|José Goulão

Crónica de um combate em Sala Oval

E a Europa que ia tão bem à sombra de Washington, vivendo do que sobrava da rapina norte-americana, o que dava para a nossa classe política viver bem, desde que não faltasse também a riqueza que continua a escorrer enquanto esprememos os nossos povos. Trump veio estragar tudo. 

CréditosJim Lo Scalzo ; Pool / EPA

A ópera bufa protagonizada, no cenário certo, por dois políticos reles e irresponsáveis, sociopatas de gema que quase se envolveram à estalada por causa da bagatela de 350 mil milhões de dólares e milhão e meio de mortos, é o retrato do império que nos subjuga, um exemplo cru de como funciona a «ordem internacional baseada em regras» que engoliu o Direito Internacional.

Do lado de cá do Atlântico, uma horda de pequenos mafiosos, suseranos do galifão de crista que ameaçava com o dedo em riste o tipo ostentando o grafismo do nazi-banderismo na farda, espremiam-se fazendo claque pelo pequeno führer, eles mesmos em pânico por se sentirem abandonados pelo padrinho de Washington – quem vai agora defender-nos do papão de Leste?

Assim vai o Ocidente, espelho da «nossa civilização».

Aos 350 mil milhões de dólares da discórdia, esbanjados numa vergonhosa derrota segundo o imperador de turno, devem acrescer-se mais uns milhares de milhões, não de dólares mas de euros, que os nossos dirigentes sacaram dos nossos bolsos, sem o decoro de pedir licença – há várias designações para o acto, o leitor tem muito por onde escolher – agravando a fome e a miséria, o analfabetismo funcional, a indigência cívica, o racismo e a xenofobia, espalhando a habitação precária abarracada e humilhante por territórios cada vez mais vastos; enquanto primeiros-ministros, como o de Portugal, dando-se muito bem por conta própria, explicam que vivemos no paraíso, os povos é que não sentem nem sabiam.

Se calcularmos por alto os valores envolvidos, no meio dos quais os cinco mil milhões de dólares investidos em 2014 pela equipa Obama/Biden no golpe sangrento de Maidan em Kiev, o óvulo disto tudo, não são mais do que uma gorjeta; o somatório situa-se, pelo menos, nos 400, 500 mil milhões de dólares/euros. Essa é verba despendida pelos paladinos dos direitos humanos e proprietários dos «valores ocidentais» para liquidarem mais de um milhão de ucranianos e, ao que parece, umas centenas de milhares de russos; seres humanos que não lhes fizeram mal nenhum e que, no caso ucraniano, lá iam vivendo naquela recomendada democracia liberal desde a independência do seu país estabelecida à martelada sobre o cadáver da União Soviética. Um sistema que não funcionava nem melhor nem pior do que noutros países guiados pelo farol democrático de Washington, equipado para alumiar todo o mundo no tal futuro mirífico em que nada teremos e seremos felizes.

A democracia liberal, porém, não é perfeita. E no caso ucraniano tinha escolhido quem não devia, pelo que o imperador e os colonos se viram obrigados a corrigir o defeito através de métodos mais eficazes. Tal remedeio, é certo, teve como resultado a chacina de aproximadamente milhão e meio de pessoas numa guerra tão artificial como o jardim de Borrell, mas todos aprendemos há mais de 30 anos, pela voz de grandes mestres na matéria, que os esforços para implantar a democracia entre os bárbaros não conseguem evitar os danos colaterais. Como explicam os deuses do neoliberalismo, progenitor da democracia liberal, não há almoços grátis. 

Combate viciado, como é próprio do império

A altercação na Sala Oval da Casa Branca, onde a cada segundo se define como deve andar o mundo, foram provocadas, em primeira instância, pelo ajuste de contas entre agiota e credor sobre os tais 350 mil milhões da discórdia, mas o contexto é mais vasto. Sem deixar de assinalar que a anterior administração de Washington informara a ditadura de Kiev de que a fartura de armamento era expedida em leasing, método interpretado pelos acarinhados terroristas como cedida a fundo perdido. Portanto, agora é que são elas. 

