A cloud tornou-se no novo mantra associado ao crescente domínio da internet nas esferas social e económica. A digitalização suscita uma certa ideia de desmaterialização da informação, que passa cada vez mais a alojar-se no espaço, ou melhor dizendo na nuvem (ou cloud, em inglês), sempre disponível onde quer que estejamos e sem necessidade de qualquer suporte de armazenamento.
Walter Lippold é co-autor do livro “Colonialismo Digital, por uma Crítica Hacker Fanoniana”. Nas suas páginas defende-se que o colonialismo digital não foge dos fundamentos do capitalismo, mas exigem de nós novas atitudes para poder derrubar este modo de produção. Walter Lippold é co-autor do livro “Colonialismo Digital, por uma Crítica Hacker Fanoniana”. Nas suas páginas defende-se que o colonialismo digital não foge dos fundamentos do capitalismo, mas exigem de nós novas atitudes para poder derrubar este modo de produção. --------- Já podes ver e ouvir nestas plataformas. Segue-nos! Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.|
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Esta “desmaterialização” pretende designar a separação entre o meio físico e o conteúdo. Contudo, a expressão é ilusória. Toda a informação digitalizada necessita de ser transportada e armazenada algures, em locais bem terrenos. Tentar perceber quem gere e domina esta informação leva-nos a questionar opções tomadas pela generalidade dos governos, das empresas e dos indivíduos ao longo dos últimos anos e a colocar a soberania digital no centro do debate político.
Ao longo dos últimos anos, a maioria das empresas (mas também grande parte dos governos) optaram pela externalização dos seus recursos informáticos. Os serviços de nuvem fornecem recursos de computação, armazenamento e aplicativos pela internet, eliminando a necessidade de manter servidores físicos. Não se limitam ao armazenamento de informação. Fornecem aplicativos ou plataformas completas para desenvolver, implantar e gerenciar aplicativos sem necessidade de qualquer infraestrutura (IaaS, PaaS, SaaS, etc.).
Os serviços de nuvem oferecem vantagens óbvias em termos de custos e eficiência. Contudo, levantam aspetos importantes. Para além das questões de cibersegurança e privacidade dos dados, estes serviços criam simultaneamente uma grande dependência de terceiros, dependência esta que cresce com a concentração do setor e com as dificuldades para mudar de provedor de serviços.
De acordo com as estimativas do Synergy Research Group, o mercado mundial dos serviços de nuvem é liderado pelo gigante digital Amazon, com uma quota de 34% (terceiro trimestre de 2022), seguido dos seus dois principais concorrentes: Microsoft Azure (21%) e Google Cloud (11%). Estes três operadores representam 2/3 do mercado mundial, enquanto os oito maiores operadores concentram 80% do mercado que cresceu 24% em 2022, atingindo um valor global de faturação de 312 mil milhões de dólares.
«Snowden, acusado de espionagem (arrisca 30 anos de cadeia) e atualmente refugiado na Rússia, deu a conhecer ao mundo em 2013, a forma como os serviços de inteligência norte-americanos, violando todas normas do direito da UE, dos direitos fundamentais e das normas relativas à proteção dos dados, levaram a cabo um trabalho de espionagem em larga escala sobre milhões de cidadãos, incluindo vários chefes de estado, através do acesso aos dados recolhidos pelas grandes empresas do digital.»
Em França, aqueles três operadores chegam a ocupar 80% do mercado. Em Portugal, onde o mercado tem crescido na mesma ordem de grandeza, a liderança é encabeçada pela Microsoft, seguida da Amazon, da Salesforce e da Google. Para lá das questões concorrenciais ligadas às fortes possibilidades de abuso de posição dominante através da qual os gigantes digitais (quase todos norte-americanos) reforçam as suas posições esmagando a concorrência, colocam-se aqui questões de segurança e soberania nacional, num momento em que quase todas as nossas instituições, públicas ou privadas, dependem de um servidor e aplicativos controlados por atores externos.
Desde a diretiva 95/46/EC para proteger os cidadãos europeus contra a transferência descontrolada de seus dados pessoais para países terceiros até ao Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), várias têm sido as tentativas de proteger os interesses das empresas e dos cidadãos perante esta globalização digital profundamente assimétrica que coloca a Europa numa posição claramente subalterna face aos Estados Unidos.
Importa lembrar a cláusula Safe Harbour aberta pela Comissão Europeia sob pressão das grandes multinacionais tecnológicas e que acabaria chumbada pelo Tribunal Europeu de Justiça, graças em parte às denúncias do lançador de alerta, Edward Snowden. Snowden, acusado de espionagem (arrisca 30 anos de cadeia) e atualmente refugiado na Rússia, deu a conhecer ao mundo em 2013, a forma como os serviços de inteligência norte-americanos, violando todas normas do direito da UE, dos direitos fundamentais e das normas relativas à proteção dos dados, levaram a cabo um trabalho de espionagem em larga escala sobre milhões de cidadãos, incluindo vários chefes de estado, através do acesso aos dados recolhidos pelas grandes empresas do digital.
As autoridades nacionais e a sobressaltada comunicação social corporativa permanecem inactivos perante um terramoto que arrasa os mais elementares direitos dos cidadãos. Recorrendo a um velho chavão do jornalismo, a notícia caiu como uma bomba nas redacções e logo se expandiu célere pela grei, que mais alarmada não poderia ficar: a Câmara Municipal de Lisboa denunciou à embaixada da Rússia as identificações de activistas que se manifestaram em Lisboa por um abnegado prosélito da resistência anti-Putin. Como deve ser nestas ocasiões de extrema gravidade para a nação, o chefe de Estado tomou as dores da comunidade e em palavras enfáticas manifestou a sua revolta – que é a revolta de todos – com o comportamento municipal. Pena é que o mesmo chefe de Estado e as carpideiras mediáticas não expressem ira semelhante quando a mesma Câmara Municipal partilha com a embaixada de Israel e a benigna Mossad as identidades de activistas portugueses e palestinianos que não concordam com as chacinas em Gaza e a limpeza étnica praticadas pelo Estado sionista. «O atormentado chefe de Estado e os excitados agentes mediáticos que, num prodígio de imaginação, detectaram que Portugal também tem o seu «Russiagate», poderiam informar-se e informar-nos sobre a assustadora maré de bufaria que nos assalta à escala global» É óbvio que a Câmara Municipal de Lisboa procede indevidamente ao partilhar com entidades estrangeiras dados que lhe são confiados no âmbito das suas actividades e funções. É um mau princípio, um errado comportamento, no fundo um abuso de confiança contra cidadãos que se responsabilizam por actos em que se expressam direitos democráticos como a liberdade de expressão, de opinião, de manifestação. Seja contra autoridades de países amigos, inimigos ou assim-assim. Vejamos, entretanto, o mesmo assunto sob outro ângulo. Será que o bombástico acontecimento ganhou tais proporções apenas porque encaixa às mil maravilhas no contexto russófobo em que a opinião pública tem vindo a ser educada? Apreciemos as coisas ainda de outra perspectiva. Será a Câmara Municipal de Lisboa a única entidade a incorrer em casos de ataque à privacidade de cidadãos enquanto à sua volta tudo são rosas neste campo? Não é necessária uma investigação muito profunda para percebermos que não. A Câmara Municipal de Lisboa limita-se a cavalgar a onda da devassa irresponsável e generalizada das nossas vidas que caracteriza os tempos em que vivemos. O atormentado chefe de Estado e os excitados agentes mediáticos que, num prodígio de imaginação, detectaram que Portugal também tem o seu «Russiagate», poderiam informar-se e informar-nos sobre a assustadora maré de bufaria que nos assalta à escala global. Falemos então de partilha de dados. O investigador alemão Thorsten Wetzling testemunhou em EUObserver, uma publicação insuspeita nesta matéria tendo em conta o seu ferrenho apego ao federalismo, que existe uma «cada vez mais ampla» partilha de dados dos cidadãos