A Autoeuropa e o fervor anti-sindical

A última semana foi marcada pela greve dos trabalhadores da Autoeuropa, que os órgãos de comunicação social não se cansaram de rotular de «histórica», mas não necessariamente pelas melhores razões segundo a leitura prevalecente nos próprios media.

Fábrica da Volkswagen Autoeuropa, em Palmela
CréditosMário Cruz / Agência Lusa

Foi uma greve tão histórica que pelo menos dois jornais1 guindaram a «figura da semana», não o líder sindical ou a organização sindical que conduziu a importante jornada de luta, mas, de forma exaltante, nada menos que a pessoa – o antigo coordenador da Comissão de Trabalhadores – que mais se destacou no ataque ostensivo e ofensivo aos sindicatos e aos próprios trabalhadores que massivamente votaram e cumpriram a greve.

Com o fervor anti-sindical dos editocratas e para gáudio dos patrões2, que vêem reflorescer o divisionismo entre os trabalhadores, os media, que abandonaram há quase três décadas a «rotina» informativa sobre trabalho e sindicalismo, mostraram sem pudor o lado obscuro da captura do campo jornalístico pelos interesses do capital.

Mário Soares teve a ambição de «partir a espinha à Intersindical», mas não o conseguiu, nem com a central sindical fabricada com conluio com Sá Carneiro. Revisitando o que se leu, ouviu e viu nos meios de informação em relação à luta dos trabalhadores da Autoeuropa – na senda, de resto, do comportamento em relação a outras lutas –, apetece perguntar se os media se assumem os herdeiros dessa missão.

O que é patente é que, sem a mínima prudência no resguardo de imparcialidade que deveriam seguir, os órgãos de informação que se reclamam independentes tomaram partido por um dos lados, numa ressonância pública e impúdica das campainhas de alarme dos interesses patronais que retiniram com fragor nas redacções.

Uma análise, mesmo não exaustiva, ao conteúdo da «cobertura» jornalística da jornada, tanto na sua preparação desde o início de Agosto como no próprio dia e nos dias seguintes, evidencia oito linhas-força, ou ideias-chave, da narrativa patronal e do divisionismo, à qual os meios de informação deram enfático destaque.

Em muitos casos, fizeram-no com abundância e sobrevalorização de pormenores, designadamente as «contrapartidas» da empresa, que os mal-agradecidos trabalhadores parecem recusarem, como se tivessem ensandecido, para escândalo de editorialistas, patrões e dirigentes do CDS, do PSD e… de outros partidos que se dizem de esquerda.

Ei-las:

Primeira – Portugal necessita absolutamente da Autoeuropa e do reforço da sua capacidade produtiva, pois a empresa, com um volume de negócios anual de 1,5 milhões de euros3, representa 4% das nossas exportações4 e 1% do PIB5.

Segunda – Essa necessidade justifica e legitima alterações gravosas aos horários de trabalho, com a imposição de trabalho ao sábado, que passa a ser dia «normal», e a diminuição da retribuição do trabalho suplementar, que na realidade passa a ser pago com bonificações que, evidentemente, os trabalhadores deveriam aceitar6.

Terceira – A Comissão de Trabalhadores estabeleceu um pré-acordo com a Administração da Empresa, mas os trabalhadores, acometidos por uma súbita irresponsabilidade colectiva, decidiram causar danos muito sérios à «paz social» que reinou, praticamente incólume, durante mais de duas décadas na empresa, rejeitando o texto com 74,6% dos resultados de uma consulta directa e por voto secreto.

Quarta – Isso aconteceu porque os trabalhadores foram instrumentalizados «por quatro ou cinco populistas»7 do sindicato8 «afecto à CGTP» e desautorizaram a Comissão de Trabalhadores, que se demitiu em consequência dos resultados da consulta9.

Quinta – O sindicato, que pelos vistos não metia prego nem estopa na Autoeuropa, está a «preencher o vazio deixado pela demissão» da CT, ameaçando a obra de paz social e obtendo um «protagonismo» ilegítimo, pois a Administração só negoceia com a dita comissão10.

