Uma das omissões que mais indignam nos media portugueses dominantes (e falo apenas destes, lá fora a orientação é semelhante) prende-se com o quase silêncio quer em relação à repressão israelita da heróica resistência palestina quer às acções e medidas legislativas que, no momento actual, representam a reconhecível ascensão de uma lógica fascista no estado de Israel liderado por Netanyahu, com o respaldo da administração norte-americana e dos seus aliados ocidentais e árabes.
Se as campanhas de intoxicação «informativa» sobre alegados ataques químicos na guerra na Síria ou sobre alegados atentados a agentes duplos russos no Reino Unido – pretextos para o belicismo imperialista – fazem de imediato primeiras páginas nos jornais, a Grande Marcha do Retorno em curso e o massacre de palestinos em Gaza – coisas bem reais e não forjadas – nunca são notícia de abertura.
E contudo, no passado dia 2 de Maio, era este o balanço trágico: 49 palestinos mortos e mais de 6000 feridos desde o início da Grande Marcha do Retorno na Faixa de Gaza cercada, em 30 de Março.
Num roteiro que se pretende cultural, não resisto a dar a ler, a tal propósito, um poema do palestino Mahmud Darwich (1942-2008). E, já agora, a deixar um convite: visite este belo sítio sobre poesia árabe, onde ele se encontra. A composição data de 2004 e foi livremente traduzida de uma versão espanhola de María Luísa Prieto:
Cadáveres anónimos
Cadáveres anónimos
Nenhum esquecimento os une,
Nenhuma memória os separa...
Esquecidos na erva invernal
Na via pública,
Entre duas longas histórias de bravura
E sofrimento.
“Eu sou a vítima!” “Não, eu sou
a única vítima!” Eles não responderam:
“Uma vítima não mata a outra.
E nesta história há um assassino
E uma vítima.” Eles eram crianças,
Eles apanhavam a neve dos ciprestes de Cristo
E brincavam com os anjos porque tinham
A mesma idade... eles fugiam da escola
Para escapar da matemática
E da velha poesia heróica. Nas barreiras,
Brincavam com os soldados
Ao inocente jogo da morte.
Não lhes diziam: deixai as armas
E abri as rotas para que a borboleta encontre
A sua mãe perto da manhã,
Para que voemos com a borboleta
Fora dos sonhos, porque os sonhos são estreitos
Para as nossas portas. Eles eram crianças
Brincavam e inventavam uma história para a rosa vermelha
Sob a neve, por trás de duas longas histórias
De bravura e sofrimento.
A seguir escapavam com os pequenos anjos
Para um céu límpido.
In La ta’tadhir’ammâ fa’alta («Não peça perdão»; 2004)
Ilan Pappe na Culturgest, em Lisboa, e actos de solidariedade em Lisboa e no Porto
Por tudo isto, a primeira proposta deste roteiro incentiva o/a leitor/a a assistir, no dia 10 de Maio, pelas 21 horas, a uma sessão pública na Culturgest, em Lisboa, com o historiador Ilan Pappe, que estará na capital para participar na conferência internacional Beyond Planetary Apartheid promovida pelo Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. A sessão, subordinada ao tema «Na era de Trump: Perigos e oportunidades para a Palestina» será moderada pelo jornalista José Goulão. O Comité de Solidariedade com a Palestina e o Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente organizam.
Já agora, anote: tanto Lisboa como o Porto vão acolher actos de solidariedade com a Palestina, condenando a política israelita de colonização, ocupação e repressão, e o reconhecimento pelos EUA de Jerusalém como capital de Israel. A iniciativa é promovida pelo Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC), o Movimento Democrático de Mulheres (MDM), o Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente (MPPM) e a CGTP-IN. A ela estão a aderir muitas outras organizações, segundo afirma o MPPM em nota publicada na sua página de Facebook. Em Lisboa (dia 14, às 18h) e no Porto (dia 15, 18h), na Praça da Palestina, ali na esquina de Sá da Bandeira com Fernandes Tomás, são os mesmos os objectivos dos promotores.
É que, a 15 de Maio, se assinala o 70.º aniversário da Nakba – a «catástrofe», como a designam os palestinos (associada ao processo de criação do Estado de Israel). Pretende-se assim, segundo os promotores: «condenar a política de colonização, limpeza étnica, ocupação e repressão» praticada por Israel contra o povo palestino há 70 anos; exigir a paz no Médio Oriente; denunciar o reconhecimento, pelos Estados Unidos, de Jerusalém como capital de Israel, bem como a transferência da sua embaixada para essa cidade. Do Governo português se reclama também que «defenda o direito internacional e as resoluções da ONU respeitantes à Palestina» e que «reconheça formalmente o Estado da Palestina», tendo a sua capital em Jerusalém Oriental.
