Os inquinados Jogos do Rio

Tirando a falta de medalhas, para os nossos jornalistas tudo correu pelo melhor. Os Jogos do Rio foram um abraço de toda a Humanidade e um hino à união dos povos.

«A alegria da festa de encerramento com atletas de todas as raças a dançarem juntos num grande arraial colectivo, transmite uma mensagem de fraternidade e de esperança»
Créditos / Wikimedia Commons

A revista do Expresso de 20 de Agosto, no auge dos Jogos Olímpicos,  encheu a capa com a fotografia da nova estrela do nosso futebol, Renato Sanches que, apesar de merecer a honra, não participou nos Jogos. Seria desejável que, por uns dias, o «desporto-rei» não esmagasse os desportos olímpicos nas atenções da nossa comunicação social.

As olimpíadas estão, em Portugal, para essas outras modalidades desportivas, como o carnaval para os brasileiros: uns dias de folia e o resto do tempo a penar.

De quatro em quatro anos, uma multidão de fãs do chuto acorda da letargia e exige medalhas de atletismo, canoagem, judo, ou seja lá do que for, porque menos que isso, não serve. Estar entre os dez ou vinte melhores atletas do mundo, é pouco. Se a televisão dedicasse às modalidades olímpicas as horas que gasta a transmitir a excitante visão das esquinas dos autocarros dos três grandes do futebol nas viagens do hotel até ao estádio, talvez tivéssemos mais atletas e mais medalhas.

Tirando a falta de medalhas, para os nossos jornalistas tudo correu pelo melhor. Os Jogos do Rio foram um abraço de toda a Humanidade e um hino à união dos povos.

O «presidente» Temer, símbolo do golpismo e da corrupção, bateu logo o primeiro recorde – o dos apupos – na cerimónia de abertura, mas o esplendor e o fogo de artifício quase conseguiram ofuscar a miséria das favelas vizinhas. E, pela primeira vez, desfilou uma selecção «de refugiados», como se houvesse um país chamado Refúgio, o que, na Europa e nos USA, que os criaram e agora os enxotam, parece cada vez mais difícil de criar.

Nesses truques para anestesiar consciências, nada melhor do que almofadar culposas tragédias, integrando-as no artificial sentimentalismo de um espectáculo à Hollywood. Talvez por isso, pensei poder ver «refugiados» a disputarem corridas de velocidade ou de obstáculos, os 400 metros barreiras, o salto à vara, os 50 quilómetros de marcha ou a canoagem em K-500, aproveitando a experiência adquirida na travessia do Mediterrâneo, nas fronteiras muradas da Polónia e da Bulgária ou a fugir da «Selva» de Pas de Calais.

«Se houve "refugiados" a mais, faltou a delegação da Palestina, e nem uma palavra houve sobre isso. Israel, país ocupante e sitiante, não a deixou sair do cerco, o que o COI aceitou sem protesto.»

Decididamente, os «refugiados» estão na moda, embora isso de pouco lhes valha. Nunca os da Indonésia de Suharto, do Haiti de «Papa» Doc, do Chile de Pinochet ou da Argentina e do Brasil das ditaduras militares, tiveram tal atenção do Comité Olímpico Internacional (COI).  

Acredito, no entanto, que estes, bondosamente bombardeados pelo «Ocidente» que os quis fazer estoirar de democracia, tenham uma maior resistência atlética após as provas por que passaram para chegar às costas do Sul da Europa. Para a fotografia. Para a expulsão. Para serem pendurados ao peito nas olimpíadas do Rio.

Se houve «refugiados» a mais, faltou a delegação da Palestina, e nem uma palavra houve sobre isso. Israel, país ocupante e sitiante, não a deixou sair do cerco, o que o COI aceitou sem protesto. Talvez uma «questão de vistos», como aconteceu à Coreia do Norte em Londres. Ora os palestinos têm bastante treino nas modalidades «para refugiados», excepto, julgo eu, na canoagem K-500 com afundanço, em que os do Iraque, da Líbia e da Síria parecem continuar a dar cartas.

Mas se agora é o regime sionista de Israel que os persegue pregando a superioridade judaica, tempos houve em que eram os judeus «os refugiados» perseguidos pelo regime nazi. Eram eles os «seres inferiores e maldosos», proibidos de frequentar recintos ou clubes desportivos (leis de Nuremberga de 1933), expulsos da selecção alemã nas Olimpíadas de Berlim, em 1936.

Nesse tempo de sombras, face ao protesto da opinião pública e de muitos atletas que ameaçaram boicotar os Jogos se fossem na capital alemã, a Comissão Olímpica Americana (COA) e o seu presidente, Avery Brundage, fizeram as maiores pressões para que os Jogos se mantivessem em Berlim, alegando não quererem meter a política no assunto. Brundage, contudo, não se esqueceu de dizer que havia «muito a aprender com a Alemanha» e que a ideia de boicote tinha sido orquestrada «por agitadores judeus e comunistas». Outros membros do COA acharam que «os judeus nunca tinham sido bons atletas» e, «se tinham sido excluídos, era por não terem o nível exigido».

