E, contudo, ela existe, vá lá perceber-se tamanha incongruência.
De um lado, o maléfico agressor, a inominável Rússia, despachando batalhões de hackers para envenenar o mundo mediante demoníacas conspirações informáticas, com os seus hangares e pistas repletos de caças e bombardeiros aptos para desmembrar o planeta, dotada de centenas de tanques de última, penúltima e sabe-se lá que mais gerações prontinhos a lançar-se pelo Suwalki Gap para invadir a pacífica Europa, tal como a gémea União Soviética tentou durante a sua existência; pelo menos assim o garantiam as fontes bem informadas sintonizadas por Washington – as quais se mantêm ainda no mesmo comprimento de onda.
Do outro lado as serenas forças da paz, em cada dia reforçadas com os mais valentes arsenais defensivos para que prevaleça o nosso civilizado modo de vida, temperado com austeridade e outras prebendas democráticas, cercando cada centímetro da traiçoeira, interminável e porosa fronteira russa, terrestre, marítima ou aérea, ambicionando transformá-la num muro intransponível; assim assegurando, sob a bandeira da tolerante NATO, que os malignos instintos e desígnios do inimigo jamais saiam do ovo.
Exemplo acabado do pacifismo atlantista aconteceu no passado dia 21 de Junho. O avião onde viajava o ministro russo da Defesa, Serguei Choigu, seguia pelo corredor aéreo do Báltico internacionalmente reconhecido para ligar Moscovo ao enclave de Kalininegrado quando foi interceptado por um caça norte-americano F-16 decorado com as cores da Polónia.
Em gíria quotidiana, a acção seria qualificada como uma provocação, não se desse o caso de ser executada por um aparelho da NATO, atributo que logo a insere no léxico das práticas defensivas. O episódio não teve evolução bélica porque um caça Sukhoi 27 russo surgiu em defesa do aparelho ministerial civil, provocando a debandada do intruso.
O incidente passou em claro porque a tal guerra não existe. Para se ter uma ideia mais aproximada da gravidade de episódios deste género é essencial conhecer o contexto em que foi montado, numa região tão prenhe de arsenais, dispositivos e movimentações militares que a utilização, neste caso, do fatigado lugar-comum «barril de pólvora» só poderia funcionar como uma cínica caricatura.
Passo então às notícias da Frente Leste de uma guerra inexistente.
Entre 1 e 16 de Junho a NATO realizou no Mar Báltico os exercícios Baltops, para «defender» a região da «ameaça russa». Juntaram-se mais de 50 navios e outros tantos aviões de guerra de membros da aliança - Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Polónia – e de países que se designam «parceiros», como são os casos da Suécia e da Finlândia.
Enquanto isso, entre 12 e 23 de Junho a NATO ocupou a mesma região com o mega exercício Iron Wolf (Lobo de Ferro), fazendo extravasar quatro grupos de batalha a partir de outros tantos países – Lituânia, Polónia, Estónia e Letónia – convergindo para as fronteiras russas. Uma «reforçada presença avançada», anunciou a aliança «defensiva» a propósito do cenário de guerra instalado na região.
Na Lituânia, as operações tiveram comando alemão e envolveram tropas holandesas, belgas e norueguesas, ficando desde já estabelecido que no próximo ano o contingente será ampliado com franceses, croatas e checos.
«Improvável seria que a Rússia se limitasse a assistir impávida ao espectáculo encenado às suas portas.»
O grupo de batalha da Polónia teve comando norte-americano e a participação de tropas britânicas e romenas; a faixa de terra entre a Bielorrússia e o território russo de Kalininegrado, conhecida como Suwalki Gap e que, nos termos da propaganda atlantista, será a via de invasão da Europa por blindados russos, serviu por ora de pista para a invasão da Lituânia a cargo dos tanques Abrams da terceira brigada blindada dos Estados Unidos, estacionada desde Fevereiro na Polónia, juntando-se aos Leopard do 122.º batalhão de infantaria mecanizada da Alemanha.
Na Letónia, o comando de operações foi canadiano; aqui se juntaram tropas espanholas, italianas, polacas, eslovenas e albanesas.
Na Estónia foram essencialmente franceses os militares chamados a participar na guerra, sob comando britânico. Para o ano juntar-se-ão também dinamarqueses.
Durante as batalhas, o general norte-americano Curtis Scaparotti, chefe do Comando Europeu dos Estados Unidos e comandante supremo aliado na Europa, confessou-se um homem orgulhoso e confiante: «as nossas tropas estão prontas e posicionadas para o caso de terem que enfrentar uma agressão russa», declarou. Tal como as tropas da mesma aliança fizeram, por exemplo, quando tiveram «que enfrentar agressões» do Afeganistão, do Iraque, da Líbia, da Síria, ou do Mali, da República Centro-Africana, do Sudão, do Kosovo, da Sérvia, da Somália – sempre, como sabemos, em legítima defesa.
Ainda não é tudo sobre as notícias da Frente Leste.
De 12 a 29 de Junho, coincidindo parcialmente com a guerra em terra, mar e ar a envolver a Rússia, mais de mil cientistas e engenheiros de 26 países da NATO juntaram-se em Bydgoszcz, na Polónia, onde funciona o Centro de Treino das Forças Conjuntas, para «testar as tecnologias mais avançadas» e garantir assim à aliança «defensiva» a «maior rapidez e inter-operabilidade, em especial no confronto» com Moscovo. A operação designou-se Coalition War (Coligação de Guerra).
Improvável seria que a Rússia se limitasse a assistir impávida ao espectáculo encenado às suas portas. Moscovo aguardava a visita de Donald Trump à Polónia, que hoje se iniciou em Varsóvia, para o receber com manobras navais de grande amplitude no Mar Báltico, em conjunto com a China.
O cenário está montado. As principais potências militares mundiais atingiram o estado de prontidão para uma guerra de carácter global, concentrando os seus mais poderosos e significativos meios militares em territórios agora livres da administração ou influência soviética.
Nesta paz criativa que nasceu da guerra fria uma simples faúlha pode provocar uma hecatombe cujos preliminares não constam das mistelas dadas a consumir pela propaganda que insiste em designar-se comunicação social.
Pode ser uma simples investida de um caça norte-americano pintado com a águia polaca contra um qualquer alvo russo; pode ser mais uma proeza do golpista nazi Andriy Parubiy, presidente do Parlamento ucraniano e comandante das milícias hitlerianas do Batalhão Azov, grande interlocutor da NATO na região; pode ser a invocação do célebre artigo 5.º da Carta do Atlântico logo que a Ucrânia entre formalmente na NATO, ainda que interpretado retroactivamente a propósito do regresso da Crimeia à soberania russa – referendado pela população do território.
Pode ser um incidente que ninguém imagina. Fácil será provocá-lo. Difícil é fazer retroceder tão monstruoso aparelho militar aos quartéis.
São alarmantes as notícias da Frente Leste de uma guerra que não existe.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui