Teatro. Continuamos a observar, a analisar, a problematizar. Continuamos a ter ideias e novas propostas para apresentar. Continuamos a escrever ou a escolher textos para falarmos sobre os tais problemas e através das tais ideias. Continuamos também a decidir que nem sempre precisamos de textos para dizermos e mostrarmos uma história, um pensamento, uma pergunta, um estado de espírito. Continuamos a querer pensar e a querer que pensem connosco. Continuamos a querer emocionar, incomodar, chatear ou apenas entreter. Continuamos a congeminar mil maneiras de fazer o mesmo com menos, de ter figurinos, cenário, sala, produção e divulgação. Continuamos porque sabemos que é importante que continuemos. Mas não tem sido fácil. Apesar de tudo, continuamos.
O ano de 2016 foi semelhante ao de 2015, que fora semelhante ao de 2014, que fora semelhante ao de 2013, e por aí fora. Se pensarmos bem e se bem olharmos para trás, vemos que a criação teatral sempre esteve no limite de. É o quotidiano das companhias e projectos de teatro, trabalhar no limite do possível, fazendo todos os impossíveis para aguentar a ausência de uma política definida para as artes, cortes de financiamento a meio de contratos assinados com o Estado, aumentos de IVA e redução de espectadores – os que ficaram sem trabalho ou sem dinheiro para gastar para lá de tecto, estômago e talvez saúde.
«Continuamos porque sabemos que é importante que continuemos. Mas não tem sido fácil. Apesar de tudo, continuamos.»
Ponto de situação. Em 2016 cerca de 13 milhões para apoio ao teatro, dança, música, artes plásticas, arquitectura, fotografia e design. O valor dos apoios quadrienais, que permitem que as estruturas se consolidem com um projecto de médio prazo, baixou para cerca de metade desde os cortes de 2011. Discute-se actualmente a reformulação dos concursos de apoio às artes, geridos e lançados pela DGArtes, sendo que até hoje, com legislação para ser apresentada em final de Fevereiro/início de Março, os agentes do sector não sabem o que querem a DGArtes e o Ministério da Cultura fazer com esta reformulação. E que tarde que a tutela começou a discutir com o sector esta reformulação...
Gostava de fazer um balanço de 2016 verdadeiramente sobre teatro, sobre os espectáculos, sobre o que gostei, o que mais me impressionou, os vários ou renovados projectos que apareceram ou se estabeleceram no panorama nacional. Mas depois falo com tantos e tantos trabalhadores, produtores, directores das mais variadas estruturas e percebo que ninguém tem feito os espectáculos que gostaria de fazer ou que tinha idealizado. O resultado final nunca é exactamente o que se planeia, é assim o normal das artes e continuará a ser, mas logo à partida saber que se tem de optar sempre pelo plano B, C ou D é em si uma limitação gigante à liberdade de criação e de consolidação artística. E é por isso que um balanço centrado nos espectáculos seria também ele um balanço B, C ou D, um balanço aquém do que seria desejável.
«Cada escolha tem a sua legitimidade e validade e deve ter a liberdade de existir. É essa liberdade de existirmos com estéticas, formas e objectivos diferentes que nos falta cada vez mais.»
E com o fechar do ano tivemos o anúncio: o Teatro da Cornucópia vai fechar. Foi a este ponto que chegámos, ao ponto de uma das mais consolidadas e antigas companhias de teatro chegar à conclusão de que não lhe são dadas as condições necessárias para cumprir o seu projecto. Mas a Cornucópia não é caso único. Nos últimos anos fecharam-se portas, literalmente, e um pouco por todo o país, e encostaram-se tantas outras, com tantas e tantas estruturas a também não terem condições para cumprir o seu projecto na íntegra. E, quando falamos de projecto, falamos de dois fazeres, o fazer da arte e o fazer da gestão. Ou seja, sempre e sempre, escolhas estéticas e escolhas de planeamento e de produção. Cada escolha tem os seus custos, as suas dificuldades próprias e os seus tempos de criação e de apresentação; cada escolha tem a sua legitimidade e validade e deve ter a liberdade de existir. É essa liberdade de existirmos com estéticas, formas e objectivos diferentes que nos falta cada vez mais.
Perante tais acontecimentos, e perante tantas e tantas opiniões públicas e publicadas que se focam só numa árvore e continuam sem olhar para a floresta toda, um grupo de pessoas juntou-se no final deste ano para escrever uma carta aberta e marcar uma posição forte sobre o desinvestimento gritante nas artes e portanto também no teatro. Foi escrita a carta aberta «1% salva mil cornucópias» e em poucos dias 325 personalidades subscreveram este apelo.
Em final de balanço, o que gostava que 2016 representasse para o teatro português e para as artes era este momento, em que tanta e tanta gente tão diferente se juntou para afirmar que «não há tempo a perder. 1% do Orçamento do Estado salva mil cornucópias. Lutemos por isto. Exijamos este compromisso».
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