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Clareza ou águas turvas?

Conservadores de direita, em abaixo-assinado no Público, dizem defender «a clareza». Claramente, a direita já navega em águas muito turvas.

CréditosAntónio Cotrim / Lusa

Saiu ontem no Público um texto intitulado «A clareza que defendemos», assinado por 54 homens e mulheres conservadores, afectos ao PSD, CDS e independentes, de diferentes sectores da sociedade portuguesa, incluindo academia, jornalismo e cultura.

Não venho criticar o PSD pelo acordo nos Açores com o Chega. A ideia é demonstrar que os 54 pela clareza subscrevem visivelmente um texto pouco claro, cheio de caminhos enviesados, não-ditos e silêncios tácticos ou tácitos, entre aquilo que dizem defender e a amálgama que criticam, chamando-lhe, em linguagem moderna, «iliberalismo».

Dizem os 54 que os últimos anos têm sido caracterizados por «uma inquietante deriva» e «uma insustentável amálgama» na Europa e nos EUA. Essa deriva é nacionalista, revanchista, incendiária, dizem; a amálgama é ideológica, «faz o seu caminho entre forças da direita autoritária e partidos conservadores, liberais, moderados e reformistas». Em todos os quadrantes da direita há quem se dobre ideologicamente perante o jogo mais brando ou mais duro do autoritarismo. O Público, na expressão «direita autoritária», liga a um artigo de Abril sobre «partidos com ADN autoritário» baseado num estudo do Instituto de Ciências Sociais (Lisboa).

«Para os 54, não é grave que movimentos nacional-populistas existam em democracias maduras e consolidadas, como a portuguesa. O importante é que o "espaço não-socialista" (a direita) não se confunda com eles.»

Os 54 exigem «uma tomada de posição», como o abaixo-assinado o diz ser. «A deriva deve ser enfrentada. E a amálgama tem de terminar quanto antes, sem cumplicidades nem tibiezas». 

Esperávamos uma (o)posição, palavras duras contra cumplicidades amalgamadas a que temos assistido na política nacional, e quiçá, às tibiezas internacionais de conservadores liberais face à derrota de Trump nas eleições norte-americanas. Ora, nem uma coisa nem outra.«Porque uma coisa é os movimentos nacional-populistas, xenófobos e autocráticos assumirem aquilo que são; outra, mais grave, é o espaço não-socialista deixar-se confundir com políticos e políticas que menosprezam as regras democráticas, estigmatizam etnias ou credos, acicatam divisionismos, normalizam a linguagem insultuosa, agitam fantasmas históricos, degradam as instituições.» 

Para os 54, não é grave que movimentos nacional-populistas existam em democracias maduras e consolidadas, como a portuguesa. O importante é que o «espaço não-socialista» (a direita) não se confunda com eles. 

É perfeitamente legítima a existência de um partido xenófobo e autocrático como o Chega. O que «agita fantasmas» ou «degrada as instituições» não é sequer que os seus representantes se sentem no Parlamento, mas a possível cumplicidade da mesma ala direita com a «amálgama ideológica» que o Chega parece representar.

Apesar de nunca o mencionar, o texto coloca o acordo do PSD no centro do seu não-dito. Não o rejeitando explicitamente, dá uma no cravo, outra na ferradura: «Não contestamos a legitimidade dos novos movimentos de direita, nem ignoramos as razões de descontentamento e exasperação dos seus apoiantes», legitimando-os, de novo. «Mas não se responde à deriva com a amálgama. É preciso deixar bem claro que as direitas democráticas não têm terreno comum com os iliberalismos. É essa clareza que defendemos.» Acaba assim o texto, nestas meias-palavras claras e cristalinas de perífrase: «iliberalismo».

«Na essência, muitos dos que hoje se dizem sociais-democratas, dentro do PSD ou do CDS, herdaram ADN do fascismo. Não é por acaso que Ventura fez carreira no PSD.»

Conceito de Ciência Política, cunhado no final dos anos 90, «iliberalismo» é um termo que se tem aplicado a uma amálgama de governos contra a noção de «democracia liberal» ocidental como bitola. Os mais recentes estudos sobre «democracias iliberais» centram-se na Hungria e na Polónia, onde partidos conservadores, autoritários e etno-nacionalistas venceram «eleições livres», mas impõem restrições constitucionais e violam direitos e liberdades de cidadãos. 

No entanto, por muito que a Ciência Política queira inventar novos conceitos para serem citados em revistas indexadas aos rankings de universidades neo-liberais ou think tanks internacionais, também eles indexados às grandes fundações para a(s) democracia(s). «Iliberalismo» não é uma palavra nada clara para quem defende a clareza: se é iliberal já não é democracia, é apenas eufemismo para a roupagem de que se reveste o fascismo no século XXI.

A direita não fazia mal nenhum em fazer a sua auto-crítica. Aquilo que se exige sempre à esquerda democrática, de cada vez que pretende discutir direitos laborais ou recolheres obrigatórios e alguém lhe gritar Coreia ou Cuba. Perceber de onde vieram os seus partidos, quem os constituiu, quem passou de facho dia 24 de Abril, a liberal estabelecido na democracia a 25. «Trump não é Lincoln, T. Roosevelt ou Reagan. (...) O neo-franquismo não é herdeiro da direita espanhola da Transição e do pacto constitucional.»

Tantos estudos em Ciência Política, mas parecem não ter percebido o que são pais ideológicos. Trump só existe porque Reagan existiu. E o neo-franquismo é claramente herdeiro da Transição – porque o velho franquismo nunca acabou. Na essência, muitos dos que hoje se dizem sociais-democratas, dentro do PSD ou do CDS, herdaram ADN do fascismo. Não é por acaso que Ventura fez carreira no PSD. 

Insidiosamente, o artigo sobre partidos com ADN autoritário, citado pelo Público, começa por dizer: «Espanha viu nascer, pouco depois da morte de Franco, um novo partido, a Aliança Popular (hoje Partido Popular), pelas mãos de destacados ministros franquistas» – ou seja, 45 anos de «democracia iliberal».

É através dos links criados pelo Público que eventualmente vamos descortinando o que os 54 nos querem dizer. «Essas derivas não devem os não-socialistas responder cooptando os radicalismos de sentido contrário»: tanta ginástica semiótica para, afinal, escondido no fim do texto, nos aparecer um tímido link para a-não-coligação-só-nos-açores-mas-no-continente-nem-pensar entre o PSD e o Chega.

Rui Rio estudou no Colégio Alemão, mas parece ter faltado às aulas de História, sobretudo aquelas sobre o século XX e os acordos assinados entre conservadores alemães e nazis, esperando que Hitler se moderasse. 

Mas os Açores são uma excepção, um parente pobre da República: «Já foi dito claramente [voilá!] que não há nenhum acordo nacional, nem com o Chega nem com a Iniciativa Liberal (...). O que existe é ao nível dos Açores, ao nível regional, decidido lá», disse Rio. «Lá» não é Portugal. Estamos claramente descansados.

Continuarão, pois, os abaixo-assinados indignados à espera da «decência» e da «moderação», sem nunca citar o movimento populista amalgamado que tanto parecem repudiar. 

Como lembrava David Crisóstomo no Twitter, para mudar a legislação e diminuir o número de deputados da Assembleia Regional dos Açores, que o PSD incluiu no seu programa, fazendo o favor ao Chega, é necessário que a votação passe primeiro pela Assembleia da República, no continente. «Cá», portanto. Aguardamos, então, a primeira e clara proposta de lei conjunta no Parlamento.

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