Num canto do ringue, o imperador não deixou dúvidas de que pretende fugir a todo o custo, não apenas da vergonha militar na Ucrânia como dos encargos que os incapazes suseranos europeus lhe provocam por causa do seu entranhado pavor do que pode vir do Kremlin, seja o ocupante quem for, chame-se Putin, Estaline, Lenine ou outro alguém com nome e coroa de czar. Não interessa: no Kremlin não se pensa noutra coisa que não seja dar cabo dos malandros dos europeus.

É certo que Napoleão procurou instalar-se nesse mesmo Kremlin para que o perigo fosse eliminado de vez. A coisa correu mal e só então os malditos russos saíram da toca e vieram Europa fora até deixarem o imperador francês em Paris, no lugar de onde nunca devia ter saído.

Hitler repetiu a façanha mais de um século depois e aconteceu mais ou menos o mesmo. E lá vieram outra vez os russos, desta feita até Berlim, onde refeições de cianeto ou de outra coisa do género impediram o führer e seus comparsas de os receber.

Se os acobardados dirigentes europeus não fossem uns cábulas em História ou não se entretivessem apenas com os contos de fadas narrados pelos seus historiadores amestrados, saberiam que os russos não têm por hábito deixar o sossego das suas terras e o usufruto das suas riquezas humanas e naturais para se virem imiscuir neste ninho de víboras a que chamam União Europeia, confundida abusivamente com a Europa. Seria até um caso de masoquismo a merecer acompanhamento especializado. Sejamos práticos e realistas: o que ganhariam eles em meter-se numa megaempresa falida gerida por incompetentes não eleitos e que têm como ocupação única, além de remoerem a ameaça russa, a de maltratarem os seus povos? Tratar do seu país imenso já lhes dá bastante que fazer.

É certo, como todos verificámos, que aquele combate na Sala Oval foi viciado, como é da praxe nos espectáculos imbecis da luta livre americana. Trump usou como reforço o seu segundo, JD Vance, especializado em falar verdade aos europeus, explicando-lhes o que eles verdadeiramente são, desnudando-os sem decoro. Um formato injusto, sem dúvida, mas que fazer? A «ordem internacional baseada em regras» é assim, quem dita as regras ou a ausência delas é a única nação «indispensável» e «excepcional». Citando mais uma vez o sabichão Kissinger, o que nunca é demasiado enquanto os invertebrados europeus berram como carpideiras contratadas, «ser inimigo da América é perigoso, mas ser amigo é fatal».

«Se os acobardados dirigentes europeus não fossem uns cábulas em História ou não se entretivessem apenas com os contos de fadas narrados pelos seus historiadores amestrados, saberiam que os russos não têm por hábito deixar o sossego das suas terras e o usufruto das suas riquezas humanas e naturais para se virem imiscuir neste ninho de víboras a que chamam União Europeia, confundida abusivamente com a Europa.»

No outro canto do ringue da Sala Oval esteve o imitador de führer banderista, marioneta manipulada até agora por Obama e Biden («stupid president», lhe chamou Trump como quem dá um murro nos rins de Zelensky) e também pelos europeus –  a quem o nazismo não faz comichão e até complementa cada vez mais a democracia liberal.

O bando de criminosos que o golpe norte-americano de Maidan instalou em Kiev, com apoio de Bruxelas – que até aceitou como merecida autoflagelação o «fuck the EU» de Nuland – encorajou os nazi-banderistas a assumirem a raça pura que um qualquer deus lhes soprou para limparem o país da escória russa dos territórios de leste. Apesar da carnificina, na qual contaram com o apoio «diplomático» em formato de burla garantido por gente de bem da democracia liberal como Angela Merkel e François Hollande, não completaram a tarefa porque os russos do Kremlin perderam a paciência e disseram «acabou-se a brincadeira».

Caiu o Carmo e a Trindade com tal atrevimento. Vêem como os russos afinal saem da toca? Ao que parece, contudo, pouco mais traziam do que as mãos a abanar, quanto muito umas pás e outras alfaias agrícolas como munições, peças de máquinas de lavar até estariam a mais para quem acabara de sair da Idade Média para se atrever a confrontar-se com o futuro antecipado.

