Um dos monumentos mais impressionantes visitáveis na Península Ibérica é a basílica-cripta de Santa Cruz do Vale dos Caídos, em San Lorenzo del Escorial, província de Madrid, dominando, com ostensiva grandiosidade a Serra de Guadarrama.
Além da expressão da soberba faraónica do caudilho fascista espanhol – Francisco Franco – e do expoente de uma estética do poder violentamente antidemocrático e opressor, é chocante o seu significado.
Embora viesse a ser local de inumação – entre os 36 mil soldados que ali foram enterrados – de alguns combatentes republicanos mortos na Guerra Civil de Espanha (1936-39), cujas famílias declararam por eles o seu «arrependimento», mas também como espécie de sinal de «conciliação nacional» imposto por países estrangeiros depois da II Grande Guerra (1939-45), o Vale dos Caídos foi concebido por Franco para sua própria glorificação como vencedor e em honra dos combatentes falangistas.
Na sua concepção e arquitectura e na estética das obras de arte que alberga, assim como no significado que encerra, o Vale dos Caídos – aliás construído com base na mão-de-obra escrava de milhares de combatentes republicanos, comunistas e outros democratas vencidos e encarcerados – representa uma ofensa à memória de todos quantos lutaram e derramaram o seu sangue por uma Espanha livre, justa, fraterna e em paz e a todos quantos continuam ainda a bater-se na defesa dos valores da liberdade, da igualdade, do progresso e convivência pacífica entre os povos.
Por muito que tentem reduzi-lo a um local de interesse meramente turístico, o Vale dos Caídos adquire especial importância nesta altura.
Por um lado, porque o tema do seu significado intrínseco regressou recentemente à ordem do dia em Espanha, com a decisão parlamentar de exumar Francisco Franco e José Antonio Primo de Rivera, fundador do partido Falange Espanhola e do fascismo espanhol, em torno do qual se juntaram as forças que derrubaram pela força e com o sinistro apoio nazi a II República Espanhola.
Por outro, porque convoca a necessidade de uma reflexão sobre os intelectuais e a paz, bem a propósito de um interessante debate promovido no passado dia 8 pelo Conselho Português para a Paz e a Cooperação (CPPC) e a Organização da Bienal Internacional de Arte Gaia 20171.
Uma primeira abordagem poderia tratar dos limites éticos e de consciência moral que os artistas certamente enfrentam, quando se questionam sobre ao serviço de quem e de que causas e objectivos empregam as suas capacidades e o seu engenho criador, ou mesmo que ditames subjugam a sua liberdade.
Uma segunda poderia questionar de um modo muito particular os jornalistas e o jornalismo, designadamente sobre os inevitáveis embaraços deontológicos – entendida a deontologia, precisamente, como a ética dos deveres – quando o seu ofício de informar é, ou pode ser, traído pela instrumentalização e pela manipulação da palavra; ou, sobretudo, quando é capturado por interesses e agendas de interesses obscuros.
Uns e outros só podem estar ao serviço do bem comum, do progresso, do bem-estar espiritual e material, da felicidade do homem e da Humanidade, sendo de esperar deles um compromisso indeclinável com a paz e o respeito pela autodeterminação dos povos e o direito à plena soberania das nações.
Tantos anos volvidos sobre o fim da II Grande Guerra (aconteceu há 72 anos) e o longo e sinistro rasto de destruição e morte que deixou no Mundo, é hoje impossível ignorar os sinais dramáticos de uma perigosa escalada na retórica belicista, nas suas diversas expressões, especialmente a partir do Imperialismo e dos Estados Unidos da América, a par de uma preocupante corrida armamentista, não só em termos de armas convencionais, mas sobretudo de arsenal nuclear, com o aumento extraordinário da capacidade de propulsão dos engenhos de morte massiva.
Nove países – com os Estados Unidos na dianteira – possuem, segundo o Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo, cerca de 15 mil ogivas nucleares, muitas vezes mais potentes do que as bombas de Hiroxima (6 de Agosto de 1945; 145 mil mortos) ou de Nagazaki (três dias depois; 78 mil mortos).
Muitas delas estão carregadas, ou prontas a embarcar em mísseis balísticos intercontinentais capazes de atingir distâncias até cinco mil, oito mil ou mesmo mais de dez mil quilómetros.
Cinco outros países não são os donos delas, mas têm estacionadas nos seus territórios armas nucleares ao abrigo dos programas de «cooperação» militar e estratégicos da NATO – incluindo a Turquia, nas proximidades da Síria, numa região do globo especialmente sensível.
