«O corte foi tão perfeito que os médicos julgavam que os meus olhos tinham sido removidos cirurgicamente», contou ao AbrilAbril Kaylee Murthart1, de 20 anos de idade, «mas fui eu que os arranquei com as minhas próprias mãos. Formei pinças com o indicador, o polegar e o dedo médio de cada mão, agarrei os olhos, rodei-os e puxei-os até saltarem das órbitas».
Foi em Fevereiro deste ano, mas só agora Kaylee é capaz de juntar as peças e explicar o que aconteceu: «Estava a deambular pela linha de comboio. Embora fosse dia, estava muito escuro. Lembro-me de um pássaro branco num poste de electricidade e de um homem que passou por mim de carro e me perguntou se eu tinha “a chave”».
Nascida e criada em Anderson, na Carolina do Sul, no seio de uma família de classe trabalhadora, Kaylee auto-denomina-se uma «cristã religiosa» e sempre procurou na Bíblia todos os sentidos, explicações e instruções, mesmo que místicas ou crípticas, para a aproximação a Deus. «Hoje sei que foi o efeito da droga mas, naquele momento, acreditei que Deus me estava a pedir para me sacrificar e que “a chave” eram os meus olhos. Interpretei tudo mal, mas o mundo tinha-se tornado num lugar tão mau e feio que simplesmente já não aguentava mais vê-lo». Uma convicção tão forte que só com a força somada de oito homens foi possível detê-la.
Há quase 2500 anos, na tragédia Édipo Rei, Sófocles contava a história de um homem para quem a visão do mundo se tornara insuportável ao ponto de vazar os próprios olhos. Se não fora capaz de ver que a mulher com quem partilhava a cama, Jocasta, era na verdade sua mãe nem sequer de ver que o homem a quem roubara a vida, Jaio, era na verdade seu pai, de que lhe serviam os olhos?
«Diante dessa visão horrenda», narra Sófocles, «o desgraçado solta novos e lancinantes brados, desprende o laço que a sustinha, e a mísera mulher caiu por terra. (...) Édipo toma o seu manto, retira dele os colchetes de ouro que o prendiam e com a ponta recurva arranca das órbitas os olhos, gritando: "Não quero mais ser testemunha das minhas desgraças, nem dos meus crimes! Na treva, agora, não mais verei aqueles a quem nunca deveria ter visto, nem reconhecerei aqueles que não quero mais reconhecer!" Soltando novos gritos, continua a revolver e macerar suas pálpebras sangrentas, de cuja cavidade o sangue rolava até ao queixo e não em gotas, apenas, mas num jorro abundante.»
Que «visão horrenda» foi essa, que levou Kaylee Muthart, como Édipo, aos gestos trágicos dos mitos antigos? Ao contrário do rei de Tebas, Kaylee Muthart tem uma explicação muito mais mundana, que partilha aliás com as 8 mil pessoas que, todos os anos, morrem nos EUA por culpa da metanfetamina.
A rulote de Walter White
Segundo os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças, entre 2005 e 2015, o número de mortes nos EUA causadas directamente pela metanfetamina aumentou 250 por cento. Uma cifra que, a julgar pelo azimute a que apontam os mais recentes dados estaduais, continua a aumentar ano após ano.
250%
Aumento de mortes por anfetaminas nos EUA (2005-2015)
Diante da explosão do consumo de metanfetaminas, o Congresso dos EUA criou leis que tornaram mais difícil comprar grandes quantidades do químico em que se baseia a droga, a efedrina, nos balcões das farmácias. O que se seguiu, especialmente a partir de 2010, foi a farsa retratada na popular série de televisão Breaking Bad: milhares de laboratórios caseiros foram encerrados pela falta de acesso às matérias-primas ou pela DEA, o braço armado anti-narcóticos do Departamento de Justiça. Mas, ao invés de minguar, a quantidade de metanfetamina inundou o mercado. A pequena produção de meth, cozinhada artesanalmente em condições precárias, deu lugar à grande produção industrial, aquela que nunca precisou de adquirir a matéria-prima em farmácias. A pequena rulote de Walter White é então devorada pelo monopólio da grande produção industrial que, a salvo das interrupções da DEA, se abastece de efedrina directamente nas únicas nove fábricas que, em todo o mundo, fabricam o químico. Em 2016, o preço médio da metanfetamina baixou de 98 para 58 dólares por grama, enquanto o grau de pureza subiu, em média, de 85 para 93 por cento.