Mesmo assim, haveria que ter cuidado. De Washington e Bruxelas choveu dinheiro, transportaram-se para Kiev armas e outros equipamentos militares de muitas gerações, até das que estão para vir, a vitória esteve à mão de semear, as ofensivas de Verão iriam despachar os russos com as caudas entre as pernas, mas os instrumentos agrícolas e outros adereços arrancados a electrodomésticos afinal pareciam trazer poderes sobrenaturais: e a verdade é que a vitória esmagadora se transformou numa aterradora derrota, a mãe de todos os medos.

Nos cemitérios ampliados para dimensões nunca vistas, nos campos de batalha distribuídos através de toda a Ucrânia jazem e apodrecem mais de um milhão de seres humanos. O país está em ruínas, falido, os cidadãos comuns fogem desesperadamente aos raptos para não serem enviados para os cadafalsos da frente. Grande parte da população abandonou o naufragado barco, se bem que sejam muitos os que aproveitaram para ajudar ao saque do país.

«Citando mais uma vez o sabichão Kissinger, o que nunca é demasiado enquanto os invertebrados europeus berram como carpideiras contratadas, "ser inimigo da América é perigoso, mas ser amigo é fatal".»

A comunicação social que tem os senhores da guerra como patrões cantou hossanas às gloriosas vitórias, atiçou-nos a todos contra os selvagens dos russos e agora geme como quem encomenda as almas na Quaresma. Não se importa de ter jogado com a sensibilidade, a boa fé e a credibilidade das pessoas a quem era suposto servir. Cumpriu a sua missão, na altura certa haverá condecorados.

Ai que vêm aí os russos, clamam os inúteis chefes europeus, com as mãos na cabeça e perdidos entre visitas e reuniões «de emergência» onde tomam decisões que nascem inaplicáveis. Zelensky bem avisa, dando agora o dito por não dito: eles têm, afinal, um exército terrível; «se a Ucrânia cair os russos tomarão conta de toda a Europa». Talvez seja exagero: no caso de se cumprir o histórico da História, de Kiev não passarão – até pode acontecer que abdiquem de chegar lá. 

Ao fim e ao cabo desta cegada entre gente sem sentimentos nem emoções, Zelensky deve sentir-se afortunado por sair da Sala Oval apenas com uns tabefes verbais. 

Atribulações dos europeus na Europa

Na hora da debandada e do salve-se quem puder, os primeiros a tentar safar-se são os mesmos que, na qualidade de donos do mundo, criaram a catástrofe e a matança de inocentes. A comandar as hostes golpistas está agora Trump, não Obama ou Biden, os responsáveis directos. Trump exerceu um primeiro mandato como presidente já a agressão contra as impuras minorias estava há muito em andamento, mas como as vítimas eram ainda apenas os russos do Donbass, deixa andar que segue tudo sobre rodas. 

Agora o caso mudou de figura, é preciso recorrer à estratégia usada no Vietname ou no Afeganistão: salvar a pele, não deixar pedra sobre pedra, não sem antes acertar contas e assegurar os despojos a que, sendo o império o que é, tem direito por concessão divina. Afinal as guerras fazem-se para ganhar dinheiro em negócios sem limites e sem regras, podendo ainda contribuir para um alívio demográfico do planeta, como defendem credenciados eugenistas instalados em posições influentes nas mais poderosas seitas neoliberais.

«A comunicação social que tem os senhores da guerra como patrões cantou hossanas às gloriosas vitórias, atiçou-nos a todos contra os selvagens dos russos e agora geme como quem encomenda as almas na Quaresma.»

Interpretando o que está a passar-se, percebe-se que chegou a hora de exigir, de um lado, e regatear, do outro; é aí que estamos, com os resultados a que o mundo pôde assistir ao vivo e a cores a partir do ringue da Sala Oval. O agiota exige o capital e os juros que calcula como lhe apetece; o pedinchão sente pela primeira vez o que é alguém pôr limites aos seus caprichos sanguinários: «você está a brincar com a Terceira Guerra Mundial» – nunca o verme da Casa Branca tivera um momento de tamanha lucidez, com recado extensível aos parasitas da Europa. 

