Desde a antiguidade, os ovos são simbolo de nascimento. As liturgias cristãs, férteis em se apropriarem das celebrações pagãs, usam-nos para assinalar a Páscoa, o mistério da morte e ressurreição, tempo de excelência para cristãos de várias confissões.
Tradição com que se tropeça em qualquer espaço comercial com ofertas variadas, dos ovos de chocolate às amendoas. Ovos que também foram objecto de obras de joalharia fabricadas por Fabergé e seus sucessores para os czares, combinando esmaltes, pedras e metais preciosos. São peças muito disputadas por coleccionadores como sempre atentos ao valor de mercado, insensíveis ao desguedelhado kitsch desses objectos. A normalidade da anormalidade dos tempos.
Em todo o mundo, a Páscoa tem grande expressão musical. Concertos de música com Paixões, Lições das Trevas, Stabat Matter, Oratórios em que se registam acontecimentos laterais relacionados com o tema central, como Madalena aos Pés de Cristo de António Caldara ou em que os traços panteístas se sobrepõem aos religiosos como as Páscoas Russas, em que a celebração da Páscoa é associada ao explodir da primavera, fazem parte de programas em muitas salas de concertos.
A Páscoa continua a ser tema e muitos são os compositores contemporâneos que a ela dedicam obras de grande valia. O seu tema nuclear, o da morte e da ressurreição, tem variantes, ouça-se a Morte e Transfiguração de Richard Strauss.
Em tempo de Páscoa, para convictos crentes e irredutíveis ateus e agnósticos, o esplendor da música ultrapassa o dos convencimentos. Quem ama a música não fica indiferente ao sublime artístico muitas vezes alcançado. Com naturalidade são muitos os programas musicais que todos os anos são oferecidos. São muitos os registos discográficos notáveis de música celebrativa desse sucesso que continuam a ser gravados a par com registos existentes considerados de referência.
A Páscoa é dos momentos das liturgias mais inspiradores da música. A morte, o período que a prepara, o sofrimento imposto pela crucificação e a ressurreição, são particularmente marcantes nesse imaginário. Nos diversos ritos cristãos, a Páscoa é celebrada com intensidade e espessura musical inigualável.
Tem longa história. No pré-renascentismo Machaut, Byrd, Tallis, Ockeghem, Gesualdo são alguns dos que escreveram obras musicais admiráveis com a Páscoa a motivá-los. Mas a Páscoa afirma-se e multiplica a sua presença na Reforma e na Contra-Reforma, num tempo onde se irão distinguir caminhos nas artes numa história paralela e cruzada com o desenvolvimento da burguesia que marca o fim do monopólio cultural da igreja.
Nas causas próximas está a música que se praticava nas igrejas, o canto gregoriano e os sumptuosos coros polifónicos, em que os textos se sobrepunham com efeitos ornamentais excessivos tornando o conteúdo, já difícil de entender por ser em latim, quase completamente incompreensível.
A polifonia evoluiu das missas de Byrd a quatro vozes para formas complexas a 16 vozes, Pieter Massins e João Lourenço Rebelo, a 24 Josquin Desprez e Padovanno, a 35 de Willem Ceuleers, até às com 40 vozes, Striggio e Tallis. Gerava-se uma envolvência encantatória que assombrava os crentes, desviando a atenção da liturgia.
A Reforma procurou que a nova igreja encontrasse um novo reportório musical que apaguasse definitivamente os textos latinos. Os reformadores procuram a colaboração de poetas e músicos para dar corpo ao diálogo directo com a Bíblia. Querem que as orações se façam na língua comum, com textos fáceis de memorizar, um vocabulário simples ao alcance de todos.
A prioridade começa a ser a palavra, não a música. As primeiras composições são lineares, vão ao encontro das melodias populares, que um chantre pudesse cantar e a assembleia acompanhar. Vai, no entanto, a música ganhando lugar importante. Fazem-se cruzamentos de música sacra e profana até a intervenção musical se tornar indissociável da celebração litúrgica, que encontrará em Johann Sebastian Bach o seu máximo expoente com as Paixões Mateus e João e uma outra de Lucas que se foi escrita continua perdida.
As Paixões continuam a ser tema que motiva compositores contemporâneos como Sophia Guibadulina, que funde o rito protestante com o ortodoxo, e Wolfang Rihm.