entre agências de espionagem dos países da União Europeia num cenário vazio de controlos e de apuramento de responsabilidades. Acresce que estão a ser criadas novas instituições no domínio da espionagem e a ser estabelecidos acordos abrangentes de partilha de dados a vários níveis e diferentes jurisdições – com o maior envolvimento de sempre de empresas privadas. «estão a ser criadas novas instituições no domínio da espionagem e a ser estabelecidos acordos abrangentes de partilha de dados a vários níveis e diferentes jurisdições – com o maior envolvimento de sempre de empresas privadas […]. Os cidadãos, as grandes vítimas do processo, vivem completamente à margem deste universo de devassa da sua privacidade» Sempre num quadro de vazio legal ou de adaptações legislativas insuficientes para lidar com as novas tecnologias, agências de espionagem de todo o continente e o próprio Serviço de Informações de Schengen (SIS) põem em prática novos recursos de vigilância biométrica e de inteligência artificial que lhes permitem operar com o enorme volume, a vertiginosa velocidade e a complexidade dos dados recolhidos, massificando cada vez mais o assalto. Os cidadãos, as grandes vítimas do processo, vivem completamente à margem deste universo de devassa da sua privacidade; mesmo instituições democráticas preocupadas com esta realidade são obrigadas a permanecer à distância por força dos todo-poderosos argumentos da «segurança» ou do «combate ao terrorismo» e equivalentes. Por exemplo, 30 agências de espionagem centralizam informações no gigantesco banco de dados da plataforma operacional do Grupo contra o Terrorismo em Haia, que funciona sem regras claras. O Parlamento Europeu, por sinal o único órgão eleito na estrutura da União Europeia, dá um exemplo de tratamento abusivo de dados pessoais: apreende e sequestra durante seis meses nos seus servidores informações de internet dos visitantes que recorram ao sistema wifi das instalações em Bruxelas e Estrasburgo. Previsivelmente estes dados são partilhados com entidades privadas porque o sistema de wifi foi montado por empresas contratadas, designadamente a britânica BT. E segundo a lei britânica dos Poderes de Investigação, também conhecida como «lei dos bisbilhoteiros», as empresas de telecomunicações são obrigadas a partilhar os seus dados com as autoridades públicas. Não se pense, porém, que o Parlamento Europeu esconde esta actividade de espionagem. Nos «termos e condições» de utilização esclarece que se «reserva o direito de fiscalizar o uso da rede por utilizadores individuais». Não explica é tudo. Além disso, conforme o mundo se apercebeu a partir das oportunas informações veiculadas por Edward Snowden, ex-analista da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA), sabe-se como são porosas as linhas que separam os universos de espionagem da União Europeia, dos Estados Unidos, do Reino Unido e dos chamados Cinco Olhos, que acrescentam ainda o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia à comunidade globalista de devassa. Ao pé deste Big Brother, a Câmara Municipal de Lisboa, com as suas denúncias, tem um desempenho de pueril amadorismo. O escândalo foi manifestamente exacerbado e nada esclarece sobre o tenebroso processo universal de circulação abusiva dos nossos dados privados. Um relatório confidencial da Comissão Europeia admite que informações de cidadãos armazenadas no Sistema de Informações Schengen, que inclui 26 países, entre os quais Portugal, são copiadas ilegalmente por entidades de várias nações, nem todas pertencentes à organização, como é o caso do Reino Unido e dos Estados Unidos. Em sentido inverso, os serviços oficiais de inspecção dos Estados Unidos apuraram que a NSA recolhe e partilha informações de cidadãos recolhidas clandestinamente com «agências de países da União Europeia», considerados «parceiros regulares». «informações de cidadãos armazenadas no Sistema de Informações Schengen, que inclui 26 países, entre os quais Portugal, são copiadas ilegalmente por entidades de várias nações, nem todas pertencentes à organização, como é o caso do Reino Unido e dos Estados