E o feitiço está a virar-se contra o feiticeiro.
Os inspiradores, condutores e financiadores do golpe de Estado de 2014 na Praça Maidan, em Kiev, estão a sofrer as consequências desse atentado grosseiro contra a democracia montado exclusivamente para defender interesses alheios aos do povo ucraniano e estender o campo de acção da NATO até às fronteiras da Rússia.
O Ocidente está em choque com a derrocada de pilares que sustentam as alianças transatlânticas, que pareciam sólidas, como se correspondessem a um devir histórico, e afinal são vulneráveis quando os interesses contraditórios envolvidos finalmente entram em conflito. O que Davos tem vindo a construir tão laboriosamente com golpes, manipulação e propaganda no sentido do globalismo, a conferência de Munique veio agora atrapalhar.
Não poderá dizer-se que se trata de um caso de zanga entre comadres. É muito mais uma ruptura do tipo de relações habituais mantidas numa teia mafiosa entre o Padrinho e os seus Cappos.
Como ainda recentemente – em termos históricos – aconteceu no Afeganistão, os Estados Unidos estão em debandada da Ucrânia, arrastando consigo uma NATO atónita e dentro da qual o secretário-geral não sabe o que há-de dizer, a não ser dislates em que consegue pronunciar considerações e as suas contrárias numa mesma intervenção.
À fuga norte-americana das consequências da situação que criou há 11 anos em Kiev, e que custaram, logo para começar, cinco mil milhões de dólares à Fazenda de Washington, segundo versão oficial, corresponde a entrada numa fase ainda mais grave da longa agonia que antecede a morte da União Europeia. Enredada nos laços que criou por se ter envolvido, desde o primeiro momento, no apoio acrítico ao regime totalitário nazi-banderista instituído através do golpe, os 27 ficam agora com o menino nos braços e sem o direito a negociar soluções. Continuam a proclamar que apoiarão até às últimas consequências a casta corrupta e criminosa da qual a figura mais visível é o presidente ilegítimo Zelensky, de modo a «que a Ucrânia vença». Para alimentar a ilusão de que irão alcançar esse objectivo, cultivam a ideia insana de enviar tropas com uma dimensão de efectivos que não têm; dispõem-se a mandar dinheiro em cima do que já voou em anteriores donativos para as contas da seita nazi e que agora também não possuem porque cumprem com obediência canina as sanções à Rússia decretadas pelos Estados Unidos; e consideram-se obrigados a encaminhar ainda mais armas para o regime ucraniano – em estado muito mais para lá do que para cá – com os seus próprios arsenais já esvaziados. E se, com risco do seu próprio futuro a curto prazo, quiserem continuar com essa «democrática» missão, vão ter de comprar armamento aos senhores norte-americanos da morte, que já esfregam as mãos antecipando mais esse bónus.
«Como ainda recentemente – em termos históricos – aconteceu no Afeganistão, os Estados Unidos estão em debandada da Ucrânia, arrastando consigo uma NATO atónita e dentro da qual o secretário-geral não sabe o que há-de dizer, a não ser dislates em que consegue pronunciar considerações e as suas contrárias numa mesma intervenção.»
Numa reacção patética, uma parcela ínfima dos chefes de governo europeus mais o secretário da NATO e os principais eurocratas não eleitos de Bruxelas, Van der Leyen e Costa, reuniram-se em Paris «de emergência» para decidirem como continuar a dar «todo o apoio» ao regime ucraniano; e também para exigir a participação nas negociações de paz e preparar o envio de tropas para a Ucrânia.
Este conclave daqueles que abdicaram de ter voz e agora pretendem falar grosso merece duas notas adicionais. A de que esses agora órfãos de Washington ainda não perceberam o tremendo alcance do problema em que se meteram ao longo destes anos. A sua situação é do tipo daquelas que o povo às vezes invoca, neste caso aplicada a propósito da negociação de Putin com Trump: não é preciso falar com os cães quando se pode falar com o dono dos cães. E se a ideia peregrina de enviar tropas como «forças de paz» continuar a ir para a frente é porque a União Europeia decidiu finalmente suicidar-se, abreviando o permanente definhamento de que tem padecido.
Até um político reles humilha a União Europeia
Como se não fossem bastantes as consequências do desprezo total a que a União Europeia foi condenada pelos Estados Unidos, depois de anos e anos de vassalagem indigna a Washington em todos os assuntos de âmbito internacional, os dirigentes europeus ficaram a saber que o vice-presidente norte-americano, JD Vance, usando o púlpito da chamada «conferência de segurança» de Munique, diagnosticou que «a principal ameaça à Europa vem de dentro, não da Rússia ou da China». Ouviram o que merecem até de um indivíduo reles, um desqualificado sofrendo de histeria do poder.
