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Asad Haider. «A emancipação é sempre universal»

É filho de imigrantes paquistaneses e nasceu nos Estados Unidos. É doutorado pela Universidade da Califórnia e foi um dos criadores da revista Viewpoint Magazine. Nesta entrevista ao AbrilAbril fala sobre a importância da luta anti-racista e do combate contra o capitalismo.

Asad Haider é autor do livro Mistaken Identities, Race and Class in the Age of Trump (Armadilha da Identidade, Raça e Classe nos Dias de Hoje na edição brasileira). Para este intelectual dos EUA, a identidade é fruto de uma história que só pode ser compreendida caso mergulhemos nas relações sociais concretas que a definem. Em termos políticos, a política que é só identitária acaba a ter como efeito a reafirmação das subjectividades coloniais e não uma mudança estrutural efectiva. «Ora um negro é um negro por causa do racismo, e não porque a sua negritude não seja reconhecida e valorizada; da mesma forma, um branco também é um branco por causa do racismo e não devido à sua "brancura". E não há racismo sem estruturas políticas e económicas que sustentem o processo contínuo de transformação de indivíduos em "negros" e "brancos"», como defende Sílvio Luiz de Almeida, no prefácio da edição brasileira do livro de Haider.

Consegue-se fazer política tendo em conta as identidades, sem ser política identitária?

Considero a identidade como algo imaginário mas não uma ilusão. Nunca poderemos ser idênticos a nós próprios, como Stuart Hall disse, seremos sempre constituídos por uma multiplicidade de coisas diferentes. Ou, nos termos de Judith Butler, estamos sempre a actuar «quem somos», e essa actuação nunca é realmente completa. Mas a identidade é «real» no sentido de que é um efeito destas relações que temos com os outros e com a sociedade de que nunca estamos plenamente conscientes e que não conseguimos totalmente controlar. Assim, nunca nos livraremos da identidade, da sensação de que existe algo que nos une num eu coerente e estável.

Até certo ponto, isto significa que haverá sempre identidades na política. Mas não podemos apenas estar satisfeitos com essa situação, porque temos de pôr constantemente em causa as nossas identidades se quisermos ser capazes de trabalhar juntos através das diferenças e de nos comprometermos colectivamente com um projecto político. Se a identidade leva a uma exigência de reconhecimento por parte de outros, ou a um desejo de pertencer a um grupo que é supostamente o «mesmo» que nós, então isto não é política. Se estamos interessados numa política de emancipação, esta é uma política que é para todos, e não apenas para mim.

Assim, embora nunca nos vejamos livres da identidade, não podemos basear a política nela: não pode ser o fundamento da política. Mesmo reconhecendo que a identidade persistirá, temos de olhar para uma política para todos que vá para além das nossas identidades, e temos de trabalhar em conjunto para gerar conhecimento colectivamente, em vez de fazer tudo conectado com a experiência individual.

Quais são as relações existentes entre capitalismo, racismo e patriarcado?

Este tipo de pergunta não pode ser respondida em abstracto e geralmente, quando as pessoas dão respostas, estão a responder a uma pergunta diferente, que é algo como: os anti-capitalistas devem também dar prioridade às lutas anti-racistas? Deverão os socialistas ser também feministas? Estas questões, colocadas directamente, não são muito difíceis, embora sejam muito gerais. Se acreditamos na emancipação universal, então devemos opor-nos a qualquer forma de dominação, seja ela de classe, de raça ou de sexo. Mas isto não significa que tenha de haver alguma ligação necessária entre as três categorias abstractas. Há dois problemas com esta abordagem. Em primeiro lugar, é uma tentativa de garantir a correcção da própria política, baseando-a na análise social. Na realidade, a política emancipatória tem de ser defendida afirmativamente – um princípio absolutamente igualitário e autónomo para a organização da vida humana. Isto nunca pode ser derivado da sociedade que já existe, deve ser formulado de forma independente, e então a análise social dir-nos-á como isto está relacionado com a situação existente. O segundo problema é que esta não é uma análise social materialista porque não passa do abstracto para o concreto. Não há nada de errado em começar com abstracções, mas não podemos assumir que são as essências das coisas, já escondidas na realidade por detrás das aparências. Na realidade, são conceitos que construímos para compreender um todo social complexo. A escravatura das plantações foi um fenómeno com muitos aspectos diferentes, mas não se pode dizer que existe aqui uma parte da plantação que é racial e outra parte que é económica. Só podemos fazer esta distinção de forma analítica. Assim, em vez de fazer teorias gerais sobre abstracções, temos de identificar uma situação concreta e específica e utilizar conceitos para a compreender, mas em vez de simplificar estes conceitos, devemos torná-los mais complexos, compreendendo todas as determinações que os constituem, e compreendendo a sua contingência, como estes fenómenos podem ser diferentes em diferentes lugares e em diferentes momentos históricos.

