Debate furado

Como é possível que a pirâmide etária do concelho de Bragança tenha dado uma tal cambalhota, passando os maiores de 65 anos a serem bem mais do que o dobro dos menores de 15 anos?

Créditos / Erasmusu.com

Paulo Dentinho é um profissional com provas dadas a quem calhou a animação dos debates na RTP3 relativos às próximas eleições autárquicas para as duas capitais de distrito transmontanas, e como tal, aquele que diz respeito à minha autarquia – Bragança.

Temos que concordar que pedir a um jornalista como ele, habituado que está a desenvolver os grandes temas da política nacional e internacional, para preparar um debate sobre um concelho tão pouco escrutinado pela comunicação social, e que sistematicamente aparece nas notícias quase sempre pelos motivos mais exóticos, não é pedir uma coisa fácil.

Pese embora seja um dos maiores concelhos portugueses em superfície, é das capitais de distrito mais pequenas em termos de demografia, e das mais afastadas dos centros de poder nacionais, geograficamente e não só.

A produção do programa acabou por facilitar, não preparou convenientemente, como lhe era devido, o debate, e mais uma vez, a televisão pública prestou um serviço público de qualidade medíocre. O total desconhecimento revelado pelo jornalista sobre os principais problemas com que se debatem hoje os brigantinos condicionou o desenvolvimento do programa que se pretendia de discussão, mas que de facto, debateu quase nada.

A conversa começou com o jornalista a questionar os intervenientes sobre como poderia cada um deles convencer quem quer que fosse a vir viver para Bragança. Quem quer que fosse mesmo, assim «claramente» definido, podia ser um amigo, um desconhecido, um reformado, um activo, um profissional liberal, um técnico superior, um outro qualquer trabalhador mais ou menos qualificado, tudo servia.

O programa arrancou pois em ritmo de concurso sobre as várias maravilhas do Concelho, e não fora a seriedade da intervenção do candidato da CDU, António Morais, ao alertar para a necessidade de informar sobre a escassa e precária a oferta de emprego local, e os telespectadores ficariam ainda mais intrigados.

Então, como seria possível que tal «paraíso na Terra», tão top em todos os tops, tão «próximo» da Europa «salvadora», com o melhor oxigénio que é possível respirar em Portugal, continuar a despovoar-se? Como é possível que a pirâmide etária do Concelho tenha dado uma tal cambalhota, passando os maiores de 65 anos a serem bem mais do que o dobro dos menores de 15 anos?

Mais de 40 anos de políticas nacionais e locais de direita conduziram a uma aplicação desconexa dos escassos recursos financeiros atribuídos ao concelho e à região, sem qualquer orientação nem plano de desenvolvimento que fosse ao encontro dos reais interesses dos brigantinos.

Como resultado, a generalidade da agricultura, aquela que é familiar, regrediu, o sector dos serviços que a sustentava ressentiu-se, e o incipiente sector secundário não foi capaz de conter tal sangria de emprego e de produção. Com uma gestão autárquica cúmplice da política de direita dos governos do PS/PSD/CDS, as justas reivindicações dos brigantinos foram sendo caladas e/ou desincentivadas mediante intervenções na área urbana, não isentas de erros crassos, mas susceptíveis de impressionar o mais incauto que hoje visita Bragança.

Apesar do despovoamento do centro histórico, é hoje possível percorrê-lo num confortável piso em granito; apesar da cloaca da ETAR estar paredes meias com a muralha da vila velha, ainda é possível admirar a sublime paisagem do castelo; apesar de escassa, ainda é possível desfrutar de uma programação cultural exigente.

É certo que a dinâmica da academia e da investigação associada ao Politécnico de Bragança acolhe estudantes e investigadores; é certo que temos uma (única!) unidade fabril que é responsável por centenas de postos de trabalho; é certo até que a alta do preço da castanha vem-se traduzindo numa corrida a este ouro verde.

Porém, a precariedade da mão-de-obra associada a tal «desenvolvimento» é enorme. Salários baixos e contractos a «curtíssimo termo» leva a que a generalidade dos trabalhadores, mais ou menos qualificados, não possa pensar em fixar-se, criando raízes, fazendo comunidade e construindo futuro.

Na primeira oportunidade, tal como os nossos jovens filhos da terra, partem também à procura de um território mais seguro e acolhedor do que afinal este quase «paraíso na Terra» descrito pelos candidatos à autarquia, com a já citada, única mas honrosa, excepção do candidato da CDU, António Morais.

O restante debate ficou-se por afirmações, com algumas altercações folclóricas pelo meio, sobre aspectos particulares que fazem parte o nosso quotidiano, importantes é certo, mas muito limitados.

Para conseguir um verdadeiro debate tão necessário sobre a circunstância e a justeza das reivindicações dos brigantinos, teria a produção do programa, e o seu condutor, de abandonar o seu olhar exterior, às vezes tão sobranceiro, sobre o que é a realidade do interior norte do nosso País. Não o conseguiu.

A pergunta que eventualmente o Paulo Dentinho pensou ser a pergunta para «um milhão de dólares», valeu afinal um tostão furado! 

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