Outros 23 países – incluindo Portugal – mantêm alianças «nucleares» com os Estados Unidos e/ou a NATO e podem, a qualquer momento, ter em trânsito armas nucleares, seja no contexto de navegação de «rotina» nos mares e ar nacionais, seja no quadro de manobras ou mesmo de eventual ofensiva em regiões já em tensão aberta, como é o caso da Península da Coreia, ou em tensão crescente, no Leste da Europa, onde dizem que cresce a «ameaça russa».
«De facto, os Estados Unidos são o maior exportador de armas, com nada menos de um terço do bolo deste comércio em todo o mundo, com quase dez mil milhões de dólares facturados no ano passado, só à sua conta.»
Essa retórica belicista justifica-se claramente pelo afã do domínio imperialista, mas também pela abundância de lucros crescentes a que aspira o complexo militar industrial dos países grandes produtores e exportadores de armas, que explicam as razões pelas quais os Estados Unidos mantêm alta a «parada» na Península Coreana, em tão perigosa tensão.
Ao continuar a rejeitar, ostensiva e altivamente, a proposta sino-russa de um roteiro de paz e diálogo assente na suspensão dos testes balísticos e nucleares da Coreia do Norte, por um lado, e das manobras militares dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, por outro, com o objectivo de desnuclearizar a região e baixar a temperatura da confrontação, Washington está bem ciente dos proventos que vai facturando.
De facto, os Estados Unidos são o maior exportador de armas, com nada menos de um terço do bolo deste comércio em todo o mundo, com quase dez mil milhões de dólares facturados no ano passado, só à sua conta.
Não admira que países como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, a Coreia do Sul e a Turquia estejam entre os países que mais armas importam, nem que o presidente Donald Trump esteja a pressionar cada vez mais os seus seguidores na NATO a aumentar as respectivas despesas militares em pelo menos 2% do Produto Interno Bruto nacional. Note-se que meia centena de países gasta em defesa 2% ou mais do seu PIB e alguns bem acima.
Apesar da suas obrigações, designadamente no âmbito do Tratado de Não Proliferação de armas nucleares (1968) e do Tratado Estratégico de Redução de Armas com a Rússia (2010), os EUA, estão a «reduzir» o seu arsenal em número de ogivas, mas enveredaram por um perigoso programa de modernização, ainda no mandato de Barack Obama, de 400 mil milhões de dólares entre 2017 e 2026, que não ficará por aqui.
De facto, com a sua fanfarronice bem conhecida, o sucessor de Obama na Casa Branca gabou-se, há poucas semanas, de que tinha «dado ordens» para tornar o programa nuclear militar norte-americano ainda «mais moderno e mais forte», e não se cansa de ameaçar usar todos os meios – contra a Coreia, mas também noutras latitudes.
Muitas pessoas estranham o que parece ser uma estranha obsessão dos jornalistas por números, designadamente quanto aos valores envolvidos nestas gigantescas operações de intimidação e especialmente quanto ao aprovisionamento, produção e comércio «estratégico» de armas.
Alguns textos mais ou menos «especializados» em temas de defesa, em geral, e em indústria de defesa, em particular, parece revelarem uma estranha frieza e uma objectividade desumanizada, rendidos à linguagem neutra – dizem… – da Economia e indiferentes ao sofrimento causado ou potencial.
É possível que assim seja nalguns casos, mas também devemos reconhecer que são frequentes as abordagens jornalísticas sustentadas em números absolutos ou dados estatísticos que apontam o dedo ao problema da proliferação de armas, à corrida armamentista e à resistência suicida, à abolição das armas de destruição maciça e especialmente das armas nucleares.
De facto, não devemos ignorar – e muito menos excluir – o valor intrínseco dessa informação se podemos usá-la ao serviço da tomada de consciência e da promoção de olhares mais informados sobre o problema e transformar os dados sobre gastos com armamento em unidades de medida de inviabilização da felicidade humana.
Por exemplo: quantas vacinas para muitas doenças ainda letais, quantos livros, quantas pinturas ou esculturas, quantas escolas, quantas bibliotecas e quantos teatros ou museus, quantos hospitais vale uma bomba?
É seguro, citando o ex-vice-secretário-geral das Nações Unidas Jan Eliasson, que «não há mãos certas para armas erradas», mas talvez seja bem mais provável que uma notícia «errada» possa ser revertida e servir causas certas.
- 1. O presente artigo retoma, adaptando-a, parte da comunicação inicial do autor no debate, sob o tema «Artistas pela Paz», bem como notas resultantes da rica troca de impressões com o público
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