Ainda a Palestina (desenhada), mas também Harold Pinter (em estreia), cinema e debates em Coimbra
Agora, registe outras iniciativas: a 12 de Maio, a ilustradora e artista plástica Ana Biscaia irá realizar uma oficina no Teatro da Cerca de S. Bernardo (TCSB), em Coimbra. Intitula-se O meu sketchbook é a Palestina (aprendo sobre a Palestina desenhando sobre ela) e enquadra-se nos Sábados para a Infância promovidos pela Escola da Noite.
Ainda sem saber se poderá contar com financiamento do Estado para desenvolver o seu trabalho em 2018, a Escola da Noite estreia a 17 de Maio, no TCSB, a sua 66.ª produção: Cinzas... , de Harold Pinter, com encenação de Rogério de Carvalho. Cito a informação veiculada: «A programação mensal do Teatro abre com a extensão do festival de cinema Desobedoc, inclui mais quatro Sábados para a Infância e encerra com um debate organizado pelo Le Monde Diplomatique – edição portuguesa: «A Cultura é um incómodo?».
Música pela paz, em Lisboa
Em tempo de ameaças de guerra – como é desgraçadamente o que corre –, mas também de uma boa notícia para a causa da paz (o recente encontro dos dois líderes coreanos), vale a pena ir à Gulbenkian, em Lisboa, a 11 de Maio, desfrutar de um concerto que se afirma como um belo gesto musical em prol da paz. A Orquestra Gulbenkian será dirigida por Hannu Lintu e interpretará, de Krzysztof Penderecki, Treno à memória das vítimas de Hiroxima; de Richard Strauss, Metamorfoses; e, de Dmitri Chostakovitch, a Sinfonia n.º 7, em Dó maior, op. 60, Leninegrado.
Andanças da Andante: Lisboa, Montemor-o-Novo, Serpa
Cada vez mais às voltas, nos últimos tempos, com Fernando Pessoa, mas não só, a Andante, a pequena mas activíssima, inventiva e cada vez mais conhecida associação cultural e artística, sediada em Alcochete, que tanto e tão bem se dedica à promoção da leitura, do teatro e da literatura, nomeadamente da poesia, junto do público infanto-juvenil (e por isso regular e devidamente apoiada pelos Ministérios da Educação e da Cultura – aahh, estou a fazer ironia, é claro), a Andante, dizia, tem diversas andanças previstas na sua agenda: 6 Maio, 10h30 e 11h30, Festival Cucu!, Casa do Coreto, Carnide, Lisboa; 19 Maio, 11h00, actuação na Festa dos Contos, Cine-Teatro Curvo Semedo, Montemor-o-Novo; 20 Maio, 10h30 e 16h00, participação na FliS – Festa do Livro de Serpa, Biblioteca Municipal Abade Correia da Serra, Serpa. Não desperdice a oportunidade de ver e ouvir a Andante.
Os últimos dias do Foliazinho, em Lousada
Atenção ainda ao Foliazinho, Festival de Teatro para a Infância e a Juventude organizado pelo Jangada Teatro e pela Câmara Municipal de Lousada. É já a 11.ª edição, que começou, nesta vila do distrito do Porto, a 3 de Maio. Dia 5 os Clã sobem ao palco para apresentar Supernovos e, no domingo, dia 6, o Jangada Teatro leva à cena a sua adaptação de O Principezinho de Saint-Exupéry. Meritória iniciativa numa vila com bons equipamentos culturais e uma programação sempre digna de atenção.
Farruquito e a recta final do Dias da Dança
Da próxima, e muito variada, programação do Coliseu do Porto eu escolheria talvez a actuação de Farruquito, segundo a informação disponível, «um dos melhores bailaores de flamenco do mundo», honrando as suas origens andaluzas com o espectáculo «Pinacendá», «que significa Andaluzia no dialeto cigano». É com esta actuação, a 12 de Maio, que encerra o Festival DDD – Dias da Dança. Já agora, confira a programação deste importante festival, já na sua recta final, a decorrer no Porto, em Matosinhos e em Gaia até 13 de Maio.
Blues no Porto
Fique sabendo ainda que o Porto tem um festival dedicado aos blues. A segunda edição é este ano, a 18 e 19 de Maio, na Concha Acústica dos Jardins do Palácio de Cristal. Pat Cohen, North South Blues Conection (projeto criado por António Casado, João André, Hugo Danin e Tatanka), Chino & The Big Bet, Budda Power Blues e Maria João são alguns dos nomes que compõem o cartaz do Porto Blues Fest 2018.