A Contra-Reforma seguirá um percurso completamente diverso. Consciente dos avanços da nova igreja, reúne-se para resistir e iniciar a contra-ofensiva. Nesse contexto, o Concílio de Trento e a fundação da Companhia de Jesus foram o princípio da resistência da Igreja de Roma, que os protestantes julgavam agonizante, contra a vitoriosa Reforma.
Opondo-se à interpretação da leitura da Bíblia preconizada pelos protestantes, a Contra-Reforma reformula e intensifica a utilização da liturgia romana. A música readquire um papel importante depois de, num primeiro momento, os bispos e cardeais reunidos no Concílio de Trento quererem mesmo proibir toda a música polifónica, com o argumento que só a voz humana é digna de louvar Cristo e que era necessário acentuar as palavras que não se poderiam deixar enredar na ornamentação vocal. Agradar pelas palavras não pela voz.
Diz-se, a história também se constrói com essas estórias, que se deve a Palestrina ter evitado que a música fosse apagada dos rituais católicos pelos contra-reformadores reunidos em Trento, tomados pelo fogo sagrado com que queriam purificar a igreja dos excessos na origem da revolta de Martinho Lutero, Calvino e seguidores que se espalhava como fogo em pradaria.
Para salvar a igreja e o papado, sobretudo para se salvarem, as propostas que se fizeram para reformular a liturgia romana, assente nas imagens nas pinturas e na música, utilizadas para gerar espanto e estupefacção, chegaram ao extremo de propor que os frescos do tecto da Capela Sistina, fossem pintados de azul salpicados de estrelas para ocultar as magnificas pinturas de Michelangeli, consideradas licenciosas. Capela Sistina onde o coro papal, durante séculos, cantou, na semana santa, o celebérrimo Miserere de Allegri, música que o Vaticano queria tão exclusiva que até proibiu por lei a sua transcrição.
Contra essa fúria renovadora, Palestrina é, na esteira de Cristóbal de Morales, o primeiro compositor do novo estilo de acordo com os cânones da Contra-Reforma. Alcança um relevo excepcional pelo seu sentido de equilíbrio perfeito. As primeiras bases dos textos utilizados foram as palavras de São Jerónimo, as Lamentações de Jerónimo que estão na origem dos Ofícios das Trevas que, com o texto do Stabat Mater, são utilizados extensivamente pelos compositores da Contra-Reforma.
Os Ofícios das Trevas cairam em desuso ao contrário dos Stabat Mater que continuaram a ser escritos. São bem conhecidos e muito tocados além do muito celebrado de Pergolesi, os de Vivaldi, os dos dois Scarlatti, Alessandro e Domenico, Charpentier, Shubert, Liszt, Verdi,Rossini, Dvorak, os contemporâneos Penderecki e Arvo Part. Até música pop com destaque para Karl Jenkins, um dos Soft Machine. Todos muito diferentes, muitos deles a ocupar lugar de destaque no conjunto da obra dos compositores.
Na liturgia católica romana, durante as três noites da Semana Santa, quinta, sexta e sábado, as luzes extinguem-se para dar lugar às trevas que se dissiparão com a ressurreição. A tradução musical desse sucesso começou por ser corporizado nas já referidas Lamentações de Jeremias, belo e patético trecho, inscrito no Antigo Testamento.
Uma meditação sobre a destruição do Templo de Jerusalém, um poema em que cada verso se inicia por uma letra do alfabeto hebreu. Há numerosas versões polifónicas das Lamentações de Jeremias que foram progressivamente substituídas pelo Lamenti barroco, embora Heinichen, mestre capela de Augusto da Saxónica, as tenha recuperado numa belíssima oratória barroca.
Nos Lamenti barrocos, alguns sem laços religiosos, muito se distinguiram Caríssimi, Cesti, Frescolbaldi, Vivaldi, entre outros. Têm antecedentes na Renascença, nomeadamente Lassus, Maissano, Palestrina.
Em França os Lamenti foram adaptados ao «gosto» dominante na corte, juntando ao rigor declamatório uma particular ornamentação. Surgem as Lições das Trevas que tiveram em Charpentier, Couperin, Delalande, Brossard os seus mais lídimos intérpretes.
Couperin consegue uma particular beleza com o ritmo musical sublinhando o ritmo das frases latinas, uma estrutura das frases musicais particularmente sedutora, com uma ou duas vozes de sopranos ou contratenores, acompanhadas por música de órgão e viola de gamba, num quase milagre escrito pela mão deste compositor poético e contemplativo.