Pela boca de Trump, os Estados Unidos querem como recompensa  a riqueza da Ucrânia em terras raras, elementos naturais pouco abundantes, como explica o seu baptismo, indispensáveis para a indústria dos chips e susceptíveis de garantir o monopólio da inteligência artificial, que pertence ao império, nem poderia ser de outra maneira. Até porque, sendo a Natureza traiçoeira como é, as principais reservas de terras raras, numa percentagem esmagadora de mais de 80% e violando todos os princípios do mercado e da leal concorrência, estão lamentavelmente enterradas na República Popular da China, que sabe bem quanto valem.

Por isso há que deitar mão ao remanescente existente na Ucrânia, ainda que seja minério a escorrer sangue humano, que se há-de fazer, a vida continua e ao império o que é do império. E há que assegurá-lo antes que os europeus reclamem o seu quinhão. Mais uma vez, Nuland é que a sabia toda, «fuck the EU».

Mas os europeus, senhor, porque lhes dais tanta dor?... O pequeno Napoleão desmultiplica-se em expedições, por ele ia até ao Kremlin porque em tais situações mesmo o diabo pode ser útil. O desastrado candidato a mini-fuhrer de Berlim, mascarado de social-democrata, foi atirado para o lixo mas, ainda assim, conseguiu cumprir uma missão histórica: devolver a Alemanha às extremas direitas e deixar de pantanas o velho, ainda que abastardado, partido que dizia representar.

Em Bruxelas, Von der Leyen, Kallas e Costa, este no papel de basbaque impante quando se passeia ao lado de Zelensky, mimam e embalam o moribundo ditador de Kiev, ameaçam mandar tropas de «paz» que não têm – e ainda bem para elas porque já chega de cadáveres no território ucraniano. Mas garantem que vão fazer com que a Ucrânia vença a guerra a todo o custo. Sim, não somos cobardes nem interesseiros como o arrivista do Trump, mesmo que da velha Europa, sequestrada pela fraude da União Europeia, nada mais reste. Não nos renderemos, vamos defender-nos atacando, não precisamos dos traiçoeiros Estados Unidos para nada: e assim terminará ingloriamente a ficção da União Europeia, ficando a própria NATO a duvidar se tem futuro.

O que existe para lá do eixo franco-alemão e do triunvirato ditatorial de Bruxelas em que assenta o poder executivo da União, fala mas não diz nada, reúne-se mas não vai além de rabiscos insignificantes no bloco de apontamentos, com excepção de duas ou três aberrações a quem o mostrengo de Putin não provoca pesadelos.

Em bicos de pés, Macron, o debutante Friedrich Merz, o imitador de Blair chamado Keir Starmer tentam falar grosso, mas o som sai-lhes fininho das entranhas, falta-lhes qualquer coisa; não temos armas, não temos dinheiro, não temos indústria, não temos recursos naturais. E a Europa que ia tão bem à sombra de Washington, vivendo do que sobrava da rapina norte-americana, o que dava para a nossa classe política viver bem desde que não faltasse também a riqueza que continua a escorrer enquanto esprememos os nossos povos. Trump veio estragar tudo. 

Por isso queremos prosseguir a guerra e, ao mesmo tempo, entrar nas negociações de paz – nós que até proibimos a palavra «paz» e perseguimos quem insistia em usá-la – e levar o Zelensky connosco; temos esse direito, afinal deixaram-nos na penúria, desarmados e à mercê dos gananciosos e insaciáveis do Kremlin, capazes de nos arrancar a pele. Também somos gente, gritam enquanto ninguém os ouve.

Moral desta história de terror: não é dos russos que a Europa e os europeus têm de se proteger. É dos seus próprios dirigentes. 

Para isso não há outro remédio que não seja substituir a mafiosa democracia liberal pela democracia, isto é, o sistema em que os desprezíveis da classe política que sequestraram o poder de decidir sejam varridos de cena – noutros tempos seriam defenestrados – e os povos se façam ouvir com a sua legítima voz de comando.

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