O novo filme de Susana Sousa Dias: Luz Obscura
«Que rede familiar se esconde por detrás de um único preso político? Como dar corpo a quem desapareceu sem nunca ter tido existência histórica? Partindo de fotografias da polícia política portuguesa (1926-1974), Luz Obscura procura revelar como um sistema autoritário opera na intimidade familiar, fazendo emergir, simultaneamente, zonas de recalcamento actuantes no presente». É esta a sinopse disponível do novo filme de Susana Sousa Dias, a não perder. Centrado na história da família Pato (falo designadamente de Octávio Pato), o documentário, a que não é possível ficar indiferente, pela sua qualidade, estreia a 10 de Maio. No Porto, por exemplo, será exibido no Trindade.
Ainda o Neo-Realismo em Vila Franca – cinema e exposição
Prossegue o Ciclo de Cinema «Infância e Realismos», integrado na Exposição «Miúdos, a vida às mãos cheias – A infância do Neo-Realismo português». O Museu do Neo-Realismo apresenta assim ao público, no próximo dia 9 de Maio, duas sessões do documentário Com Quase Nada (Brincar em Cabo Verde) de Margarida Cardoso e Carlos Barroco (10h30 e 14h30), seguidas de debate. Neste filme, segundo a informação disponibilizada, «dá-se a ver um tempo que, embora ainda presente em Cabo Verde, já faz parte da memória afetiva: os brinquedos tradicionais, numa visão quase poética de uma infância cada vez mais distante».
Quanto à mostra «Miúdos, a vida às mãos cheias» – verdadeiramente a não perder –, continua patente no Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira, na sequência do animado e oportuno colóquio, recentemente realizado, sobre infância, Neo-Realismo e escrita para crianças e jovens. Comissariada por Carina Infante do Carmo (professora da Universidade do Algarve) e Violante Magalhães (professora da Escola Superior de Educação João de Deus), a exposição, exemplarmente estruturada, esclarecedora, marcada pelo rigor científico, abre com um foco no retrato de infância de vários nomes incontornáveis do Neo-Realismo literário português (Redol, Soeiro, Dionísio, Sacramento, Carlos de Oliveira, Namorado, Papiniano Carlos e outros) e propõe depois diversos núcleos que ora evidenciam a política educativa do regime fascista em relação à infância, e a reacção a ela, ora dão conta dos esforços de renovação, nos planos da educação estética e cívica, promovidos pelos artistas ligados ao movimento neo-realista (tanto na literatura como na música – por exemplo com Lopes-Graça e Francine Benoît). É possível ainda observar marcantes exemplos das variadas expressões que a temática da infância conheceu nas artes plásticas (Cunhal, Augusto Gomes, Pomar, Dias Coelho, Pavia, Maria Keil…), na escrita literária (Redol, Soeiro, Manuel da Fonseca, Sidónio Muralha, Ilse Losa, José Gomes Ferreira, Matilde Rosa Araújo e tantos outros), na fotografia, etc.
Já agora, aponte ainda: decorrerá a 12 de Maio, pelas 10h00, no Museu do Neo-Realismo, o colóquio «Sociedade e Educação nos Tempos do Neo-Realismo», com vários palestrantes.
Em Aveiro, Maria Lamas – uma exposição e uma obra relevante a ser apresentada
Muitos dos neo-realistas conheceram-na bem e admiraram-na, mas muita outra gente também (em especial as mulheres portuguesas). Falo dessa admirável personalidade que assinava Maria Lamas (1893-1983), autora de uma obra cívica, jornalística e literária que deixou marca indelével na história do feminismo português, melhor dizendo, na história da luta organizada da mulher portuguesa pelo reconhecimento dos seus direitos e pela igualdade de tratamento relativamente ao homem, em planos diversos, a começar pelo do trabalho.
A autora da poesia de Humildes (1923) ou do romance Para além do Amor (1935), e de obras inesquecíveis como As Mulheres do Meu País (1948), A Mulher no Mundo (1952) e ainda O Mundo dos Deuses e dos Heróis, Mitologia Geral (1961); a pioneira da nossa literatura para crianças e jovens que, entre muitos títulos, editou A Montanha Maravilhosa (1933), A Estrela do Norte (1934), Brincos de Cereja (1935) ou O Vale dos Encantos (1942), e animou e dirigiu periódicos para a infância e para o público adulto; a resistente antifascista e intrépida lutadora pela causa da paz; a mulher perseguida pelo regime fascista a ponto de ser forçada ao exílio; a democrata que acabaria como militante comunista, é essa mulher, Maria Lamas, cujo pensamento interessa continuar a discutir e actualizar.