O anti-racismo e o feminismo podem ser vistos como formas de luta de classes ou esta é limitada à oposição entre a classe trabalhadora e a burguesia?

Não creio que a política emancipatória deva mostrar que tudo tem que ver com a luta de classes para que seja uma luta política que valha a pena travar. Não há nada na sociedade de classes que não esteja relacionado com a luta de classes, mas não é preciso mostrar que está relacionado com a luta de classes para se opor às práticas racistas da polícia, ou para defender o direito das mulheres ao aborto. Como mencionei anteriormente, a oposição ao capitalismo é baseada numa afirmação política subjacente que se opõe a qualquer forma de dominação. Aqueles que estão empenhados em políticas emancipatórias devem ser contra a dominação racial e sexual, e devem estar envolvidos na luta de classes. A partir daí, temos de determinar que tipos de lutas, programas e estratégias, irão perseguir mais eficazmente os nossos objectivos; não devemos partir da premissa de que cada opressão é igualmente importante e que devemos abordar todas as questões de uma só vez, e assim por diante. Temos de determinar estrategicamente o que faz avançar e sustenta a luta colectiva, e isto envolverá passos em que as decisões sobre prioridades têm de ser tomadas.

O racismo pode ser visto como uma estratégia para dividir os oprimidos, mas será que existem formas de anti-racismo que também dividem os oprimidos?

Isto depende do que se entende por anti-racismo. Se o quisermos dizer de uma forma simples, quotidiana, para sermos contra o racismo, não há nada que divida nisto. É uma posição básica da decência humana que a maioria das pessoas partilha e não há maneira de considerarmos que isto seja divisionista. Se nos referimos a um conjunto mais específico de ideologias ou práticas, pode ser diferente. Se anti-racismo significa que acreditamos que a desigualdade deve ser proporcional à demografia racial – ou seja, que a percentagem de milionários negros deve ser igual à sua quota-parte da população, e que a percentagem de pessoas na pobreza também deve ser racialmente proporcional, e assim por diante, isto introduz divisões entre os oprimidos, implicando falsamente que os pobres negros e os milionários negros partilham um interesse que os coloca contra os pobres brancos. Se anti-racismo significa que policiamos a linguagem uns dos outros, denunciamos as pessoas porque não usam a terminologia certa, tentamos fazer com que os brancos se sintam culpados, então isto também divide os oprimidos. Ninguém é «puro» e virtuoso, todos estão a aprender, e os processos políticos deveriam permitir às pessoas trabalhar através dessas contradições.

Como é que a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos se transformou de uma luta social em um combate em relação aos direitos individuais?

A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos foi uma luta pela emancipação universal. Adoptou uma linguagem muito específica e um conjunto específico de objectivos adequados à sua situação: a segregação legal. Quando obrigou o Estado a introduzir novas leis, a situação mudou. Houve então uma crise para o movimento, e seguiram-se muitas abordagens diferentes, desde a militância do poder negro até aos presidentes de câmara negros e ao capitalismo negro. A questão dos direitos individuais ganhou realce público quando este movimento chegou ao fim, como acontece em todas as sequências políticas. Então a situação muda, e uma nova sequência política tem de começar. A luta pelos direitos civis continua a ser um ponto fundamental na história global da política emancipatória.

O movimento negro não foi a grande expressão da luta de classes nos EUA?

