que todos os dias é vendida pela comunicação social mercenária, que a transacciona sem pudor por todos os canais mediáticos ao seu serviço e ao serviço da plutocracia que a comprou, estripando o jornalismo de investigação, uma raridade cada vez mais rara, de qualquer independência e isenção, para que o pensamento dominante transforme a democracia numa fábrica de retóricas inúteis, despolitizando as sociedades com o objectivo de que a esperança numa sociedade outra morra antes de nascer. Comprovaram e desmontaram as tramóias da política externa e interna dos estados burgueses.
O que Assange e a WikiLeaks fizeram é um feito histórico. Puseram a nu o funcionamento do Estado burguês, do Estado imperialista, a hipocrisia, a brutalidade, as práticas desonestas a que recorrem rasgando as normas mais básicas do direito internacional para assegurar a continuidade da exploração pelo capital. Contra todas as evidências, sem argumentos perseguiram-no sem tréguas até, finalmente, o prenderem.
Yasmine Motarjemi, vice-presidente adjunta da Nestlé, responsável mundial pela segurança sanitária dos produtos Nestlé, foi demitida por denunciar as falhas da multinacional, na sequência do escândalo de uma epidemia de salmonelas noutro grande grupo mundial de produtos lácteos, a Lactalis, em que os defensores dos direitos dos consumidores questionaram a inexistência de qualquer sinal de alerta, havendo quase a certeza de ser praticamente impossível que um caso de tal dimensão escapasse aos responsáveis de segurança alimentar da Lactalis.
Corajosamente, Yasmine Motarjemi denunciou falhas de segurança da Nestlé por laxismo nos processos de controle, por os interesses económicos se sobreporem às normas de segurança sanitária. Foi imediatamente perseguida, vilipendiada. Ela explicou com grande clareza porque é que nessa área as denúncias são raras: «o problema é que o assédio psicológico, o licenciamento abusivo, a que se sucede o desemprego, ameaça todos os que ousam denunciar as negligências.
«O que Assange e a WikiLeaks fizeram é um feito histórico. Puseram a nu o funcionamento do Estado burguês, do Estado imperialista, a hipocrisia, a brutalidade, as práticas desonestas a que recorrem rasgando as normas mais básicas do direito internacional para assegurar a continuidade da exploração pelo capital»
A perseguição psicológica é utilizada para exercer represálias contra quem faz os alertas, mas essa perseguição tem igualmente repercussões sobre os outros trabalhadores, fragiliza a segurança sanitária dos produtos de múltiplas maneiras». A perseguição faz-se de muitas formas, desenrola um espesso manto de silêncio, silenciando quem os poderia delatar. Um dilema que ela bem conhece. Depois de vários anos a fazer avisos internos sem consequências decidiu torná-los públicos. Perdeu o emprego e foi forçada à pré-reforma por alegadamente ter violado normas de confidencialidade da multinacional.
Que há de comum entre Assange, Motarjemi e Rui Pinto, a quem os eurodeputados decidiram elevar ao mesmo patamar dos «Jornalistas, Denunciantes e Defensores do Direito à Informação»? Nada, rigorosamente nada, a não ser que se aceitem por boas as preocupações éticas de Al Capone.
Rui Pinto é um ladrãozeco, como Lobo Xavier revelou no programa a Circulatura do Quadrado, contando os roubos feitos pelo pirata informático a bancos. Foram sendo conhecidas outras incursões do Pinto. A mais badalada é a do Caledonian Bank, das ilhas Caimão, que ele explica com umas desculpas esfarrapadas impossíveis de comprovar, por se entrincheirar num acordo de confidencialidade, por isso não sabe quanto lhe rendeu. Em relação à tentativa de extorsão à Doyen, caso pelo qual está em prisão preventiva a aguardar julgamento, os seus actuais advogados afirmam, com candura desarmante, que o rapaz desistiu voluntariamente da extorsão! Com estes antecedentes fica-se por saber porque decidiu e qual a extensão da sua colaboração no Football Leaks, no mundo obscuro da economia relacionada com o mundo do futebol, que não deixou por isso de ser menos opaco. Os resultados têm-se traduzido em acordos de várias eminências futeboleiras com as autoridades tributárias de vários países, que pouco ou nada afectam a opacidade da economia do futebol. Resultam exclusivamente em ganhos para diversos fiscos, num toma lá dá cá de lances mediáticos pouco abonatórios.
