Todas as gerações são marcadas por um ou mais artistas que tentam reproduzir as relações sociais do seu tempo. A criação artística fez, ao longo da história, a síntese da relação do indivíduo consigo próprio e com o seu meio. De Ovídio a Billie Eilish, a história da arte e da cultura popular traça-nos um mapa sentimental que, apesar das significativas diferenças sociais, cria uma narrativa constante na qual nos sentimos protagonistas. Cada um de nós, não só se revê nesses objetos artísticos, como os sente como seus, como uma descrição ilusória do seu caso lírico.
«Talvez a pergunta que mais faria sentido, para a qual poderíamos ensaiar uma resposta, seria: de que forma a música popular contemporânea está a condicionar as nossas relações? De que forma a música influencia a nossa maneira de pensar, de sentir e de agir?»
Para uma parte da minha geração, uma das obras mais relevantes, desse ponto de vista, foi Alta Fidelidade (1995) – o primeiro romance do britânico Nick Hornby, mais tarde levado para o cinema por Stephen Frears. A história começa com uma pergunta para a qual ainda hoje nunca tive resposta: o que nasceu primeiro, a música ou o sofrimento? De todas as artes, a música é aquela que chegou às camadas populares com mais facilidade, massificando-se e criando alguma homogeneidade na forma como, através dela, nos relacionamos com os nossos próprios sentimentos. É por isso que se torna difícil responder à pergunta feita por Nick Hornby. Quanto daquilo que sentimos não passa de uma sugestão feita pela música que ouvimos?
A música popular contemporânea, sobretudo após a II Guerra Mundial, com novas tecnologias que permitiram a sua massificação, não tem servido apenas como banda sonora dos nossos sentimentos. Ela está presente até nas nossas interações, como se por preguiça nos servíssemos dela, numa espécie de roteiro sentimental. Todos nós, a certa altura, nos apropriamos das palavras dos outros para validar o que sentimos, o que dizemos e a forma como nos comportamos. As conclusões que tiramos sobre o que não conhecemos ou sobre situações ambíguas são, muitas vezes, inspiradas naquilo que julgamos ser uma realidade, quando na verdade não passa de um esforço poético, que se encaixa convenientemente no nosso estado de espírito – nas nossas angústias, ansiedades e aspirações.
Talvez a pergunta que mais faria sentido, para a qual poderíamos ensaiar uma resposta, seria: de que forma a música popular contemporânea está a condicionar as nossas relações? De que forma a música influencia a nossa maneira de pensar, de sentir e de agir? Imagino que muitas das decisões que tomamos, numa mistura de racionalidade com as emoções, acolhem essa influência e projetam-se nas escolhas que fazemos no momento de envolver as outras pessoas numa história na qual julgamos ser a personagem principal, tal como na canção em que repetimos insistentemente «eu, eu, eu, eu, eu».
«se o amor não entrou fora de moda, talvez fosse importante esquecer a sugestão das canções e olharmos para as nossas relações com os outros como um espaço de liberdade, de autonomia e de uma felicidade partilhada, mesmo sem a exclusividade à qual acreditamos ter direito»
A própria definição do amor, enquanto tema poético por excelência, tem sido explorada por milhões de canções, que nos juram estarmos perante um conceito exato e um sentimento homogéneo, para o qual não há outra solução senão o sofrimento atroz ou a felicidade extrema. Dentro deste conceito, definimos as nossas relações românticas e agrilhoamos os outros a uma narrativa de uma canção que eles provavelmente nem conhecem. As conclusões que tiramos sobre as reações dessa personagem secundária, a quem juramos dedicar todo esse amor, podem não passar, então, de mera ficção. Com isto, é natural que o sofrimento que nos infligimos provoque uma alteração preocupante na nossa saúde mental. Desde as crises de ansiedade à obsessão, todo o nosso comportamento irá comprometer as nossas relações e agravar um quadro psicológico para o qual, a certa altura, deixamos de ter as ferramentas necessárias para controlar.
No seu disco Véspera, os Clã interpretam uma letra de Sérgio Godinho que começa assim «Tudo no amor faz de nada um tudo». Não há nada no amor que faça o que quer que seja. Somos nós, na nossa forma de interpretar o amor, e de lidar com ele, que fazemos de nada um tudo, uma tempestade num copo de água. Somos nós que dramatizamos as nossas relações; que, por mero egoísmo, as tentamos sequestrar com as nossas inseguranças e frustrações, transformando-as numa criação só nossa, com direitos de propriedade emocional.
Talvez o amor tenha entrado fora de moda, como escreveu o crítico musical Lester Bangs, por ocasião da morte do Elvis. Talvez tenhamos perdido a nossa autonomia na definição e interpretação dos nossos sentimentos e a preguiça sentimental tenha tomado conta de nós. Talvez a música nos tenha transformado em precários dos sentimentos e autómatos nas relações sociais, de amizade ou de amor.
Mas, se o amor não entrou fora de moda, talvez fosse importante esquecer a sugestão das canções e olharmos para as nossas relações com os outros como um espaço de liberdade, de autonomia e de uma felicidade partilhada, mesmo sem a exclusividade à qual acreditamos ter direito. Se o amor se limitasse às relações românticas e não estivesse presente na amizade, então seria um sentimento pobre, sujeito à mesquinhez e ao rancor. Se, então, o amor não entrou fora de moda, ele existe em nós não como uma doença, mas como o maior instrumento que temos para a felicidade e que devemos cultivar não com drama, mas com a possibilidade de crescimento; qualquer coisa que vamos desenvolvendo com cuidado e alegria.
Creio que ganharíamos mais se não fizéssemos do amor um surto – um espectro de impulsos falsamente descontrolados, que aprendemos nas canções, na literatura ou no cinema – e dele cuidássemos como um projeto em construção, no qual a nossa felicidade é um trabalho conjunto, onde nos permitimos ser um entre muitos. É impossível ser feliz sozinho.
O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)
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