Unidos» Trata-se, afinal, de uma irmandade, uma troca assente na confiança mútua e numa convergência que despreza fronteiras e os mais elementares direitos das pessoas. O Supremo Tribunal da Holanda estabeleceu uma jurisprudência segundo a qual as informações sobre cidadãos holandeses recolhidas por agências de espionagem dos Estados Unidos e do Reino Unido são legítimas porque a legislação destes países é suficiente para assegurar as liberdades individuais. Antje De Jong, um jurista holandês de associações cívicas, comentou assim a aberração: «O que o Supremo Tribunal decidiu é que organizações sem escrúpulos, como Edward Snowden demonstrou, estão acima das leis holandesas e provavelmente, por esta ordem de ideias, das leis de outros países europeus». Além disso, os dados obtidos através da multiplicidade de canais e agências são transmitidos a empresas privadas que trabalham com os governos na montagem dos sistemas. Estas realidades foram admitidas em Julho de 2019 pelo próprio comissário europeu de Segurança. Entretanto, o registo antiterrorista da Eurojust e o Portal Europeu de Investigação permitem que perfis pessoais baseados em impressões digitais e imagens faciais armazenados nos sistemas de segurança da Zona Schengen e em polícias como a Europol e a Interpol estejam acessíveis a um número cada vez maior de funcionários em toda a União Europeia. Como se percebe, a privacidade dos cidadãos escorre através de uma rede infindável de canais. Afirma Thorsten Wetzling que estão a ser operacionalizados dados de âmbitos nacionais em plataformas de análise de informações cruzadas ao nível da União Europeia. E que a Comissão Europeia destina mil milhões de euros a este e outros projectos de «interoperabilidade» até 2027. A pilhagem de informações vai aprofundar-se e alargar-se em termos de instituições e meios. «No capitalismo de vigilância as pessoas são, acima de tudo, fontes de informação», considera Shoshana Zuboff, professora e investigadora da Harvard Business School. Assim se explica como a grande devassa, além de ter finalidades de controlo e condicionamento político e social, funciona também como base do imenso negócio da transformação de bancos de dados em fontes de previsões comportamentais a ser utilizadas, por exemplo, em publicidade e outras actividades de caça aos lucros. «Eles já sabem o caminho percorrido por cada telefone móvel. Agora conhecem as frequências cardíacas, o bater do pulso de cada um. O que acontecerá quando começarem a misturar estes e outros dados e a aplicar a inteligência artificial?» Edward Snowden O governo britânico, por exemplo, intimou o Serviço Nacional de Saúde (NHS) a entregar a sua base de dados ao GCHQ, a organização nacional de espionagem, invocando a necessidade de ser protegida contra ataques cibernéticos. Ora os ficheiros de inscritos no NHS, segundo a consultora Ernst & Young, estão avaliados em 10 mil milhões de libras e são cobiçados, entre outros, por multinacionais da indústria farmacêutica, seguros de saúde, hospitais e clínicas privadas. O GCHQ, por seu lado, tem perdido processos judiciais em que é acusado de utilizar hackers e de praticar pirataria de dados, designadamente em colaboração com instituições privadas como Google e Amazon. «Actualmente pratica-se uma vigilância na qual os indivíduos são observados e não têm a sensação de vigilância mas sim de liberdade», diz o filósofo sul-coreano Byung Chul-han. «Sem que estejamos conscientes, somos dirigidos e controlados», acrescenta. «Eles já sabem o que cada um está a ver na internet», recordou Edward Snowden no Festival de Documentários de Cinema de Copenhaga em 2020. «Eles já sabem o caminho percorrido por cada telefone móvel. Agora conhecem as frequências cardíacas, o bater do pulso de cada um. O que acontecerá quando começarem a misturar estes e outros dados e a aplicar a inteligência artificial?» Na ocasião em que as declarações foram proferidas estava no início o processo de utilização da pandemia de Covid-19 como pretexto para aprofundamento da sociedade de vigilância. «Quando observamos as medidas de emergência que estão a ser tomadas, particularmente