Será este o propósito da sessão a ter lugar no próximo sábado, 5 de Maio, pelas 18h, na bela e dinâmica Livraria Gigões & Anantes, de Aveiro, onde também será inaugurada a exposição «Maria Lamas, Mulher de Abril» e apresentado o livro Vida e Obra de Maria Lamas: Actualizar o Pensamento, Abalar a Indiferença. A apresentação desta obra colectiva e resultante do último congresso sobre Maria Lamas, realizado em Almada pelo Movimento Democrático de Mulheres (MDM), estará a cargo de Regina Marques, do Secretariado do MDM. Intervirá ainda o autor destas linhas, numa breve aproximação à escrita poética e aos livros para a infância de Maria Lamas – aos quais importa regressar.
Mais uma Conversa Nortear, em Vila Real
Outra proposta: assistir a mais uma Conversa Nortear, promovida pela Direcção Regional de Cultura do Norte, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Será no dia 21 de Maio, às 14h, com moderação do professor universitário Levi Leonido e a presença de dois convidados: a escritora e actriz galega Paula Carballeira e o escritor português João Pedro Mésseder. Previstas também dramatizações e música.
Livros, sempre livros: Cunhal, Adília, Wordswoth, Mário de Carvalho, Tengarrinha, Avelãs, Rodari, Satie e outros
A terminar, algumas sugestões de leitura, pois, deste lado, há quase sempre boas notícias do mundo dos livros.
Começo por duas obras cuja edição (renovada) já tardava e que a celebração do 25 de Abril e do 1.º de Maio veio colocar na ordem do dia. Refiro-me a Os Barrigas e os Magriços e História de Um Gordo Chinês que Estava de Barriga para o Ar. Datadas de 2018, as edições trazem a chancela da Página a Página e oferecem-nos, respectivamente, o inesquecível conto que Álvaro Cunhal escreveu para meninas e meninos do pré-escolar sobre o fascismo e a revolução de Abril (anteriormente publicado na Visão e, mais tarde, em edição, ilustrada por crianças de uma junta de freguesia de Portimão), e uma segunda história escrita durante a Guerra Civil de Espanha para ser lida na Rádio Peninsular.
Cito a sinopse: «Manuel e Mariazinha, de visita à China, não conseguiam perceber por que razão Pung-Chung passava o tempo de barriga para o ar. O gordo chinês bem lhes explicou que estar de barriga para o ar também cansa, mas foi um pobre camponês que explicou o que realmente estava a acontecer». Nestas edições, importa salientar, além dos textos de Cunhal, sensíveis e divertidos, bem escritos e sempre suscitadores do espírito crítico da criança, as ilustrações originais de Susana Matos. Com efeito, estas convertem os livros em obras de grande beleza, elegância e expressividade, marcadas por uma assinalável unidade estilística (quer num caso quer noutro) e pela singularidade do traço e das formas. Uma singularidade que não enjeita, porém, nem os ecos de certas fotografias de época e também dos desenhos do próprio Álvaro, nem um discurso pictural de toque orientalizante, no caso da História do Gordo Chinês. Duas edições absolutamente a não perder e uma notável ilustradora que aqui se nos revela em livro.
Quase a concluir, algumas outras obras recentes que merecem especial atenção.
No campo da poesia: Estar em Casa (Assírio & Alvim, 2018), de Adília Lopes – uma poesia-prosaica, quase uma anti-lírica, que continua a ser de feição diarística, discursivamente desafiadora (dela se espera que seja sempre desconcertante, e consegue sê-lo) mas invariavelmente culta, na sua simplicidade aparente. Mas, sobretudo, uma escrita de uma humanidade que desarma, e que tanto dá o patético como o cómico e a ironia, sem enjeitar a matriz autobiográfica. E esta – reconheço – é uma forma muito redutora de falar desta escrita peculiar que tanto me atrai, onde memória, quotidiano e sentido crítico constantemente se entretecem.
A recente saída de Poemas Escolhidos (Assírio & Alvim, 2018), de William Wordsworth, em edição bilingue e com selecção, tradução e notas de Daniel Jonas, corresponde, claro está, a um empreendimento de monta que coloca finalmente à nossa disposição uma antologia poética do grande romântico inglês.
Na poesia, registo ainda A Cor das Cerejeiras: Haikus e outros poemas (Vega, 2018), de António Graça de Abreu, sinólogo, orientalista, tradutor que é também poeta e que aqui reedita, em versão visivelmente enriquecida, obra anteriormente publicada.
