Constance Malcolm, 48 anos, perdeu a conta a quantos protestos já participou desde que seu filho Ramarley Graham, 18 anos, foi assassinado pela polícia de Nova Iorque dentro de casa, em 2012. Mesmo durante a pandemia, resolveu ir a mais uma manifestação, dessa vez maior e impulsionada pela morte de George Floyd. Na tarde de 9 de Junho, em frente à Câmara de Nova Iorque, juntou-se a um grupo de pessoas que usavam máscaras e que seguravam cartazes com fotos de familiares mortos. Ao microfone, pediu o fim da violência policial, além de exigir que cortassem o orçamento da polícia.
Nos EUA, os negros são mortos pela polícia 2,5 vezes mais do que os brancos, segundo dados de um estudo publicado na Nature. Assim começa uma reportagem da jornalista Paula Moura, na revista brasileira Piaui, dedicada a analisar a razão por que milhares de pessoas protestam nas ruas dos EUA. O texto explica que a maioria dos negros ganha metade do que os brancos, que são as maiores vítimas da pandemia e que vivem em muito piores condições no país do sonho americano.
«Já alguma vez viu o vídeo da morte de George Floyd?». «Você, ou alguém próximo de si, participou em algum dos protestos ou manifestações contra a brutalidade policial que ocorreu em Minneapolis após a morte de George Floyd?». «Se participou, trazia um cartaz, o que dizia?». «Que jornais lê?» «Que podcasts é que ouve?». «Tem alguma formação ou experiência em artes marciais?». «Qual a sua posição sobre a campanha Black Lives Matter (as vidas negras importam)?». «Acredita que o nosso sistema de justiça funciona?». O questionário tem 16 páginas e começou a chegar no final do ano passado a centenas de caixas de correio na cidade de Minneapolis. «É um potencial jurado no julgamento de quatro antigos agentes da polícia indiciados pela morte de George Floyd», era o título da missiva. No final, uma pergunta seguida de uma intimidante página e meia em branco: «Por que é que não quer servir como jurado neste caso?»
A exaustividade do questionário revela a importância do julgamento que começou na segunda-feira passada em Minneapolis com o início da selecção do júri. A morte de George Floyd desencadeou a maior mobilização contra a violência policial racista nos Estados Unidos desde a década de 1960. No meio de um debate ainda aberto, será o júri que sairá deste processo de selecção, que se arrastará durante semanas, a decidir se Dereck Chauvin, um polícia branco, é ou não culpado de duas acusações de homicídio em segundo grau, pela morte do afro-americano George Floyd.
«Nós k nasi omi, k ta mori omi»
Assim cantava LBC (aka Flávio Almada), um dos dirigentes do Moinho da Juventude da Cova da Moura barbaramente agredido numa esquadra da PSP, num processo que levou à condenação de vários polícias, embora nenhum deles tenha sido expulso da corporação pelos seus crimes.
«Nós k nasi omi k ta mori omi» (aqueles que nasceram seres humanos morrem seres humanos), diz a letra.
As manifestações contra o assassinato de George Floyd foram das mais participadas, em Portugal, pela comunidade negra. Flávio não tem dúvidas que essa adesão tem um misto de revolta pelo horrível acontecimento, mas também de partilha de uma mesma situação.
«Há uma experiência colectiva, embora com diferenças de geografia e contexto. Se formos ver o mapa de mortes das pessoas de origem africana no Brasil, EUA, França e em outros países dá para ver que existe essa violência policial em muitos lados».
Este crime provocou uma maior onda de revolta porque foi filmado e as redes sociais espalharam-no por todo o mundo. Mas, para LBC, o combustível está na injustiça muito para além da violência. «Isto não se restringe às agressões policiais, há questões económicas, sociais de desigualdade. Durante a pandemia, devido a terem salários mais baixos, piores situações de habitação e, na sua maioria, profissões que não confinam, as populações negras foram, nos países ocidentais, mais atingidas pela pandemia. Os negros são também muitas vezes vítimas de uma justiça que os pune mais severamente e os atira para a cadeia», enumera Flávio Almada.
Jakilson Pereira, dirigente associativo no Moinho da Juventude, na Cova da Moura, está também de acordo com o amigo.