Outro dos temas recorrentes na música de Páscoa, é o Sete Últimas de Palavras de Cristo na Cruz para que Haydn escreve uma obra prima, das mais representativas do Iluminismo.
Uma encomenda do Bispo de Cadiz para criar ambiente ao ritual que nas sextas-feiras santas se cunpria na sua catedral. As paredes, janelas e colunas do templo eram cobertas com panos pretos e somente uma lâmpada no meio da igreja iluminava essa santa escuridão.
Na sexta-feira, ao meio dia, as portas da igreja eram fechadas, em seguida, começava-se a ouvir a música. Depois da solene e significativa entrada musical, o bispo subia ao púlpito, pronunciava a primeira das sete palavras, dava a sua interpretação. Depois, descia do púlpito caía de joelhos diante do altar, rezando.
Enquanto rezava, o espaço de tempo era preenchido com a música. Haydn escreveu uma introdução e sete adágios com tempos quase iguais e um final, Il terramoto, que mostra como Haydn, mestre de Mozart e Beethoven, ensinou e aprendeu com os seus díscipulos.
Esta versão não está em conformidade com o que se designa por nova música antiga, um notabílissimo trabalho iniciado por Nikolaus Harnoncourt e Gustav Leonnardt que mergulham nos cânones da música antiga para a trazerem até à nossa época tornando-as modernas sem trair o seu passado histórico.
Entre outros magníficos registos discográficos gravaram uma integral das cantatas de J.S.Bach.
Abriram novos horizontes explorados em todo o mundo por músicos como Frans Brüggen e a Orchestra of the 18th Century Philippe Herrewhe e o Collegium Vocale de Gent, Reinhard Goebel e a Musica Antigua Köln, Konrad Junghänel e o Cantus Cöllin, Masaaki Suzuki e o Bach Collegium do Japão, Gotthold Schwarz e o Concerto Vocale de Leipzig, Christophe Coin e o Ensemble Baroque de Limoges, John Elliot Gardiner e os English Baroque Soloits, Peter Philips e os The Tallis Schollars, Marc Minkowski e os Les Musiciens du Louvre, Jordi Savall e Le Concert des Nations, Alfred Deller e o Deller Consort, Dominique Vellard e o Ensemble Binchois, Björn Schemelzer e os Graindelavoix, Marcel Pérès e o Ensemble Organum, Harry Christophers e os The Sixteen, os Orlando Consort, a Orchestra of the Age of Enlightenment, a Akademie Für Alte Musik Berlin, a Nederlands Kamerkoor, a Rias-Kammerchor, a Schola Cantorum Basiliens, os Mala Punica, por cá Manuel Morais e os Segréis de Lisboa, Marcos Magalhães e Marta Araújo e Os Músicos do Tejo, que, entre muitos outros dão continuidade, aprofundaram e aprofundam, continuam os caminhos abertos por Leonhardt e Harnoncourt, numa verdadeira explosão da música da mais antiga à barroca, que renasceu com grande vitalidade e hoje é normal ouvir tanto em concertos como em registos discográficos, interpretada por uma plêiade de músicos e cantores, muitos deles jovens.
Feita esta digressão músico-pascal, há muito para ouvir.
BRAGA
Igreja de Santa Cruz
Dia 10, 21h30 – The Armed Man. A mass for Peace de Karl Jenkins, Coro e Orquestra da Universidade do Minho.
Sé Catedral
Dia 11, 21h30 – Stabat Mater Dolorosa de Shubert/Requiem de Mozart, Coro da Sé do Porto e Orquestra Filarmonia das Beiras, maestro Tiago Ferreira.
Igreja de S. Victor
Dia 22, 21h30 – Dixit Dominus de G. F. Haendel - Coro e Orquestra Sinfonietta de Braga.
PORTO
Casa da Música
Dia 8, 18h – Via Sacra de James Dillon/Hynne au Saint Sacrament de Olivier Messiaen/Sinfonia de Requiem de Benjamin Britten; Orquestra Sinfónica do Porto, maestro Peter Rundel.
Dia 9, 12h – The Sword and the Crown de Edward Gregson/Dona Nobis Pacem de Marin Ellerby/A Colour Symphon de Philip Sparke; Banda Sinfónica Portuguesa, direcção Douglas Bostock.