Rui Pinto excita muito personagens como Ana Gomes, o que não provoca espanto, sabendo-se por onde ela anda. São processos de lavagem moral da eurodeputada, que se esganiça espantada por ainda ninguém ter sido preso no caso BES mas esteve mais que silenciosa quando o BES foi privatizado em detrimento do bem público e com favores inomináveis, iniciando o caminho vertiginoso que acabou como todos conhecemos (conheceremos de facto a sua real extensão? Viremos algum dia a conhecê-la na sua totalidade?) e que andamos a pagar. Que se excita com os Panama papers, que na realidade acabaram por favorecer e engordar outros paraísos fiscais deixando impune um sistema global criminoso de fuga ao fisco que continua o seu caminho imparável. Que nunca denunciou as privatizações de empresas nacionais, o que possibilitou que agora tenham as suas sedes sociais na Holanda, Luxemburgo, Irlanda, onde se subtraem a pagar impostos em Portugal. É a dupla moral que ataca árvores que lhe rendem dividendos populistas mediáticos mas deixam intacta a floresta, na era das privatizações e do mercado livre em que o dinheiro governa sem intermediários – o que não a desassossega. Há que relevar a sua coerência. Defende Rui Pinto com a mesma convicção com que gritava «nem mais um só soldado para as colónias», o que iluminava o monóculo de Spínola a negociar rodésias e áfricas do sul com minorias brancas de Angola e Moçambique, de que resultaram brutais acontecimentos como o de Setembro de 1974 em Lourenço Marques, que originou incontáveis mortos. Garante-lhe mais presença mediática – a que preço? – para outros comentários todo-o-terreno, onde se desbarata em argumentários politicamente disléxicos, nada inocentes, que alinham com o coro reaccionário da maioria dos comentaristas encartados dos media.
«O que não é aceitável, a não ser num mundo de pernas para o ar, nestes tempos neoliberais em que a justiça social se reduz à justiça penal, é que o Estado se submeta ao mercado, exercendo funções de vigilância e castigo em que o poder pratica a injustiça social, enquanto os direitos públicos minguam»
Essa fúria e essa dupla moral têm vários antecedentes na história. O mais celebrado é o do pirata Francis Drake, que Isabel I condecorou cavaleiro e nomeou vice-almirante do Reino de Inglaterra para continuar a sua saga, em que o oficial da armada inglesa coexistia com o corsário. Só que nem Rui Pinto é, sequer, um mais que pindérico Drake, nem Ana Gomes uma ultra-rasca Isabel I.
O que não é aceitável, a não ser num mundo de pernas para o ar, nestes tempos neoliberais em que a justiça social se reduz à justiça penal, é que o Estado se submeta ao mercado, exercendo funções de vigilância e castigo em que o poder pratica a injustiça social enquanto os direitos públicos minguam. Basta olhar para dentro das fronteiras da Europa Connosco, em que às grandes empresas, aos grandes monopólios, se concedem escapatórias para se evadirem às suas obrigações tributárias em offshores declaradas e encapotadas, como os benefícios fiscais concedidos por alguns dos países que se sentam à mesma mesa da Comissão Europeia do luxemburguês Juncker do Luxleaks e do Eurogrupo comandado por Mário Centeno, guardião do Tratado Orçamental. Em que o Banco Central Europeu concede empréstimos a juro zero à banca privada para a banca privada os emprestar a altos juros aos países onde estacionam. Olhe-se para os lucros do Santander Totta que, entre Janeiro e Março deste ano, obteve um lucro de 137 milhões de euros, dos quais 50 milhões na «gestão da carteira da dívida pública».
Só essa dupla moral explica porque se coloca despudoradamente no mesmo pódio Assange, Motarjemi e Rui Pinto. Dupla moral que nos deve inquietar e importa denunciar.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui