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Os cartéis andam por aí…

A cartelização traduz-se em milionários prejuízos para o Estado e para os consumidores privados. A coima pode ir aos 10% do volume de negócios mas raramente é aplicada, devido ao Programa de Clemência

A Autoridade da Concorrência lançou em 18 de Outubro de 2016 o projeto de avaliação concorrencial da legislação em vigor no sector dos transportes e das profissões liberais, em parceria com a OCDE.
CréditosFonte: Autoridade da Concorrência

Para a generalidade dos portugueses, a palavra cartel aparece nestes últimos anos associada aos cartéis da droga em zonas da América Latina. É certo que os cartéis de droga actuam, não só mas também para limitar a concorrência no narcotráfico e garantir o domínio dos mercados da droga.

Mas os cartéis são uma actividade muito antiga em diferentes sectores da actividade económica, em empresas, serviços, meios turísticos, em sectores como os das telecomunicações e multimédia, bem como nos seguros e banca. Começaram na Idade Média com as guildas e cresceram durante a Revolução Industrial na segunda metade do século XIX, isto é, com a progressão e consolidação do capitalismo.

Quando falamos em cartéis, trusts e holdings estamos a falar de realidades semelhantes introduzidas com os monopólios em capitalismo, que efectuam uma união de interesses próprios contra os consumidores a fim de aumentar os seus lucros e evitarem a concorrência.

Assumindo várias formas, essa actividade está frequentemente relacionada com os preços de venda, nomeadamente com o aumento de preços de bens semelhantes, com restrições de vendas ou de capacidades de produção, com a partilha de mercados ou de consumidores, ou com o conluio noutras condições comerciais para a venda de produtos ou serviços. Na prática, as empresas que formam um cartel funcionam como um monopólio que esmaga a concorrência. Também prejudicam a inovação, impedindo que novos produtos e processos produtivos surjam no mercado.

Os cartéis e a concorrência em Portugal

Apesar de não haver em Portugal explicitamente uma lei anti-cartéis, ao contrário do que acontece na maioria dos países da UE, estas práticas violam o n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio (Lei da Concorrência). Apesar da expressão «cartel« não constar da Lei da Concorrência, ela refere-se à atitude que «corresponde a um acordo entre empresas com atividades concorrentes com vista a restringir a concorrência e obter assim um controlo mais eficaz do respetivo mercado». É à Autoridade da Concorrência (AdC) que compete acompanhar estas situações.

Segundo estimativas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), os cartéis geram um sobre preço estimado entre 10 e 20% comparado ao preço em mercado competitivo e causam, todos os anos, prejuízos de centenas de milhares de milhões de euros aos consumidores. A presidente da Autoridade da Concorrência estimava, no ano passado, que a luta contra os «cartéis» podia reduzir entre 10% a 25% da despesa na contratação pública, isto é, entre 1800 a 4500 milhões de euros por ano.

Este conluio entre concorrentes é punível com uma coima até 10% do volume de negócios das empresas infractoras. Os administradores e directores das empresas podem também ser pessoalmente responsabilizados e condenados ao pagamento de uma coima até 10% da sua remuneração anual. Em casos de cartel na contratação pública, as empresas podem ainda ser proibidas de participar em procedimentos de contratação pública durante um período máximo de 2 anos.

O Programa de Clemência da AdC, criado em 2006, confere dispensa total ou redução da coima às empresas envolvidas em cartéis – bem como aos respetivos administradores e diretores – desde que revelem à AdC um cartel em que tenham participado e que colaborem com a AdC na investigação. A primeira empresa a denunciar o cartel em que tenha participado beneficia de dispensa total da coima e as empresas seguintes podem beneficiar de uma redução da coima até 50%. Os documentos apresentados são tratados como confidenciais. É, como se verifica, um recurso do sistema judicial semelhante à «delação premiada».

Desde a entrada em vigor do Programa de Clemência, cerca de 45% dos processos de cartel tiveram origem em pedidos de clemência, aumentando o número de casos investigados e com algum tipo de resolução. Mas, em nome da transparência, importaria ficar claro o que determina algumas empresas a se socorrerem deste programa, para além da redução de coimas, e se há ou não outros objectivos que as levem a fazer isso. O desfazer de um cartel também pode facilitar a entrada no mercado de empresas estrangeiras com outra dimensão que facilite o esmagamento de empresas nacionais e a sua incorporação nos activos dessas outras empresas recém-chegadas.

Desde que foi criada, em 2003, e até acerca de um ano, a AdC atinha investigado 190 casos de práticas restritivas da concorrência, de que resultaram 35 decisões condenatórias, com coimas que superaram os 48 milhões de euros, pela participação em mais de uma dezena de cartéis, tendo também sancionado administradores e directores das empresas envolvidas. Já no que respeita especificamente a concentrações, até essa data, a Autoridade adoptou 840 decisões, seis das quais de proibição de operações de concentração, e 36 de não oposição ao assumir, por parte das empresas, de certos compromissos.

Cartelização: um fenómeno transversal aos diversos sectores económicos nacionais

São muito diversificados os sectores objecto de uma investigação que dê origem a processos que resultem em condenações ou arquivamentos, alguns destes acompanhados por compromissos e outras indicações que vinculam os processados.

A Portugal Telecom (PT), quando existia, era um cartel no sector das telecomunicações. Mais recentemente, a Autoridade da Concorrência (AdC) declarou extinto o processo de compra da Media Capital pela Altice e, apesar de não se tratar da constituição de um cartel como outros, a abrangência das empresas que ficariam controladas pela Altice levaria à deformação da concorrência e à elevação substancial dos custos aos consumidores (que a AdC estimou, em certos cenários, como podendo atingir os 100 milhões de euros por ano).

«A presidente da Autoridade da Concorrência estimava, no ano passado, que a luta contra os "cartéis" podia reduzir entre 10% a 25% da despesa na contratação pública, isto é, entre 1800 a 4500 milhões de euros por ano»

Um caso recente foi o de fornecimento de aeronaves para o combate a fogos florestais que, segundo o governo, atrasou a aquisição dos aparelhos considerados necessários para enfrentar uma situação como a de 2017, tendo outros meios sido adquiridos, eventualmente por valores ainda superiores, para garantir os meios aéreos considerados necessários para o combate neste ano.

No ano passado, por indícios de cartel, foram feitas buscas em nove empresas do sector da manutenção ferroviária.

Em 2016, a Antalis, empresa de comercialização de consumíveis de material de escritório, foi suspeita e condenada por acção concertada na fixação de preços e repartição de mercado, ficando sob investigação outras quatro empresas similares. Nesse ano, também a Associação Portuguesa de Escolas de Condução foi condenada por essas práticas. Ainda no mesmo ano, foram arquivados processos contra várias empresas de animação turística.

Em 2015 foram feitas investigações em empresas de serviços portuários dos quatro maiores portos portugueses mas o respectivo processo foi arquivado.

Em 2015 também foi arquivado processo contra​ a Associação Portuguesa de Leasing, Factoring e Renting (ALF) e empresas suas associadas, mas mediante compromissos e outras condições.

Nesse ano foram também arquivados processos contra uma ordem profissional (mais duas em anos seguintes), contra a SIVA, SEAT, FCA e Ford Lusitana, onde se investigou a «existência de uma restrição constante de um contrato de extensão de garantia, a qual impedia os consumidores de realizarem operações de manutenção ou reparação (não abrangidas pela garantia) em oficinas independentes, sob pena de perderem o direito à garantia do fabricante». Os primeiros três processos foram arquivados, no primeiro caso condicionalmente, e o quarto acabou numa condenação por declarações falsas.

Antes, entre outras, tinham sido condenadas a Petróleos de Portugal, a GALP e algumas grandes empresas de papelaria (2011), a Sport TV de Portugal (2010), a Associação Nacional de Farmácias e a Farminveste (2009), a Roche Farmacêutica, várias escolas de condução e a Royal Canin de Portugal (todas em 2008).

O leitor interessado em conhecer todas estas situações pode visitar o sítio da Autoridade da Concorrência.

O sector financeiro da economia, uma praia para os cartéis

Desde o ano passado decorre a investigação da Autoridade da Concorrência a uma possível cartelização no sector dos seguros, resultante de uma denúncia da Tranquilidade feita em 2017. Foi a própria Tranquilidade que, confrontada internamente com a cartelização de seguros de trabalho, entregou à AdC os indícios dessa actividade, solicitando, ao mesmo tempo, a adesão ao Programa de Clemência o qual, como já vimos, .constitui uma delação premiada e permite à seguradora ficar livre de qualquer penalização.

Idêntica investigação está em busca no sector da banca, no que respeita à cartelização nos spreads e comissões a aplicar aos clientes, tendo neste caso sido delatores o Barclays e o Montepio Geral (MG), que também requereram a adesão ao Programa de Clemência. A AdC prometeu há um ano medidas que ainda estarão dependentes do segredo de justiça, que se mantém. Mas a notificação dos 15 bancos alegadamente prevaricadores já vem de 2015, depois de a investigação ter sido desencadeada em 2013 por denúncia e de isso se ter traduzido em buscas em 12 instituições financeiras: nos maiores grupos, como a CGD, o BCP, o BES, o BPI e o Santander Totta; nos considerados de média dimensão, como o Crédito Agrícola (CA), o Banif, e o MG; e nos de menor dimensão – Barclays, Banco Popular, Banco BIC e BBVA Portugal.

Na notificação referida a AdC confirmara que em causa estava a «suspeita de prática concertada, na forma de intercâmbio de informações comerciais sensíveis, de carácter duradouro, no que respeita à oferta de produtos de crédito na banca de retalho, designadamente crédito à habitação, crédito ao consumo e crédito a empresas».

A Adc chegou a admitir a conclusão deste caso em 2016, mas esse desfecho transitou agora, segundo a mesma, para este ano. Aguardamos com interesse, a soma deste caso aos muitos que fazem da banca portuguesa um caso de polícia e de desconsideração e prejuízo pela população que a procura. São empresas importantes, com capacidade de «manobra» que outras, mais pequenas, não têm.

A cartelização tem associado um conjunto de outras práticas ilegais de diferentes empresas que dela beneficiam e, também aqui, quem mais recursos tem até mais longe consegue resistir no «negócio». Esse, porém, será tema a abordar noutra ocasião.

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