A República Bolivariana da Venezuela iniciou neste domingo a campanha para a eleição, no próximo dia 30, dos 545 representantes à Assembleia Nacional Constituinte, que vão elaborar o texto de revisão da Constituição, aprofundando o processo bolivariano em curso.
Não admira que a direita neoliberal e revanchista, apoiada em larga escala pelos media nacionais e internacionais, se oponha violentamente à nova Assembleia Constituinte, cujos objectivos passam, entre outros, pelo aperfeiçoamento do sistema económico nacional, pela constitucionalização das missões criadas pela Revolução Bolivariana e das comunas e conselhos comunais, instrumentos essenciais à participação popular.
Desde a convocação, a 1 de Maio, pelo Presidente da República, sectores reaccionários venezuelanos tentam por todos os meios, incluindo a Imprensa nacional e internacional, boicotar e desacreditar tal processo, bem como a ingerência estrangeira, nomeadamente dos Estados Unidos e da Colômbia, pondo em causa a legitimidade da convocação por Nicolás Maduro, embora saibam muito bem que a Constituição Bolivariana lha reconhece1.
Trata-se de mais um pretexto para agravar e prolongar a nova fase de desestabilização violenta do país, através de protestos e cortes de ruas e estradas, que desembocam deliberadamente em actos violentos contra as forças da ordem e a destruição de bens e equipamentos públicos, incluindo armazéns e camiões de distribuição estatal de alimentos, não hesitando em recorrer ao assassinato. Ontem mesmo, um candidato à Constituinte foi alvejado mortalmente quando participava num comício.
Para agravar ainda mais o quadro de violência que há mais de 100 dias se instalou no país, fracturando irreversivelmente as relações sociais e lançando o caos, a oposição convocou, já para o próximo domingo, uma fantochada de «consulta soberana contra a fraude constituinte».
A iniciativa golpista é convocada pela coligação de oposição «Mesa de Unidade Nacional» (MUD), mas despudoradamente publicitada no sítio oficial da Assembleia Nacional, o órgão de soberania capturado pela propaganda da direita, questiona a legitimidade da Assembleia Constituinte e concretiza um plebiscito perguntando aos eleitores se Nicolás Maduro deve continuar no Governo.
O plebiscito, de tão má memória nomeadamente na América Latina, onde ditadores como Marcos Pérez Jiménez, na própria Venezuela, Augusto Pinochet (Chile) e Alfredo Stroessner Matiauda (Paraguai) se fizeram legitimar por esta via, não está previsto na Constituição e foi expressamente afastado pelos deputados constituintes de 1999.
Os media locais e internacionais sabem-no, mas trabalham afincadamente para iludir as opiniões públicas e conferir à trapaça a aparência de legalidade e de credibilidade.
A provocação e o cinismo da direita vão ao ponto de reconhecer que tal «referendo» não tem qualquer validade porque não é organizado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), mas insiste em levá-lo por diante com a instalação de urnas nas igrejas, cafés e outros «pontos soberanos» da sua responsabilidade.
A grande Imprensa faz de conta que não percebe a patranha, nem que os resultados da consulta estão ditados à nascença deste simulacro de democracia. Na realidade, aos olhos dos meios hegemónicos, tudo o que vem da MUD parece virtuoso, desde que sirva para derrubar a «ditadura» e «o regime de Maduro», como gostam tanto de escrever e de dizer.
«Na realidade, aos olhos dos meios hegemónicos, tudo o que vem da MUD parece virtuoso, desde que sirva para derrubar a "ditadura" e "o regime de Maduro", como gostam tanto de escrever e de dizer.»
Tal como os sectores mais reacionários sonham desde que a MUD ganhou as eleições legislativas para a Assembleia Nacional, o objectivo é fazer cair Nicolás Maduro, ainda que este esteja com toda a legitimidade a cumprir o seu mandato e que a circunstância de a correlação de forças se ter alterado no Parlamento não implique a substituição do Presidente.
Desde logo porque a Venezuela, tal como a generalidade dos países da região, segue um modelo fortemente presidencialista e nem o Presidente nem o Governo – aliás chefiado por ele – dependem do Parlamento.
De resto, no afã de contribuir para o derrubamento de Maduro e até na embriaguez da violência e do sangue com que nutrem em abundância de adjectivos os seus noticiários, os media tão-pouco se questionam sobre a aparente «normalidade» de muitos dos acontecimentos que era suposto conhecerem bem e explicarem aos leitores, telespectadores e ouvintes, apesar das aberrações inaceitáveis e perigosas em qualquer país.
Por exemplo, nem em Portugal nem qualquer outro país da Europa é aceitável que o procurador-geral da República participe ou instigue pronunciamentos contra actos do Governo e apele ao povo para que «lute nas ruas». Mas a oposição, governos estrangeiros e os media incensam Luisa Ortega Díaz como heroína.
Nem em Portugal, nem em Espanha ou qualquer país europeu é aceitável a infindável sucessão de «protestos» violentos, que só nesta fase de contestação nas ruas ostensivamente mobilizada pela MUD, desde 1 de Abril, já causaram mais de 90 mortos e mais de 1500 feridos (entre opositores e apoiantes); que apoiantes do Governo sejam queimados vivos; e que encapuzados ataquem as forças de segurança com coquetéis Molotov e com armas letais improvisadas.
