English para inglês ver

O assunto não é novo mas caiu em desuso porque, a cada ano que passa, estranhamos menos o head of qualquer coisa lá da nossa empresa, o bilhete para um fest indiferenciado dedicado a Lisbon, à earth, à music, à life, às arts ou a qualquer gama de food. E quando damos por nós, done, já não sabemos falar de outra forma.

Créditos / Cultura Mix

Achas que este assunto é overrated? É esse, entre todos, o mais pérfido efeito de nos avezarmos a ligar a box, a falar do CEO e a escrever mails ao payroll.

O assunto não é novo mas caiu em desuso porque, a cada ano que passa, estranhamos menos o head of qualquer coisa lá da nossa empresa, o bilhete para um fest indiferenciado dedicado a Lisbon, à earth, à music, à life, às arts ou a qualquer gama de food. E quando damos por nós, done, já não sabemos falar de outra forma.

Na passada terça-feira fiz a experiência: entre as duas e as três da tarde, registei todos os estrangeirismos empregues na SIC Notícias. Resultado? Numa hora de noticiário, 39 palavras em inglês ‒ quase uma por minuto.

Não contei nesta lista anglicismos de tradução contrafeita como «resiliência», «gentrificação» ou «empoderamento». Apenas as palavras e locuções directamente importadas como mobile, music, fest, fish, start, power, women, play, earth, world, life, download, arts, food, education, future, dream, innovation, change, night, rooftop, sunset, party, beach, sports, Lisbon, CEO, Augmented Reality, touch screen, offline, finance, head, security, operations, knowledge, day, ou environment.

Mas cancelem todas as exéquias à língua de José Saramago: o português não está ligado à máquina e, se a saúde ainda é boa, mesmo que não se recomende, devemo-lo justamente à capacidade de miscigenação com outras línguas. São o árabe, o francês, o tupi, o chinês, o castelhano e o quimbundo que dão corpo e miolo aos dicionários dos puristas.

O português, como todas as línguas, evolui com o povo que o fala, emprestando e levando emprestados vocábulos sem planos de os devolver. Este intercâmbio, quando o é verdadeiramente, é sempre enriquecedor.

Mas o nosso assombro colectivo pelo inglês não traduz contacto verdadeiro com outros povos nem equivale a mais cultura. Trata-se, pelo contrário, de uma relação de submissão a um aparelho culturalmente hegemónico quantitativamente superior mas por vezes qualitativamente inferior.

A tradução inglesa de palavras que o nosso dicionário não precisa de pedir emprestadas é o eco de um processo psicossocial de valorização de marcas, tecnologias e produtos de consumo e de desvalorização da nossa própria cultura. Da mesma forma que os nativos americanos tentavam papaguear a fala e as vestes dos colonizadores europeus, hoje tentamos emular a língua do deus gringo para satisfazer uma ânsia bacoca de modernidade.

Mas usar bordões em inglês no meio de uma frase em português não faz de ti um poliglota. Faz de ti um monoglota americanizado. Dizer officer, management, touch screen, buzz, environment e knowledge não é falar inglês. É falar Zeinal Bava. E só faz de ti um cidadão do mundo na medida em que a McDonalds é mundial.

Línguas são línguas e, intenções à parte, sempre que usas desnecessariamente um estrangeirismo, estás a ferir, não menos desnecessariamente, duas línguas de uma só cajadada cultural.

Totens e bordões

Mas afinal, porque gostamos tanto de enfiar palavras em inglês no meio do nosso discurso? Não há uma resposta simples. A poluição linguística anglófona compreende seis vertentes. A primeira e mais facilmente compreensível diz respeito às novas tecnologias, um campo lexical dominado pelos substantivos que designam todas as invenções oriundas dos EUA. A rapidez a que se sucedem as inovações tecnológicas (router, touch screen, augmented reality, imax, driver…) justifica em parte a adopção da forma inglesa, mas não explica tudo.

A segunda, mais reveladora, é a área financeira. Aqui, o uso do inglês não se cinge à nomeação de novos conceitos. Pretende a mistificação do funcionamento dos «mercados» através da introdução de uma espécie de sânscrito financeiro, uma língua hermética em que os iniciados se reconhecem por CEO, CFO, CIO, CMO, entre dezenas de outros títulos. Aqui, o uso corrente de expressões como funds, ratings ou commodities é puramente esotérico.

O propósito anterior repercute-se, contudo, em todo o mundo do trabalho, que ocupa o terceiro lugar. A frequência da adopção, cada vez mais comum, de palavras como como head, payroll, marketing, guest, innovation e speaker, não corresponde ao grau de internacionalização das empresas, mas à vontade de diluir as contradições de classe numa falsa percepção de modernidade.

Contrariamente às anteriores, a vertente artística, em quarto lugar, é um mero sintoma. A letra de uma canção ou o título de uma exposição não soam melhor em inglês pela fonética ou métrica dessa língua, mas simplesmente porque não a conhecemos tão bem.

Por outras palavras, há expressões artísticas que nos soam mal em português porque a nossa sensibilidade métrica, semântica e fonética é infinitamente mais apurada. Aquilo que nos soa bem a nós a inglês soará muito provavelmente a piroso aos ouvidos de um falante nativo. A única diferença é que nós não notamos.

«Da mesma forma que os nativos americanos tentavam papaguear a fala e as vestes dos colonizadores europeus, hoje tentamos emular a língua do deus gringo para satisfazer uma ânsia bacoca de modernidade.»

Aliada à anterior surge, em quinto lugar, a vertente publicitária que mais visivelmente se manifesta na ideia de que os nomes dos projectos, das marcas, dos restaurantes e das empresas devem, por mais locais que sejam, estar em inglês. Consequência de todas as vertentes anteriores, a lógica que preside a este tipo de escolhas é a equiparação do inglês a uma credencial de futuro, competitividade e globalização.

Em último lugar, merece destaque a vertente coloquial: o uso de adjectivos, substantivos, expressões idiomáticas, interjeições enfáticas e outras locuções no discurso oral e escrito, especialmente por camadas mais jovens da população.

Também produto das cinco vertentes anteriores, este fenómeno, que não é novo e já aconteceu, por exemplo, com o francês, é também ele um sintoma. Contrariamente à aparência, contudo, a hegemonia de uma língua sobre outra língua reflecte unicamente a desigualdade nos meios de produção cultural e não necessariamente a superioridade da cultura produzida.

A língua portuguesa é a maior e melhor expressão de quem nós somos enquanto grei, povo, gente ou sujeito histórico que vem de um lugar colectivo e caminha em direcção a qualquer lado. Devemos acolher e aprender todas as línguas do mundo, do crioulo cabo-verdiano ao mandarim, passando pelo inglês, mas só a nossa língua é mesmo nossa.

Já a avalanche de estrangeirismos que empregamos não é nossa: é dos governos PS, PSD e CDS-PP que, ao longo de 40 anos, foram cortando o orçamento para a cultura e escavando a nossa soberania económica; é dos donos dos jornais que preferem não contratar revisores e contratar precários jornalistas a 600 euros; é dos milionários a quem interessa que as palavras sejam ocas e não queiram dizer nada; é dos industriais de Hollywood que não sabem onde fica Portugal.

Não precisamos dessa língua de estrangeirismos, estrangeira até para ingleses, que usa bordões sem nuances no lugar de palavras e totens ocos no lugar de cultura.

Orgulha-te da tua língua, seja ela qual for.

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