Há cerca de meio século, Daniel Ellsberg – citado por Pierre Rimbert no Le Monde Diplomatique de Abril passado e o herói esquecido do mais recente filme de Spielberg, The Post – dizia que muitas das pessoas da comunicação social «têm mais aspirações a integrar o poder do que a encarnar um quarto poder independente».
Para além das aldrabices dos presidentes norte-americanos dos anos 70 para justificar a guerra – um hábito que se mantém e parece ser inerente ao cargo –, o filme centra-se no papel da dona do Washington Post (interpretada por Meryl Streep), que decide publicar as mentiras de Kennedy e Johnson ao Congresso sobre a guerra do Vietname, provas que Ellsberg conseguira obter correndo importantes riscos.
O episódio tem sido saudado como um hino à coragem dos jornalistas face aos jogos sujos do poder. Contudo, como bem salienta Rimpert, não foram eles a salvar a honra do convento, mas sim a proprietária do jornal, uma diferença significativa, que deixa a afirmação da liberdade de imprensa nas mãos de uma herdeira milionária.
Pela maneira como o filme foi recebido, talvez alguns dos profissionais da comunicação que debitam as patetices do costume sobre o novichok russo ou o gás na Síria se tenham comovido com o The Post, sentindo nele a redenção de uma virgindade perdida.
«Quando se trata do domínio da informação, não há almoços grátis e é fácil perceber como a "vidinha" pode mudar para quem ousa desafiar as regras»
Provavelmente, esses sentimentos facilmente se desvanecem no convívio dos cocktails nos palácios do poder ou em viagens patrocinadas por fundações e think-tanks das grandes empresas. Quando se trata do domínio da informação, não há almoços grátis e é fácil perceber como a «vidinha» pode mudar para quem ousa desafiar as regras, com riscos para a carreira e ameaças do desemprego. Como dizia Salazar, «manda quem pode e obedece quem deve», e há sempre quem dobre a espinha.
Na realidade, no guião dos dias que vão passando, não são as caras e as vozes mais populares que entram nas nossas casas que encarnam a coragem dos jornalistas que fizeram estalar o escândalo de Watergate, nem sequer se assemelham à hesitante ousadia da dona do The Post, que, depois do épico gesto, nunca mais defendeu nada de jeito (e apoiou a guerra de 2003 de Bush contra o Iraque).
Basta ver como os nossos media trataram do mistério do gaseamento do antigo espião russo Skripal e à filha ou o ataque de gás na Síria descoberto pelos «capacetes brancos», ONG mais que suspeita criada pelo «Ocidente» e pela Arábia Saudita, seguindo a encenação habitual com filmes trepidantes cheios de poeira e crianças intoxicadas pelas bombas de Assad e Putin, quando estes estavam a ganhar e nada tinham a lucrar com isso.
Como quem prime um botão, uma onda de indignação invadiu a alma dos comentadores do habitual circo mediático «ocidental», embora a história do gás seja um déjá vu que se repete quase mecanicamente do Iraque à Líbia, dos Skripal à Síria, sempre que a «Europa» e os USA procura um pretexto para uma agressão bélica.
Provas para quê, ONU para quê, legalidade internacional para quê, se são eles os bad boys, como também essa «coisa» abstracta e inexistente, que dá pelo nome de «comunidade internacional», afirma?
«Mas, nos nossos media, não há perguntas, não há interrogações, não há leis internacionais. Tudo pode ser violado em silêncio. Há um lápis azul de censura que paira no monolitismo da "narrativa"»
Voam mísseis para dar mais democracia à Síria, porque o gás passou a ser a alma mater da propaganda, a chave da guerra, o medo aproveitado pelo «Ocidente» para justificar as piores agressões a países soberanos. Mas, nos nossos media, não há perguntas, não há interrogações, não há leis internacionais. Tudo pode ser violado em silêncio. Há um lápis azul de censura que paira no monolitismo da «narrativa». Ouvir um noticiário da rádio ou da TV é ouvir todos. Nenhum abalo na confiança na versão «oficial», fechando os olhos às suas debilidades, como se o passado fosse limpo.