«Este julgamento tem uma grande importância para ver como a justiça ocidental desumaniza o homem negro, como uma espécie de não-ser. É importante que seja um julgamento justo. De outra maneira, passa carta branca para matar negros a torto e a direito», argumenta. O seu optimismo baseia-se no facto de agora não poderem alegar que não há provas factuais do crime. «Agora há vídeos que falam por si», diz.
Para Jakilson, as movimentações, em Portugal, contra o racismo não significam que a situação esteja diferente, ela tornou-se foi mais visível.
«Sempre houve racismo na sociedade portuguesa, mas hoje tornou-se mais visível com as novas tecnologias. Antigamente, a imprensa tradicional não dava importância, não publicava. Hoje passou a não se poder esconder». Mas as redes sociais têm outro efeito, tornam a opinião racista também mais presente.
«O que algumas pessoas diziam nos cafés passou a ser uma conversa com uma exposição pública». Para agravar, vivemos em tempos de crise, em que os poderosos tentam fazer dos mais discriminados o bode expiatório da sua acção. Isso mudou a política nacional. «Agora temos um Parlamento onde têm livre-trânsito linguagens xenófobas e racistas. Admite-se à discussão projectos, como os do Chega, para confinar pessoas com base étnicas, e há até outros partidos a apoiar expulsão de cidadãos. A situação política está a tornar-se complicada».
Uma opinião que LBC também corrobora: «O que é novo é uma estrutura a nível partidário que tem dinheiro e financiamento e que está a agrupar e potenciar o que estava disperso. Isso tem a ver com manter a dominação, em tempos de crise, manter não só os negros mas como todos os explorados por baixo de uma dominação que reproduza o capital.»
Ganhar a maioria contra o racismo
O dirigente da Frente Anti-Racista Pedro Santarém defende que «é natural que quem tem dores de dentes faça alguma coisa, como é natural que quem sofre com o racismo reaja», mas a luta contra o racismo tem de ter a ambição de ganhar a maioria da população. O racismo é feito para desunir aquilo que tem de estar unido. «O objectivo do combate político deve ser sempre conseguir que a maioria da população condene o racismo. Em todo este combate essa deve ser a nossa preocupação. Conseguir chegar à maioria das pessoas», afirma.
Isso exige, segundo Pedro Santarém, uma cuidadosa pedagogia na luta, saber separar o trigo do joio. «Mesmo em casos complicados como a Guerra Colonial devemos conseguir mostrar que o povo português e as pessoas que foram combater foram, também elas, como os povos colonizados, vítimas de um sistema fascista e colonialista. Não devemos ficar por casos individuais que escondam a realidade do fascismo e do colonialismo como sistemas de opressão e exploração».
Sobre o recente caso Marcelino da Mata e os seus crimes de guerra, propõe uma abordagem que não absolva o governo fascista de pseudocasos isolados. «Tem de se explicar que esses crimes iam para além dos autores, esses autores e os seus comportamentos eram promovidos pelo sistema, não existiam só pelo mau comportamento de alguns. Eu próprio senti na pele essa situação, eu fui mascote da tropa, os meus pais foram mortos, à metralha, pelo exército português em Angola. Fui trazido para Portugal, para Viseu, e depois estudei nos Pupilos do Exército. Ainda hoje, e durante muitos anos, senti na pele esse trauma. Não poder ver um vestido vermelho na minha namorada, sem sentir-me mal. Era como se fosse sangue. Mas esse trauma não me impede de ver que temos de culpabilizar o sistema colonial e fascista e ganhar a maioria da população para combater o racismo», defende.
Quando o colonialismo é lavado no ensino e o nazismo relativizado
«Suplício de Estrangeiros e Fronteiras» é o nome de uma música do rapper Chullage. Como ninguém, ele consegue mostrar que a falta de direitos é o veneno que alimenta o preconceito e nos torna a todos menos livres. A letra vai voando, encontrando pessoas ligadas nas suas vidas miseráveis, em que o preconceito em relação ao que está ao lado é usado como forma de as manter num lugar de marginalidade e subalternidade social.