nesta fase, devemos ter a noção de que elas tendem a ficar “coladas”», advertiu Snowden. A Covid-19 fez disparar uma bateria de instrumentos de controlo e identificação supostamente associados ao combate à pandemia – software, sensores, aplicações para smartphones – com um acréscimo de incorporação de empresas e redes privadas no sistema generalizado de vigilância. O Google, por exemplo, é parte dos instrumentos para perseguir e rastrear pessoas através de telefones móveis e da internet. «A história da criação deliberada do moderno Estado de vigilância inclui elementos do Google com origem surpreendente», escreveu Jeff Nesbit na publicação Quartz. Mas já muito antes, há quase dez anos, a TV norte-americana CBS salientava que «ninguém precisa de ser adivinho para ter a certeza de que a CIA usa o Facebook, o Twitter, o Google e outras redes sociais para espiar as pessoas». Também ninguém precisará de ser adivinho para saber que essas operações de espionagem e de perseguição não estão a cargo de gente e instituições de bem. Em Setembro de 2018, por exemplo, o Google foi condenado a pagar 170 milhões de dólares por recolha ilegal de dados pessoais de crianças. A última versão, provavelmente a mais apurada e elaborada, da estratégia de aproveitamento da pandemia com fins de vigilância, rastreio e controlo de movimentos das pessoas é a massificação dos certificados digitais de vacina, impostos a cada cidadão para poder levar uma vida normal trabalhando, participando em actos políticos, cívicos, de recreio e cultura ou viajando. Teoricamente a vacina contra a Covid-19 não é obrigatória, mas quem não possua o certificado digital de vacinação arrisca-se a uma profunda discriminação, a ficar condenado a um eterno gueto social. Os mil milhões de euros reservados pela Comissão Europeia até 2027 para a «interoperabilidade» dos meios de vigilância, um neologismo que é sinónimo de espionagem em massa, vão incidir, designadamente, no recurso aos mais modernos mecanismos de ataque à privacidade como o reconhecimento facial e outros dados biométricos, processados através de inteligência artificial. A recolha de imagens faciais já está em curso, em «fase de teste», designadamente em Nice – onde podem ser identificados um a um, por exemplo, os participantes no famoso carnaval da cidade. Trata-se de reconhecimento facial sem conhecimento do próprio e num quadro de vazio legal, como reconhece o relatório de Novembro de 2019 da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais. «A Câmara Municipal de Lisboa usou meios prosaicos num processo condenável e o país foi avassalado por um escândalo. Entretanto, os dados de todos e cada um de nós correm mundo, usados e manipulados por interesses públicos e privados desconhecidos para fins quase sempre ignorados em processos tecnológicos das mais recentes gerações geridos apenas pela lei da selva» Segundo este documento, a União Europeia utiliza seis sistemas principais de identificação pessoal, cinco dos quais estão configurados para processar imagens faciais em actividades relacionadas com «segurança» e «migração», conceitos suficientemente amplos para neles caberem quase tudo e quase todos. Entre estes inclui-se o Sistema de Informações de Schengen, onde como vimos, se registam casos de cópias ilegais de informações por países membros e não membros. Diego Naranjo, da organização não-governamental (ONG) European Digital Right, não tem dúvidas de que o uso de reconhecimento facial durante manifestações ou outras actividades cívicas pode desencorajar muitas pessoas de exercerem os direitos básicos de liberdade de reunião, de expressão ou de associação. Por outro lado, «pode acontecer que a tecnologia de reconhecimento facial aumente exponencialmente o número de falsas identificações, por exemplo pessoas detidas sem terem cometido qualquer crime», segundo Nicolas Kaiser-Bril, da ONG Algorithm Watch. É cada vez maior o número de países e de instâncias que recorrem a este método de identificação à revelia das pessoas e sem que haja legislação própria para o fazerem. David Martin, da Organização Europeia de Consumidores, considera