Sexta – O sindicato carece de legitimidade não só para conduzir a luta, mas também para representar os trabalhadores, apesar a confirmação da rejeição do pré-acordo entre a CT e a administração e da greve do dia 30, bem como o mandato para que represente os trabalhadores em reunião urgente com a Administração ter sido sufragada em plenário com mais de três mil trabalhadores, com apenas sete abstenções e um voto contra11.

Sétima – Se a administração da empresa «não conseguir convencer os trabalhadores»12, o mais certo, numa linha de pura chantagem, é deslocalizar a produção do novo modelo da Wolkswagen para outro país, como acontecera, alega-se, com a fábrica da Opel na Azambuja.

Oitava – Tudo o que doravante acontecer de mau será culpa dos sindicatos13.

Em contrapartida, aspectos essenciais foram claramente subvalorizados, desvalorizados e até escamoteados, designadamente o direito ao descanso, à saúde e às relações sociais e familiares, o valor efectivamente baixo da retribuição do trabalho suplementar, o risco de retrocesso de direitos, incluindo, de futuro, o de descanso ao domingo, bem como a obrigação da empresa de respeitar os seus compromissos com o Estado Português14, que a tem apoiado.

Mas isso, face aos sacrossantos interesses do capital, são minudências informativas pouco relevantes…

  • 1. Sol (suplemento B.I.) e Público, edições de 2 de Setembro
  • 2. Veja-se, entre outros materiais, a entrevista – mais uma! – do presidente da CIP ao Expresso (edição de 22 de Setembro): «O que se passa na Autoeuropa é uma luta por poder sindical, adulterando um activo enorme que é a estabilidade social da empresa».
  • 3. Expresso, 2 de Setembro
  • 4. Público, 29 de Agosto e 2 de Setembro
  • 5. Diário de Notícias, 29 de Setembro
  • 6. Pormenores sobre esta contrapartida encontram-se na generalidade dos meios de informação, incluindo em editoriais e artigos de opinião, valorizando a generosidade da empresa. Só falta sugerirem que, tendo em conta a importância estratégica da Autoeuropa, não viria mal ao mundo se os trabalhadores vendessem também o domingo…
  • 7. António Chora, entrevista, aliás carregada de insultos, incluindo à inteligência e à autonomia dos trabalhadores, ao Jornal de Negócios, 30 de Agosto
  • 8. Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Transformadoras, Energia e Actividades do Ambiente do Sul (SITE Sul)
  • 9. É curioso que nenhum órgão de informação, que se tenha presente, tenha perguntado à Comissão de Trabalhadores por que razões não acatou a decisão democrática, aliás tão esmagadora, dos trabalhadores
  • 10. Veja-se, entre outras muitas outras peças, que incensam o «papel único» da CT, numa espécie de sindicalismo de substituição, isto é, arredando para fora da empresa os sindicatos e pondo-a a negociar matérias da competência legal dos sindicatos, a já referida entrevista de Chora ao «Negócios» e a curiosa chamada a toda a largura da primeira página do i de 30 de Agosto: «Trabalhadores das empresas fornecedoras da Autoeuropa estão contra a greve». Dentro, o jornal destaca que empresas fornecedoras e a comissão coordenadora das comissões de trabalhadores do Parque Industrial de Palmela insurgem-se contra «o protagonismo dos sindicatos». Esquece-se apenas de referir que a posição da referida «coordenadora» data de 27 dias antes e que já não era propriamente novidade…
  • 11. Público, 29 de Agosto
  • 12.  Diário de Notícias, 29 de Agosto
  • 13. Veja-se, entre outras peças, escamoteando que a deslocalização da fábrica da Opel estava há muito decidida, a entrevista de Chora já referida, o parágrafo final do editorial do Diário de Notícias de 30 de Agosto: «Em 22 anos, só duas greves gerais beliscaram a paz social na Autoeuropa. Essa tradição parece ter os dias contados e, perante a manobra do poder dos sindicatos nas últimas semanas, só resta esperar que os mais de 3300 trabalhadores da Autoeuropa não acabem estes dias carregados de direitos e sem fábrica para trabalhar».
  • 14. Como alerta, em rara referência, o dirigente do SITE Sul, Público, 29 de Agosto

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