Na ficção, cumpre destacar a recente saída de Portugueses Somos Nós Todos ou Ainda Menos (Porto Editora, 2018), de Mário de Carvalho. Com um cesarinyano título, reúne onze contos de um prosador único e de um crítico social implacável. E, lhe digo ainda, não dispense O Livro dos Abraços (Antígona, 2018), do uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), em boa tradução de Helena Pitta e com ilustrações/colagens do próprio escritor.
Difícil de descrever, classificar (para quê?) e comentar é também o surrealizante texto Arar, datado de 1984, desse tão particular editor, e escritor bissexto, que foi Vítor Silva Tavares (1937-2015), criador da inesquecível & etc.. A edição do texto (inclui fac-simile do manuscrito) acaba de ser trazida a lume, em edição Postas de Pescada (de Ana Biscaia – que paginou – e Emanuel Cameira). Uma publicação bela e especial, pois o texto surge acompanhado de ilustrações também elas surrealizantes de Manuel João Vieira e Nunes da Rocha.
Das mãos e sábios olhares e mentes de Luís Henriques (ilustrador e designer, e um gráfico experimentalista) e ainda de Célia Henriques (inclui nota introdutória de Vítor Silva Tavares), nos chega o imperdível Escritos em Forma de Grafonola (Maldoror, 2018), de Erik Satie. Satie: não apenas o originalíssimo e marcante compositor que foi, mas alguém que assinou também escritos de humor e inteligência irrecusáveis, não raro vergastando a mediocridade dos seus contemporâneos. Refiram-se ainda os encantadores e cómicos desenhos que igualmente nos legou, alguns deles reproduzidos neste livro (juntamente com imagens de Cocteau, Picabia, Picasso…). Completam o conjunto testemunhos sobre Satie de Cocteau, René Clair, Boulez, Cage…. Trata-se, caro leitor/a, de uma verdadeira preciosidade bibliográfica. Oxalá a encontre à venda e se divirta a lê-lo e a contemplá-lo como eu me diverti.
Já agora, não perca a reedição do conhecido O Senhor Teste (Relógio d’Água, 2018), de Paul Valéry (1871-1945); e Nesta Grande Época: Sátiras Escolhidas, de Karl Kraus (1874-1936) (Relógio d’Água, 2018), na competentíssima tradução do seu mais habilitado tradutor português: António Sousa Ribeiro. Outra proposta: os textos breves de Claudio Magris em Instantâneos (Quetzal, 2017), uma bela edição do grande escritor italiano em tradução de Sara Ludovico.
Os seus filhos gostarão também de se divertir – e bem – lendo Inventando Números (Kalandraka, 2018), de Gianni Rodari (1920-1980), o italiano que, a par de ter sido grande escritor, igualmente foi um distinto pedagogo da criatividade, Prémio Hans Christian Andersen em 1970 e… comunista. Convém sempre lembrar que foi um dos mais influentes escritores da literatura contemporânea para a infância, e que se encontra bastante traduzido para Português, e ainda bem. O belo livro em apreço, em formato de álbum, recupera o conhecido texto de Rodari, juntando-lhe ilustrações de Alessando Sanna.
E, já que falamos de obras para a infância, outra sugestão imperdível: A Verdadeira História, agora Desvendada, do Zbiriguidófilo (Edições Esgotadas, 2017), de Pitum Keil do Amaral, com ilustrações de Lira. Quem sabe que O Zbiriguidófilo e Outras Histórias (1991) é um clássico moderno da nossa escrita para a infância, na área do humor, não perderá esta espécie de continuação, marcada pela graça no contar e no dizer e por um saudável grão de loucura.
Da Revolução de Abril à Contra-Revolução Neoliberal (Página a Página, 2018), de António Avelãs Nunes, e, noutra área, a nova edição de Portugal na Espanha Árabe (Caminho), de António Borges Coelho é um par de ensaios de peso cuja leitura não posso deixar de lhe recomendar. Como também me não é possível deixar de sugerir a leitura atenta de Memórias de Uma Falsificadora: A Luta na Clandestinidade pela Liberdade em Portugal (Colibri, 2018), de Margarida Tengarrinha, bem como a do volume IX de Dias Comuns: Derrota Pairante (Dom Quixote, 2018), o diário de José Gomes Ferreira.
Em matéria de correspondência publicada, quem se interessa por duas figuras centrais da cultura contemporânea e pelas relações entre poesia e música não poderá deixar de ler O Diálogo entre a Música e a Poesia: Correspondência (Chiado, 2018), de Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade, com edição e transcrição de Tiago Manuel da Hora.
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