que «os consumidores devem ser informados quando empresas ou governos recorrem ao reconhecimento facial de pessoas sem que estas tenham a possibilidade de dizer não». Na falta de legislação específica vigora a lei da selva, que casa muito bem com a espionagem e a devassa massiva da privacidade dos cidadãos. Na União Europeia o reconhecimento facial é tratado no âmbito dos «dados biométricos», regidos pelo Regulamento Geral de Protecção de Dados. Apesar de ser generalista, este exige, ainda assim, que as pessoas estejam cientes de que os seus dados são armazenados, o que não acontece. Em Junho de 2019, um grupo de especialistas de alto nível da União Europeia concluiu que a identificação automática de indivíduos por mecanismos de inteligência artificial suscita «fortes dúvidas de natureza legal e ética». Daí que as pessoas «não devam estar sujeitas a rastreios injustificados de identificação pessoal, física ou mental, a perfis e registos através de métodos de reconhecimento biométrico de inteligência artificial, reconhecimento facial, de voz, identificação comportamental, ADN e íris». Trata-se de métodos que devem ser objecto de legislação específica, recomendam os especialistas. A Câmara Municipal de Lisboa usou meios prosaicos num processo condenável e o país foi avassalado por um escândalo. Entretanto, os dados de todos e cada um de nós correm mundo, usados e manipulados por interesses públicos e privados desconhecidos para fins quase sempre ignorados em processos tecnológicos das mais recentes gerações geridos apenas pela lei da selva. O chefe de Estado, outras compungidas autoridades nacionais e a sobressaltada comunicação social corporativa, no entanto, permanecem inactivos perante um terramoto que arrasa os mais elementares direitos dos cidadãos. Pondo de lado a hipótese de desconhecerem a existência de uma situação tão grave, estamos apenas perante um silêncio cúmplice. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. 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Falemos então de partilha de dados
A campeoníssima União Europeia
Irmandade da espionagem
Sistema comercial de manipulação
O futuro que já é presente
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O Cloud Act, adotado posteriormente em 2018 pelo Congresso dos Estados Unidos, estabelece, é certo, algumas regras para o acesso aos dados por parte das autoridades judiciais. Contudo, esta legislação levanta muitas dúvidas sobre as suas reais intenções. Permite, por exemplo, o acesso a todos os dados, ainda que os servidores da empresa sob jurisdição norte-americana estejam situados num outro país, dispensando assim qualquer acordo internacional.
Estima-se hoje que 80% dos dados gerados pelos utilizadores europeus estejam alojados em servidores controlados por empresas norte-americanas. A par das bases militares dos Estados Unidos e da NATO, cresce uma infraestrutura de cabos e servidores dominada pelas chamadas Big Tech norte-americanas e potencialmente ao serviço de um sistema de vigilância à escala mundial a que muitos chamam de colonialismo digital [1].
Não é por acaso que estão registados em Bruxelas 1452 lobistas aos serviços das grandes multinacionais tecnológicas, com um orçamento anual estimado em 97 milhões de euros destinado a influenciar a legislação europeia a seu favor. Em Portugal, o Conselho para as Tecnologias de Informação e Comunicação na Administração Pública (CTIC) elaborou em 2022 a chamada “Estratégia Cloud para a Administração Pública em Portugal”. O documento propõe a «adoção da cloud, sempre que possível, em modelo inteligente, seguro e eficiente», entendendo-se como cloud, «os serviços de cloud disponibilizados publicamente pelos prestadores de serviços cloud que atuam no mercado». Hoje, o recurso à nuvem está já largamente difundido por todos os ramos e níveis da administração pública. É tempo de colocar a soberania digital na ordem do dia!
[1] O colonialismo digital é definido como o uso da tecnologia digital para fins de dominação política, económica e social de outra nação ou território.
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