Aqui chegados é uma boa altura para recordar o sábio conspirador Henry Kissinger: «Ser inimigo da América é perigoso, mas ser amigo da América é letal». A casta governante dos 27 não pode alegar que não estava avisada.
Vance não se ficou por aí no constrangedor discurso de Munique. Em muitas das passagens da oratória sobressaiu a total desconsideração e a ostensiva desvalorização da sabujice dos dirigentes da União Europeia em relação a tudo quanto se decide em Washington, incluindo a maneira suicida como se emaranharam na teia tecida pelos nazi-banderistas de Kiev confiando em que a tutela norte-americana sobre a situação seria garantida enquanto necessária.
O vice-presidente dos Estados Unidos humilhou a União Europeia definindo-a como «fraca» e acusou-a de «sair da linha dos interesses americanos e valores compartilhados». Especificou, como um toureiro que termina triunfalmente a faena e inicia a volta ao redondel, que o Ocidente hoje «se expõe por não ter consenso sobre coisa alguma» e, acrescentando um pouco mais de sal à ferida, acusou os governos europeus «de censurar a liberdade de expressão e recuarem nos valores democráticos fundamentais».
«Em muitas das passagens da oratória sobressaiu a total desconsideração e a ostensiva desvalorização da sabujice dos dirigentes da União Europeia em relação a tudo quanto se decide em Washington, incluindo a maneira suicida como se emaranharam na teia tecida pelos nazi-banderistas de Kiev confiando em que a tutela norte-americana sobre a situação seria garantida enquanto necessária.»
Os argumentos de Vance para chegar a esta conclusão são de um reacionarismo ultramontano e atroz, o que destroça ainda mais o abalado prestígio da União Europeia ao seguir obedientemente Washington. Porém, num dos argumentos explicitados o vice-presidente norte-americano tem alguma razão: o da Roménia, onde recentemente foram anuladas as eleições presidenciais devido à vitória de um opositor do regime oriundo da extrema-direita populista. Disse: «Podemos aceitar que é errado a Rússia comprar anúncios nas redes sociais para influenciar as vossas eleições, mas se a vossa democracia pode ser posta em causa por algumas centenas de milhares de dólares em publicidade digital de um país estrangeiro, então não é assim tão forte».
Os dirigentes europeus que assistiram em directo a esta exibição do representante trauliteiro do nacionalismo imperial arengando aos suseranos ficaram em choque, acharam que não mereciam tamanha ingratidão.
«Pode ficar registado na História que este foi um dia negro para a Europa», queixou-se amargamente Marko Mikkelson, presidente do Parlamento da Estónia; a sua pobre compatriota Kaja Kallas, em missão de serviço como chefe da «política externa» da União Europeia, ficou estarrecida com o facto de os Estados Unidos estarem «em confronto» com a Europa.
O diário britânico The Telegraph decidiu resumir o desgosto de todos na sua manchete: «Agora é o mundo de Putin e Trump. Estados Unidos deixaram de estar interessados em garantir a segurança na Ucrânia e na Europa».
A paz estará mais próxima?
JD Vance foi o primeiro enviado de alto nível de Donald Trump à Europa depois de ter novamente tomado posse na Presidência dos Estados Unidos. Não trazia qualquer «plano de paz», informou o presidente. Quanto aos seus outros enviados à conferência de Munique, o secretário da Defesa Hegseth e o intermediário para as negociações sobre a Ucrânia Kellog, estiveram na capital bávara apenas «para ouvir o que os parceiros têm a dizer». Afinal, bem no estilo imprevisível de Trump, Vance tinha recomendações para fazer estalar a ténue camada de verniz das relações transatlânticas, que a União Europeia cuidava ter a solidez de betão.
Estas danças e contradanças agitando a paz podre e dominadora que as administrações democratas norte-americanas impõem de maneira mais soft à Europa teve como música de fundo as notícias sobre a conversa telefónica de hora e meia entre o chefe do Kremlin e o mega oligarca da Casa Branca.
Notícias que também pareceram deixar os dirigentes europeus à beira de um ataque de nervos, porque este formato os deixa isolados na tarefa de apoiar o regime ucraniano sem terem uma palavra a dizer na procura de uma solução para pacificar o país. Os eurocratas, tecnocratas e autocratas de Bruxelas ficaram incomodados com o facto de Zelensky também ter sido posto de lado, em parte porque Trump e Putin parecem de acordo quanto à ilegitimidade da sua presença na presidência em Kiev. O presidente norte-americano manifestou-se até céptico quanto ao futuro político do chefe formal do nazi-banderismo comentando que, numa perspectiva eleitoral, «os seus números nas sondagens não são óptimos, para dizer o mínimo».