Com cruzes gamadas por todo o estádio e as SS a desfilarem na abertura, os nazis afrouxaram a propaganda anti-semita, e uma única atleta alemã de descendência judaica, que vivia nos USA e fez a saudação nazi, pôde participar nos Jogos como testemunho da não descriminação.

« A ausência de toda a equipa russa de atletismo pouco afectou a comunicação social portuguesa, habitualmente tão ciente da "verdade desportiva"»

Hitler, apesar da vitória da propaganda, teve de engolir as medalhas de ouro dos atletas negros norte-americanos, como o famoso Jesse Owens, depois apresentadas como uma vitória da América sobre o racismo germânico, esquecendo que também nela se segregavam os negros e se defendia a supremacia branca. Quanto à Rússia (então União Soviética), não esteve com lérias e não pôs os pés em Berlim.

Agora, e apesar de não haver guerra fria e a Rússia já  não ser vermelha, foi o seu atletismo a ser excluído dos Jogos, depois de uma enviesada mas conseguida campanha da agência anti-doping dos USA e do Canadá para a sua expulsão, que despertou veementes protestos do Presidente da Comissão Olímpica Europeia (COE), Pat Hickey.

 A ausência de toda a equipa russa de atletismo pouco afectou a comunicação social portuguesa, habitualmente tão ciente da «verdade desportiva», com a honrosa excepção do comentador da RTP que denunciou a arbitrariedade e a motivação política do COI.

De resto, o exótico conceito de «doping de toda uma selecção», não se focou em processos ou análises individuais – como confirmou ao The Observer, Richard McLaren, autor de relatório que baseou a exclusão («It has not been to establish antidoping-rule violation cases against individual athletes»).

A expulsão da Rússia, constituiu assim uma inédita e injusta punição colectiva que atingiu atletas «limpos» ou mesmo diferentes dos que competiram nas provas que motivaram a suspeição.                    . 

Como em Berlim, também no Rio houve uma excepção, para dar um ar de rigor à polémica decisão: a saltadora russa Darya Klischina, que treina nos Estados-Unidos, acabou por poder participar nos Jogos. Pelo contrário, Yulia Stepanova, suspensa, em 2013, por dopagem, e que, anos depois, resolveu denunciar o alegado «doping de Estado» com promessas de reintegração por se ter portado bem, acabou por ser excluída.

 O ex-presidente da Comissão de Laboratórios da Agência Mundial Antidoping (WADA), o português Luís Horta, actualmente contratado como consultor da Agência Brasileira de Controlo da Dopagem, alegou um extraordinário princípio: «Eu penso que o que temos de levar em conta é o principio da proporcionalidade. Pensar se, punir todos os atletas de um país, é proporcional a defender a legitimidade dos Jogos Olímpicos. E, nesse caso, eu penso que é», disse.

Um espanto.

Fazendo um balanço das medalhas, o Público de 22/8/16, dia seguinte ao encerramento dos Jogos, referia: «Um domínio avassalador dos norte-americanos, com quase o dobro das medalhas dos seus rivais. De resto, destaque para a queda da Rússia (56 medalhas) que conseguiu bastante menos presenças no pódio que em 2012 e 2008».

É a vida!, como diria o outro. Será, pelo menos, uma engenhosa maneira de tratar dela, assegurando uma evidência: não podem ganhar os que nem sequer estão presentes.

Venceram os que mereciam? Ora!...Como se costuma papaguear nos concursos de miss Universo, o que é preciso é Paz e união da Humanidade.

Para apimentar o ambiente, um dos membros do COI, o presidente da Comissão Olímpica da Irlanda, foi preso no Rio a traficar bilhetes, e as atletas norte-americanas da estafeta 4X100m tiveram a inusitada possibilidade de repetirem a prova sozinhas, depois de serem excluídas por um encontrão de uma atleta brasileira. Como fizeram um bom tempo a sós, eliminaram a China, passaram à final e venceram. Uma invulgar forma de corrigir injustos acidentes, o que também sucederia se fosse com Portugal, as Seychelles ou...a Rússia. Não acreditam?

Talvez o nosso canoísta Fernando Pimenta devesse repetir a final em que ficou preso nas algas, e Vanderlei Lima, o famoso maratonista brasileiro que transportou a tocha olímpica na cerimónia de abertura, e que, em 2004, perdeu o ouro nas Olimpíadas de Atenas por causa de um espectador maluco que o agarrou, pudesse repetir a prova e acabasse em primeiro...

Enfim. Os Jogos Olímpicos do Rio «correram bem». Pelo menos para os felizes «refugiados» escolhidos e para os participantes «normais» que não foram impedidos de lá estar.  E o mesmo ou pior se espera para os Paralímpicos com a Rússia também excluída.

Apesar de tudo, a alegria da festa de encerramento com atletas de todas as raças a dançarem juntos num grande arraial colectivo, transmite uma mensagem de fraternidade e de esperança que faz acreditar que um mundo melhor é possível. Mas até esse tipo de emoções costuma ser explorado com frieza e cinismo por interesses menos atreitos a fragilidades do coração.

E parece-me ouvir a voz rouca de Louis Armstrong a cantar «What a wonderful world», enquanto os seus irmãos de cor são afectuosamente espancados pela polícia e os refugiados docemente se afogam no Mediterrâneo e nos mares da Austrália...

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