W.E.B. Du Bois [sociólogo, historiador e activista nos EUA] disse que a grande tragédia dos Estados Unidos era que os dois movimentos de trabalhadores, o movimento operário dos assalariados brancos e o movimento abolicionista, nunca conseguiram unir-se. O movimento de abolição da escravatura era um movimento operário, o movimento dos trabalhadores forçados. Era parte da luta de classes. E o movimento dos direitos civis era também parte da luta de classes, como disseram claramente as pessoas envolvidas, mas penso que podemos querer distinguir entre a luta de classes e a luta de massas. A luta de classes é fundamental, mas não explica necessariamente tudo. Queremos uma sociedade sem classes, mas isto só pode ser feito com base numa inteligência de massas, igualdade e acção com as massas, que não pode ser definida apenas em termos de classe. Na história do marxismo, a categoria das massas expressa o facto de a luta não ter sido apenas a do proletariado, mas também a dos camponeses e dos povos colonizados. O movimento negro era um movimento de massas, e temos de manter a ideia de massas que podem agir e mudar a realidade.

No seu livro faz uma crítica à ideia de «negritude», mas esta não pode ser vista como uma política que, antes de construir pontes com outros sectores sociais, tem a necessidade de valorizar um grupo social?

O que critico no meu livro é qualquer forma de excepcionalismo sobre categorias de identidade. Os movimentos negros históricos ligaram as suas lutas às lutas globais contra o imperialismo e a exploração. Eles sabiam que não fazer essas ligações era suicida, mas também que era incompatível com a sua afirmação política de emancipação universal. Isto não significa que não haja lugar para a autonomia. Em certas situações, pode ser lógico que os negros ou qualquer outro grupo se organize de forma independente, para contrariar as hierarquias que são produzidas na política. Se todos os líderes de uma organização são brancos, faz sentido ter uma organização negra. E certamente, muitas pessoas tomarão consciência da política através de uma consciência da sua experiência de racismo. Mas a passagem para a política leva-nos sempre para fora de nós próprios.

Nas novas lutas de identidade, não haverá uma sobrevalorização das características do discurso e da linguagem na luta anti-racista e anti-machista? No sentido de considerar que esta cristaliza uma determinada opressão?

Sim, a política de identidade transforma problemas concretos de organização e práticos em problemas de discurso puro, ou poderíamos dizer «etiqueta». É suposto usar as palavras certas, fazer confissões, expressar a nossa culpa, mas não se faz nada para mudar a estrutura social. De facto, torna impossível mudar a estrutura social, porque estas formas de falar são fundamentalmente desprovidas de poder. Fazem-nos odiar e desconfiar uns dos outros, sentir medo e culpa, e impedem-nos de perguntar como podemos fazer mudanças materiais. Se um grupo é constituído principalmente por brancos, que medidas podem ser tomadas para mudar isto? Os brancos sentirem-se culpados por si próprios, não muda absolutamente nada. Só a actividade prática, política e organizada pode mudar esta situação.

Para derrotar o capitalismo, o racismo e o patriarcado, não será necessário ter uma prática política e uma ideologia que vá para além dos particularismos e que tenha a ambição de ser universal?

O universal é uma categoria muito provocadora em alguns aspectos. Muitas pessoas salientam que as potências coloniais afirmavam ser universais, e este universalismo fazia parte da ideologia da dominação europeia. Não é surpreendente que, depois dessa história, sejamos cépticos quanto a esta palavra. No entanto, ao mesmo tempo, não podemos passar sem universais. O princípio das revoltas dos escravos, como a que ocorreu no Haiti contra o suposto universalismo da Revolução Francesa, não é que algumas pessoas possam ser escravas, mas nós não o possamos ser; é que ninguém deve ser escravo. Prefiro agora não enfatizar a palavra «universal», mas sim a palavra «emancipação». A emancipação é inerentemente universal, porque deve aplicar-se a todos. É tudo o que queremos dizer quando dizemos «universal». Se é apenas emancipação para alguns, é uma falsa emancipação. Devemos manter um compromisso com a emancipação hoje, e isto significa que deve ser possível para todos assumir a luta e para nós visarmos uma sociedade que seja para todos.

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