Esquece-se o «desfolhante laranja» com que os americanos envenenaram o Vietname, apagam-se as aldrabices de Bush com fotos na ONU dos depósitos de Saddam que não existam, e poucos se lembram de Tony Blair choroso e arrependido depois de o relatório Chilcot do Parlamento britânico ter confirmado que mentira descaradamente para atacar o Iraque. Agora, o homem está de volta, fresco e viçoso, a pedir mais bombas e mísseis contra a Síria, com outros como ele, porque esta gente sem vergonha acredita que o tempo apaga tudo.
E com os gases da Síria, o novichock de Inglaterra fica fora de moda, excepto para uns russos espertalhões que aproveitam para lançar uma marca de vodka com esse nome. Quanto aos sírios de Douma, parece que não notaram nada e, antes que os investigadores da Organisation for the Prohibition of Chemical Weapons (OPCW) tivessem chegado a uma conclusão, a tensão no mundo muda de agulha, com o Irão na berlinda por o tratado de contenção nuclear, que todos os major ocidentais assinaram e estava a ser cumprido, ter sido trumpado.
E surge um dilema a atormentar o coro das notícias: o desplante de Trump (com uma expressão mussolínica para as câmaras) ao romper o acordo deixa alguns dos falcões habituais sem saber se é melhor alinhar na jogada americana estragando negócios em carteira, se romper a frente euro-atlântica e manter o que assinaram, esperando que o presidente dos USA tome os comprimidos e volte ao business habitual.
Que fazer? Que dizer? Que escrever? Talvez seja a altura de perguntar ao chefe mais próximo, antes de começar a chamar terrorista ao governo iraniano e louvar o pacifismo da Arábia Saudita e de Israel…
É a caricatura de uma informação, manipulada, censurada, subserviente, sem crítica nem contraditório, que domina os noticiários dos nossos jornais, rádios e televisões, quando, a 3 de Maio, se comemorou mais um Dia Internacional da Liberdade de Imprensa.
«segundo a opinião de alguns jornalistas, as maiores ameaças à liberdade e ao pluralismo da imprensa são "o poder absoluto" das empresas sobre a informação, a degradação das condições laborais, a concentração dos media, bem como o desemprego no sector»
NArciso machado
Referindo a data, Narciso Machado, juiz jubilado, afirmou no Público que, «em Portugal, segundo a opinião de alguns jornalistas, as maiores ameaças à liberdade e ao pluralismo da imprensa são "o poder absoluto" das empresas sobre a informação, a degradação das condições laborais, a concentração dos media, bem como o desemprego no sector».
A nível internacional, organizações de repórteres dizem o mesmo, responsabilizando a excessiva concentração da propriedade dos media e o domínio das agências noticiosas pelo grande capital.
Há, contudo, algo de novo. Com a perigosa crise do Irão desencadeada por Trump, desenha-se uma divisão na frente ocidental e será curioso ver como os que são a sua voz vão conseguir gerir a crise. Como diz o povo, é quando se zangam as comadres que melhor se conhecem as verdades.
Como confessa Ellsberg – o grande esquecido do filme de Spielberg, na altura acusado de espionagem e arriscando prisão perpétua por ter conseguido provas comprometedoras contra Kennedy e Johnson –, os heróis com quem hoje se identifica são Edward Snowden e Julian Assange, há anos perseguidos e exilados por denunciarem fraudes e abusos do império, a quem nenhum governo do «democrático Ocidente» concede asilo.
Para além deles, contudo, todos os dias, milhares de profissionais da comunicação social continuam a resistir às pressões dos grandes interesses, procurando responder aos anseios dos que procuram «o outro lado da notícia». E, para celebrar a liberdade de imprensa, são eles os heróis do nosso filme.
PS – Os esforços da Secretária de Estado da Saúde, Rosa Matos Zorrinho, que comemorou o «Dia da Felicidade» criando um grupo de trabalho para a «melhoria dos indicadores de bem-estar das pessoas que trabalham nos organismos e entidades» do SNS, parecem ter falhado. Depois dos enfermeiros, são agora os médicos a fazer uma greve de três dias porque se sentem tão infelizes como os doentes e querem salvar o SNS da política do Governo. No fim de Maio são os técnicos de diagnóstico e terapêutica a entrar em campo.
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