Dia 12, 21h30 – Sinfonia al Santo Sepolcro de Antonio Vivaldi / Sinfonia di Concerto Grosso nº 4 de Alessandro Scarlatti /Il pianto di MariaIl Pianto di Maria de Giovanni Ferrandini /Concerto Grosso, op 7 n.º2 de Gemianiani/Concerto para Oboé, op 9 n.º2 de Albinoni /Salve Regina de Vivaldi/Concerto Grosso, op 3 n.º 1 de Pieter Hellendaal, Mónica Monteiro – soprano, Pedro Castro – oboé, Orquestra Barroca Casa da Música, Laurence Cummings direcção musical.
SÃO PEDRO DO SUL
Igreja Matriz de Santa Cruz da Trapa, dia 7, 21h30, Concerto de Páscoa, com obras de Vivaldi, Telemann e Haendel, Orquestra Barroca «Ars Luxurians».
VISEU
Igreja da Misericórdia
Dia 8, 21h, Prelúdio (órgão) de J. Podielski /Elevazione (órgão) de F. Arresti/Concerto para viola, cordas e baixo contínuo em Sol de Telemann/Sonata em Dó maior (órgão) Anónimo séc XVIII/Toccata em Sol menor (órgão) de Carlos Seixas/Concerto para violino, cordas e baixo contínuo em Ré menor/Sonata em Ré menor (órgão) de B. Galluppi/Sonata 5.º tono (órgão) de F. Larranaga/Motete para soprano, cordas e baixo continuo «In Turbato Mare Irato»/Vivaldi, Paulina Sá Machado – soprano, Daniel Simões – barítono, Tadeu Filipe – órgão, Orquestra Barroca «Ars Luxurians», integrado no Festival Internacional Música na Primavera.
COIMBRA
Auditório do Conservatório de Música de Coimbra
Dia 8, 21h30, Missa «The Armed Man», Karl Jenkins, Patrícia Quintas, mezzo-soprano, Coro da Universidade do Minho, Coro do Conservatório Superior de Musica de Vigo, Orquestra da Universidade do Minho, Pedro Telles – baixo, direcção Ertug Korkmaz.
Dia 14, 18h00, Requiem Alemão de Brahms, Carla Caramujo – soprano , Rodrigo Carvalho – baixo, Coro Sinfónico Inês de Castro, Orquestra de Espinho, direcção Pedro Neves.
LISBOA
Igreja de São Roque
Dia 8, 21h, Missa Praeter Rerum Seriem de Georges de la Hèle/Missa pro defunctis a 8 Duarte Lobo/Missa pro defunctis a 8 de Orazio Vecchi, Graindelavoix direcção Björn Schmelzer.
Fundação Gulbenkian
Dia 9, 19h, Variações e Fuga sobre um tema de Haendel de Brahmas/Prelúdios op. 28 de Chopin, Yuja Wang – piano.
Dia 11, 21h, Requiem de Fauré/Requiem de Mozart, Sandrine Piau – soprano, Helena Rasker mezzo-soprano, Christophe Einhorn-tenor, Marcos Fink – baixo coro e orquestra da Gulbenkian, maestro Michel Corbo.
Centro Cultural de Belém
Dia 13, 21h, Concerto para a Paz Guillaume Dufay/Ave Maris Stella Tomás Luis de Victoria/Laetatus sum, Claudio Monteverdi/Sinfonia, RV 134 Credo, RV 591 Vivaldi/Nimm von uns, Herr, Johann Sebastian Bach/Da pacem, Domine, 2004 Arvo Pärt, Susana Gaspar – soprano, Carolina Figueiredo – contralto, Marco Alves dos Santos – tenor, André Henriques – baixo, coro Voces Caelestes, Sérgio Fontão – direcção do coro, Os Músicos do Tejo, direcção Marcos Magalhães e Marta Araújo, maestro convidado Aapo Häkkinen.
LISBOA e ALMADA
Teatro Municipal de Almada-Joaquim Benite, dia 7, às 21h30
Centro Cultural de Belém, dia 9 de Abril, às 17h,
no Concerto para violino e orquestra em Ré maior, Beethoven Seven Last Words from the Cross James MacMillan, Henning Kraggerud Violino e direcção musical (obra de Beethoven) João Paulo Santos direcção musical (obra de MacMillan) Coro do Teatro Nacional de São Carlos, Giovanni Andreoli, maestro titular, Orquestra Sinfónica Portuguesa, direcção musical Joana Carneiro.
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