Aluna do quadro de honra durante o ensino secundário, Kaylee começou a tomar estimulantes quando entrou no mundo do trabalho. «A droga era uma forma de lidar com os longos horários de trabalho, com o desemprego, com os meus problemas emocionais. Quando a minha relação com o meu ex-namorado começou a deteriorar-se comecei a fumar mais cannabis, a beber mais álcool e a tomar Xanax. Quando acabámos, tive uma depressão. Comecei por fumar metanfetaminas, depois comecei a inalar e ao fim de dois meses estava a injectar», explicou.
«Foi preciso isto acontecer para a minha filha ser diagnosticada com transtorno bipolar. Ela nem sabia que tinha a doença. Não há saúde mental [nos EUA] e quando as pessoas caem na droga, tratam-nas como lixo»
Katy Tompkins, mãe de Kaylee Muthart, está no Facebook
A mãe, Katy Tompkins2, responsabiliza também o governo: «Foi preciso isto acontecer para a minha filha ser diagnosticada com transtorno bipolar. Ela nem sabia que tinha a doença. Não há saúde mental [nos EUA] e quando as pessoas caem na droga, tratam-nas como lixo. Muitas pessoas simplesmente não têm um seguro de saúde e, para essas, não há recursos nem serviços, nem apoio, só há filas de espera», acusa.
Kaylee tem actualmente acesso ao Medicaid, o programa federal de saúde pública que garante cuidados mínimos a quem não pode pagar um seguro de saúde, pelo que não terá de pagar as duas cirurgias através das quais, na semana passada, lhe inseriram nas órbitas caliginosas olhos prostéticos, esferas de vidro, pintadas à mão, que recordam de forma quase perfeita mas estranha, sem o nédio vital, os olhos que perdeu. De fora do Medicaid, fica, porém, quase tudo: «a Segurança Social está a recusar-lhe o Subsídio de Apoio Suplementar e as despesas são muitas», explica a mãe, «por exemplo, a Kaylee foi transportada para o hospital de helicóptero. Só essa viagem são 38 mil dólares. Nós não podemos pagar esse valor», protesta.
O próprio acesso ao Medicaid pode estar por um fio: a administração de Trump tem em cima da mesa uma proposta para restringir o tíbio programa de saúde pública àquelas pessoas com baixos rendimentos que tenham trabalho, excluindo por esta via pessoas como Kaylee.
Visão fantasma
À medida que os meses passam, Kaylee vai construindo uma vida nova, preenchida com sessões de reabilitação e desintoxicação, cirurgias e formação. O próximo passo, diz-nos, é conseguir um cão-guia: «é um processo muito difícil: cada cachorro pode custar até 50 mil dólares3 e as exigências da Comissão da Carolina do Sul para os Cegos são muitas», revela a mãe. «Cada dia é diferente. Há dias em que está muito triste... Tem altos e baixos».
Kaylee, por seu turno, sorriso na voz, garante que está melhor: «Já consigo andar pela casa, limpar coisas, ir passear o cão. E já não tenho dores, só alguma irritação». O mais estranho, garante, é aquilo a que chama «visão fantasma». «Não consigo ver, mas o meu cérebro continua a tentar receber estímulos eléctricos dos meus olhos. É como as pessoas que perdem uma mão, mas continuam a sentir dores nos dedos; eu “olho” para um sítio e o meu cérebro tenta preencher a informação em falta para criar uma imagem do que na verdade lá está. E depois há outras coisas, que só agora consigo ver».
Como no Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, Kaylee insiste, sem abdicar da fé cristã, que a invisualidade lhe permitiu ver o mundo de forma diferente. «As pessoas andam sozinhas. Não se vêem umas às outras. A sociedade empurra-nos para a cegueira. A todos», sentencia.
Desde que ficou cega, os sonhos de Kaylee também mudaram. Tornaram-se mais vívidos, mais realistas, mais visuais. Há um, contudo, que ocorre mais vezes e se distingue pela intensidade: sonha que nada num oceano agitado. Talvez porque não tenha perdido a esperança de um dia ser bióloga marinha. Talvez porque até o mais cego Édipo pode levantar-se do improfundável pélago, erguer a cabeça das trevas no meio da procela, e ver.
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