Uma discussão obscena

Sendo o debate político uma marca do ADN de qualquer democracia, há limites de decência que devem ser respeitados e seguidos, em especial por aqueles que, por via da responsabilidade de representação, devem constituir-se como referências de carácter e conduta para todos os cidadãos.

CréditosAntónio Pedro Santos / Agência Lusa

A propósito das vítimas do incêndio florestal que em 17 de Junho último atingiu Pedrogão Grande e os municípios limítrofes, foi desencadeada na opinião pública portuguesa uma discussão obscena sobre o número de mortos provocados pela referida catástrofe.

Responsáveis políticos do PSD e CDS, órgãos de comunicação considerados de referência, comentadores televisivos e alguns outros permitiram-se esgrimir, dia após dia, com a dúvida sobre o número de mortos, disfarçando a sua desfaçatez com a exigência da divulgação da identidade dos mesmos.

Acompanho há 20 anos as mais relevantes catástrofes ocorridas na Europa e no Mundo, no ponto de vista do estudo e investigação. Em algumas delas saltaram para o debate público as estratégias de intervenção de governos e respetivos serviços de emergência nas operações de socorro às populações afetadas, ou a identificação das vulnerabilidades geradoras de situações causadoras das ocorrências em causa. Um debate legítimo e justificado, em especial em sociedades onde está institucionalizada a informação pública como um direito fundamental.

Mas uma discussão a propósito dos critérios de contagem de mortos ou o lançamento da dúvida sobre o número dos mesmos, enquanto vítimas de uma catástrofe, não encontro paralelo em qualquer das situações que estudei.

A Procuradoria-Geral da República divulgou na passada terça-feira a lista completa com a identidade precisa dos 64 mortos do incêndio de Pedrógão Grande e mais duas que estão a ser investigadas, para se concluir pelo nexo de casualidade, ou não, com a referida catástrofe.

Já no início desta semana o diretor da Faculdade de Medicina de Coimbra, membro do conselho científico do Tribunal Penal Internacional e antigo presidente do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, Duarte Nuno Vieira, tinha afirmado ao Público que «o momento deve ser de muita cala e tranquilidade, e devem evitar-se especulações feitas com base e inquéritos feitos por pessoas não qualificadas, por iniciativa individual e que não passa de casuísticas pessoais».

Agora que parece ter sido encerrada a polémica, é oportuno exigir aos dirigentes políticos do PSD e do CDS, bem como a todos os que alinharam pelo mesmo grau de irresponsabilidade, que adotem posturas de mais rigor e seriedade perante situações tão delicadas como esta.

Sendo o debate político uma marca do ADN de qualquer democracia, há limites de decência que devem ser respeitados e seguidos, em especial por aqueles que, por via da responsabilidade de representação, devem constituir-se como referências de carácter e conduta para todos os cidadãos.

Talvez seja pedir muito. Mas ao menos façam um esforço!


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

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