As vagas informações sobre a conversa entre Putin e Trump, a primeira entre os principais dirigentes russo e norte-americano em longos anos, estão a ser amplamente especuladas em relação inversa com o seu conteúdo pobre e quase de circunstância, uma espécie de soma de itens canónicos de relações públicas.
Se algumas intenções atribuídas a Trump não forem por este invalidadas, conhecidas que são as suas tendências contumazes para a mentira e a incoerência, Putin terá obtido a aceitação de duas das exigências russas em relação a um eventual plano de paz: a impossibilidade de regresso às fronteiras de 2014 – a inclusão de quatro oblasts (províncias) no território russo parece ter sido uma hipótese levantada; e a Ucrânia não fará parte da NATO, travando-se assim a expansão da aliança para Leste.
Trump terá dado igualmente garantias de que nem tropas dos Estados Unidos ou da NATO integrarão qualquer «força de paz» que hipoteticamente seja expedida para o território ucraniano. A concretização desta intenção significará que o artigo 5.º do Tratado do Atlântico, que implica resposta de toda a aliança no caso de um membro ser atacado, não será válido para quaisquer tropas europeias que pretendam instalar-se na Ucrânia – ficando assim por sua conta e risco. Putin, recorda-se, já afirmou que militares de países europeus que entrem em território ucraniano, incluindo os que se declararem membros de uma «força de paz», sujeitam-se a não regressar com vida aos seus países.
«Os eurocratas, tecnocratas e autocratas de Bruxelas ficaram incomodados com o facto de Zelensky também ter sido posto de lado, em parte porque Trump e Putin parecem de acordo quanto à ilegitimidade da sua presença na presidência em Kiev.»
A União Europeia, contudo, continua a insistir nesta intenção, embora entre os 27 haja quem comece a levar a sério as declarações do chefe do Kremlin.
Na verdade, o exército russo que, segundo perspectivas comuns na Europa, mal saíra ainda da Idade Média e a carência de armamento era tal que os soldados se viam obrigados a usar utensílios agrícolas do género de pás, forquilhas e ancinhos, ou mesmo peças de máquinas de lavar como munições, transfigurou-se, de um momento para o outro, num terrível e gigantesco monstro de eficácia.
Ouçamos o ministro da Defesa da Lituânia, Davilé Sakaliené: «As capacidades militares russas já são três vezes maiores do que eram quando começou a invasão da Ucrânia em larga escala há três anos; e tudo isso aconteceu num contexto de guerra activa».
E o próprio Volodymyr Zelensky, que durante meses e meses se declarou à beira da vitória contra as incapazes e saloias tropas russas, garante agora que, «depois da queda da Ucrânia, a Rússia ocupará a totalidade da Europa com toda a facilidade».
Pelo que a Europa, segundo a publicação alemã Die Welt, tem um problema com a fuga e a traição de Trump. Diz-se que a «força de paz» necessita de pelo menos 120 mil efectivos no terreno mas os países europeus, segundo aquela fonte, não seriam capazes de mobilizar mais de 25 mil.
Tentando interpretar o que fluiu para o exterior da conversa de Trump com Putin há dados a garantir que a paz não está próxima, ao contrário de considerações que correm abundantemente; não por as eventuais negociações excluírem a União Europeia ou Zelensky, mas sim porque existe uma discordância de fundo à partida: o presidente norte-americano quer um cessar fogo imediato na actual linha de contacto e Putin, escaldado com o desrespeito por acordos anteriores como os de Minsk, aproveitados para reforçar as tropas ucranianas, quer entendimentos acompanhados por garantias legais e a eliminação das causas profundas do conflito, no âmbito das quais a impossibilidade de a Ucrânia entrar na NATO é apenas uma delas.
A Rússia, tudo o indica, não abdicará das desnazificação e da neutralidade da Ucrânia e também, como foi proposto anteriormente em documento que está nas mãos da União Europeia e da NATO, de um acordo de segurança indivisível ao nível da Europa no qual a segurança de qualquer país não possa ser obtida à custa da segurança de outro ou outros.
Nada nas informações escassas saídas da conversa permite perceber se Trump aceita ou não discutir nessas bases. Sem esse acordo, garante Moscovo, «a guerra deverá continuar e a Rússia terá de usar meios militares para garantir a sua segurança e a dos aliados». O vice-ministro dos Negócios estrangeiros russo, Sergei Ryabkov, disse o mesmo por outras palavras: «A suposta oferta de um grande favor em troca de exigências inaceitáveis dos Estados Unidos está fadada a fazer fracassar quaisquer negociações com a Rússia.»