A viagem começa com um ex-retornado que pensa: «explorava imigrantes, na maioria budjurras/ Para ele continuavam a ser indígenas, pessoas burras/ Os anos foram passando, foram vindo mais imigrantes/ E a cada um que vinha pagava menos do que dava antes/ Muitos tinham, mas muitos não tinham papéis/ E a esses pagava menos e chantageava com as leis».
Em seguida passa para o trabalhador negro, dispensado, porque já não há mais grandes obras de fachada e porque os trabalhadores de leste trabalham por metade do dinheiro: «não recebia tão mal assim há mais de 15 anos/ Para ele, a culpa era desses filhos da puta ucranianos/ Um dia pedia 50 agora eles pediam 20/ O patrão disse se não quisesse para não vir no dia seguinte/ Mas já não havia estradas, estádios, metro p'a construir».
Continua com a mulher crioula agredida pelo companheiro sem emprego: «primeiro trabalhou interna, depois passou a mulher-a-dias/ Pelo meio criou os filhos da patroa como se fossem as suas crias/ O marido era macho, não queria que ela trabalhasse/ Mas ele não recebia bem, era preciso que ela ajudasse/ Saía de madrugada pr'o hospital onde limpava/ À tarde ia pr'a uma residência onde engomava/ Tratava dos filhos da patroa, limpava e cozinhava/ À noite chegava a casa, limpava e cozinhava/ E ainda pegava nos filhos, deitava e tratava».
Prossegue ainda com as desventuras do seu filho, que se sentia como peixe fora de água no seu país, que o tratava como um pária sem direitos:
«Bruno era o que eles chamavam segunda geração/ Nascido em Portugal, verdiano no cartão/ Vivia nuns blocos de pedra lá p’o meio de um descampado/ Chamava-se realojamento mas ele sentia-se desalojado».
Nas rimas, Bruno acaba preso e deixado sozinho, apenas visitado pela prima e uma amiga: «ela não se sentia rapariga, mas sim um rapaz/ E não era do Bruno, mas da prima dele que ela andava atrás/ Essas notícias lá em casa seriam uma coisa bombástica/ Ainda por cima o irmão tinha ingressado com uma cruz suástica/ Em casa era só guerras, já não havia sossego/ A mãe tinha adoecido e o pai ia perder o emprego».
A canção termina falando ainda do pai, obrigado a emigrar porque os patrões, escoltados pela polícia de choque, fecharam a fábrica onde tinha trabalhado durante anos.
Na sua conversa com o AbrilAbril, o rapper Chullage sublinha que as mobilizações na Europa e nos EUA não podem ser separadas do contexto internacional. «A existência de Trump tornou mais gritantes alguns fenómenos, e fez com até os governos da Europa ocidental se quisessem apresentar ao lado dos direitos humanos, contra o racismo. Foi bom que tenha havido tantas mobilizações, mas ao mesmo tempo quando me dizem "não sabia que isto existia, como é possível estes crimes?", eu fico com uma certa sensação de incómodo. O racismo e os crimes policiais não nasceram hoje. Sempre estiveram presentes. A contestação pode ter-se tornado trendy (na moda), mas os problemas há muito que existiam», revela Chullage.
Para o rapper, o problema dessa dimensão de moda é que muitos dos seus cultores tendem a esquecer as questões sociais de desigualdade económica e de poder que são sustentadas pelo racismo. Se, por um lado, as manifestações anti-racistas são mais fortes, assistimos, durante a crise, a um crescimento da extrema-direita que naturaliza o racismo no espaço público. Algo que é facilitado por correntes políticas mais democráticas que «permitem a recuperação do império e lavagem do colonialismo».
Segundo Chullage, estas características reaccionárias das matérias leccionadas não se esgotam no racismo. «Este tipo de lavagem cerebral que hoje se intensifica sobre o império e o colonialismo já existia em outras matérias, há muito que os manuais escolares pretendem fazer uma equiparação do nazismo com o comunismo.
No outro dia, o meu filho veio-me perguntar, «então, o socialismo e o nazismo são igualmente ditatoriais?». Tive de lhe explicar que o socialismo é a tentativa de criar um mundo justo para todos. Que esse mundo não existe. Que apenas houve experiências, como na Rússia, que, com todos os seus problemas, nunca discriminou homens e mulheres por causa da cor da sua pele, mas bateu-se pela igualdade», contou.
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