Tão lestos a fazer as contas dos «prejuízos» de um dia de greve geral em qualquer outro país, os media não mostram quaisquer esforços para avaliar os danos extensos e profundos da destruição causada pela violência propagada pela direita.
Os únicos focos com importância noticiosa são a «violenta repressão pelo regime» e as recorrentes referências à crise económica e política, sem cuidarem de procurar as reais causas, ou de investigarem quem são, como vivem, de que vivem (quem lhes paga a sopa…) e como se armam os insurrectos.
De permeio, a manipulação e a mentira grosseira pelos media tornaram-se armas poderosíssimas, tolerando e tratando como coisa democraticamente banal os actos da maior gravidade que em nenhuma democracia seria tolerado.
Um exemplo flagrante é o ataque desencadeado, em 22 de Junho, por grupos armados e violentos contra uma base militar em Caracas, depois de tomarem uma auto-estrada, que pretendiam igualmente assaltar a instalação militar, chegando a destruir dezenas de metros da cerca e arremetendo contra os soldados que defendiam a unidade, como demonstram inúmeras imagens captadas e divulgadas pelos próprios. Da refrega muito violenta, resultou um jovem morto e dezenas de feridos incluindo entre os militares.
No entanto, o poderoso e influente El País não hesitou em escrever que o jovem recebeu os tiros «numa marcha» da oposição. Mesmo a agência portuguesa Lusa, replicada por vários meios de informação, foi na onda, noticiando que o estudante foi «assassinado a tiro quando funcionários da Guarda Nacional Bolivariana reprimiram uma manifestação opositora ao Governo em Caracas».
A Imprensa internacional bem bate na tecla da falta de liberdade de expressão dos jornalistas e dos meios de informação na Venezuela, cuja «ditadura», dizem, os reprime. Mas nem as forças de oposição nem jornais como El Nacional e El Universal ou a estação Venevisión, do poderoso grupo Cisneros, estão impedidos de uma permanente campanha de propaganda com informação unilateral e a propagação das mensagens, ameaças e mobilizações da direita.
«Queremos anunciar ao mundo inteiro que usaremos todos os mecanismos para mudar de Governo»
júlio borges, presidente do parlamento da Venezuela
«Queremos anunciar ao mundo inteiro que usaremos todos os mecanismos para mudar de Governo», proclamou, mais uma vez e sem que ninguém o impedisse, o presidente do parlamento da Venezuela, Júlio Borges, ouvido em todo o mundo através das agências internacionais, que reproduzem e ampliam sem quaisquer constrangimentos a retórica dos opositores.
Num país cujo Governo é acusado de censura e repressão, órgãos de informação internacionais têm acesso fácil a uma caderneta bem recheada de dirigentes de ONG, de que o Forum Penal Venezuela é um exemplo bem frequente, ou académicos apresentados como independentes, mas que não têm muito por esconder as suas reais agendas.
Um exemplo muito interessante é o de um sociólogo, Trino Márquez Cegarra de seu nome, citado na versão espanhola do sítio electrónico da companhia de comunicação alemã Deutsche Welle, para um perfil de Luisa Ortega Díaz, no qual começa por ser apresentado como «professor da universidade Central da Venezuela» (credibilidade académica) e, adiante, como «director académico do CEDICE».
A designação por extenso do misterioso acrónimo não engana – Centro de Divulgação do Conhecimento Económico para a Liberdade, na verdade uma central de propagação das ideias neoliberais e da defesa do sacrossanto mercado livre e assumidamente anti-bolivariana, na qual não faltam citações do celebérrimo Milton Friedman nem a bem reveladora companhia de «aliados e redes» como a norte-americana The Heritage Foundation, entre várias outras cuja agenda e tarefas contra as forças progressistas são bem claras.
É neste assim chamado think tank que se congeminam ideias para quando Maduro sair do poder, como a privatização de todas as empresas do Estado e a dolarização da economia Venezuela, segundo propõe um tal Oscar Garcia Mendoza, nada menos que o presidente do Banco Venezuelano de Crédito, exactamente o mesmo que pede uma intervenção estrangeira para «começar a pôr ordem na Venezuela».
Não se pode negar que a situação na Venezuela é cada vez mais complexa e que nem sempre é fácil obter, pelo menos em tempo útil, informações de várias e diversificadas fontes que permitam aos jornalistas que cobrem à distância fazer a narração rigorosa dos acontecimentos. Mas um esforço de procura da verdade e de exercício honesto da missão de informar impõe-se sempre, apesar das simpatias e dos desejos pessoais, sob pena de se cumpliciarem com o golpismo.
- 1. Dispõe o Artigo 348.º da Constituição da República Bolivariana da Venezuela que a convocatória da Assembleia Nacional Constituinte pode ser do Presidente da República, da Assembleia Nacional mediante decisão de dois terços dos seus membros, dos conselhos municipais em assembleia mediante o voto de dois terços dos mesmos, ou 15% dos eleitores inscritos no Registo Civil e Eleitoral.
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