Postas as coisas neste pé, uma paz negociada está, por enquanto, quase tão distante como antes da conversa, sobretudo se Trump fizer depender tudo de um cessar-fogo imediato. No entanto, segundo afirmou enigmaticamente o vice-presidente Vance em Munique, «acho que há um acordo que vai sair disto tudo e que chocará muita gente».
De concreto, sempre com a ressalva do facto de o presidente norte-americano ser capaz de dar o dito por não dito de hora a hora, parece assegurado que os Estados Unidos abandonam o auxílio militar a Kiev, deixando a Europa com essa responsabilidade, se for capaz disso, correndo o alto risco de antecipar a sua implosão; e não permitirão que a Ucrânia venha a fazer parte da NATO. Também parece ser intenção de Trump não aceitar que qualquer acordo seja assinado por Zelensky pela parte ucraniana, pelo menos sem que este se submeta a eleições presidenciais.
Fugir sim, mas de bolsos cheios
Os Estados Unidos fogem militarmente da Ucrânia, mas não com as mãos a abanar. Em vez das pretendidas conversações com Trump, Zelensky foi forçado a receber o secretário norte-americano do Tesouro, Scott Bessent, já depois de ser informado pelo secretário da Defesa, Peter Hegseth, de que «a Ucrânia terá de ceder territórios à Rússia» e «o regresso às fronteiras de 2014 é irreal», de acordo com declarações publicadas pelo New York Times.
Quanto a Scott Bessent, o único objectivo declarado foi o de extrair concessões minerais da Ucrânia. Um acordo já estabelecido, segundo fontes ucranianas e norte-americanas, resulta da exigência dos Estados Unidos de fazer contas aos 300 mil milhões de dólares que o país investiu para garantir a sobrevivência militar e política do regime nazi-banderista; esse acerto do deve e haver contabilizado desde o golpe de Maidan fez-se, ao que consta, mediante a aplicação de juros de agiota porque Zelensky aceitou que os Estados Unidos possam deitar a mão a 500 mil milhões de dólares em terras raras, minerais indispensáveis ao fabrico das mais modernas tecnologias, sobretudo microchips, e de que as reservas mais abundantes, a um nível de 90%, existem no território da China.
«De concreto, sempre com a ressalva do facto de o presidente norte-americano ser capaz de dar o dito por não dito de hora a hora, parece assegurado que os Estados Unidos abandonam o auxílio militar a Kiev, deixando a Europa com essa responsabilidade, se for capaz disso, correndo o alto risco de antecipar a sua implosão; e não permitirão que a Ucrânia venha a fazer parte da NATO.»
Dentro da Ucrânia registou-se imediatamente uma primeira reacção desfavorável ao acordo. A 79.ª brigada de assalto anfíbio, Brigada Tavri – muito interligada com os nazi-banderistas do Azov – deixou de combater alegando que não pretende defender interesses de outros. «Zelensky não tem nada que dar, muito menos duas ou três vezes mais que o apoio recebido», disseram porta-vozes da brigada. «É tudo nosso».
Parece, contudo, que Washington não está ainda satisfeito com os 500 mil milhões de dólares, uma vez que, segundo palavras de Trump, «a Ucrânia pode ser russa qualquer dia». Da conferência de Munique saíram informações citadas pelo jornal Washington Post, segundo as quais os Estados Unidos puseram Zelensky diante de um acordo sobre matéria não especificada que teria como contrapartida a concessão a Washington de 50% das futuras receitas minerais ucranianas. O jornal revela que Zelensky não aceitou, mas certamente o assunto não fica por aqui.
Na conversa que mantiveram, Trump e Putin terão concordado em que «o bom senso» deverá prevalecer no caminho para negociações e a celebração de um eventual tratado de paz nesta guerra que, «numa presidência minha nunca teria existido», disse o dirigente norte-americano.
Verdade ou mentira? Jamais o saberemos. Mas não tenhamos ilusões nem dúvidas de que, mais de um milhão de mortos depois, a paz continua longínqua. Sob a tutela de Putin e Trump, entre os quais existe logo à partida um diferendo limitador relacionado com o cessar-fogo, o cenário de hipotéticas negociações formais é ainda um magma de contradições que, até aqui, têm sido insanáveis. A Rússia, porém, é a parte que menos pressa tem, talvez convicta de que o tempo joga a seu favor para prosseguir os avanços militares e reforçar o poder negocial. Daí, por sua vez, a urgência de Trump num cessar-fogo.
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