A composição dos tribunais arbitrais, que proferem decisões com a mesma força dos tribunais públicos, resulta da escolha feita pelas partes. São três pessoas, que não são juízes de carreira, uma escolhida pelo privado, outra pelo Estado e uma terceira escolhida pelos outros dois.
O Estado recorre à arbitragem como forma de resolução de litígios administrativos e fiscais, uma situação incompreensível, considerando que, perante a existência de tribunais públicos, deveria dar exemplo e ser o primeiro a recorrer a eles. Aliás, durante a última década o Estado perdeu centenas de milhões de euros do erário público com as decisões dos tribunais arbitrais.
Recentemente, na Assembleia da República, o deputado António Filipe relatou o caso de um consórcio privado que intentou uma execução contra o Estado no montante de 202 milhões de euros, decorrente de uma condenação em tribunal arbitral. O Estado celebrou com o referido consórcio um contrato de concessão, cujo visto foi rejeitado pelo Tribunal de Contas, impedindo desta forma que o Estado executasse o contrato. Refira-se que o acórdão do Tribunal de Contas (TC) negando o visto prévio a um contrato, após trânsito em julgado, é obrigatório para todas as entidades públicas e privadas.
Apesar da decisão do TC, o consórcio apresentou ao Estado o pedido de constituição de um Tribunal Arbitral, com o objectivo de obter a compensação que entendia ser-lhe devida face à recusa de visto por parte do Tribunal de Contas. Em consequência, o tribunal arbitral condenou o Estado a pagar uma indemnização de cerca de 150 milhões de euros. Isto é, o Estado foi condenado a indemnizar o consórcio privado porque não cumpriu um contrato que não poderia cumprir por ter sido declarado ilegal pelo Tribunal de Contas.
O recurso ao Tribunal Arbitral é já uma constante nalgumas concessões. A UTAO, no seu último relatório, aponta que valem já 991 milhões de euros os processos metidos contra o Estado em Tribunais Arbitrais. Hoje é um bom dia para voltar a falar do problema dos Tribunais Arbitrais. Porquê? Porque o Expresso anunciou que o actual primeiro-ministro se candidatou a integrar a elite dos «juízes privados», daqueles que pertencem ao pequeno lote – parece que de 200 indivíduos – que podem ir «arbitrar». Durante os oito anos que António Costa foi primeiro-ministro, o Estado português perdeu centenas de milhões de euros em processos nos Tribunais Arbitrais. O PCP propôs inúmeras vezes que fosse proibido que o Estado aceitasse que os diferendos com os grandes grupos económicos fossem decididos em tribunais arbitrais. O PS preferiu sempre juntar-se a PSD/CDS/IL/CH, e continuou, não só a permitir essa prática como a integrou em novos contratos que assinou, por exemplo na negociata com o Grupo Champalimaud nos CTT. O recurso ao Tribunal Arbitral é já uma constante nalgumas concessões. A Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), no seu último relatório, aponta que valem já 991 milhões de euros os processos metidos contra o Estado em Tribunais Arbitrais. Nas PPP rodoviárias, entram novos processos todos os anos. Foi a um Tribunal Arbitral que a ANA foi pedir para ser indemnizada em 300 milhões de euros por causa da pandemia, e isto apesar dos lucros impressionantes que teve desde a privatização (onde, recorde-se, a Vinci já ganhou mais do que aquilo que pagou pela empresa). Foi a outro Tribunal Arbitral que os CTT foram buscar mais de vinte milhões para «equilibrar a concessão». Foi ainda um Tribunal Arbitral que condenou o Estado português a pagar 202 milhões num caso, e 30 milhões noutro (enquanto decide de um pedido global de 445 milhões), com o Estado condenado, em ambos os casos, por cumprir decisões do Tribunal de Contas. Casos que levaram Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), a disparar: «Não está certo, não pode estar certo, que o Estado seja condenado por um tribunal arbitral, secreto, sem controlo de legalidade do Ministério Público, a pagar a uma empresa privada centenas de milhões de euros por violação de uma cláusula contratual que o Tribunal de Contas "já tinha considerado nula"». «Durante os oito anos que António Costa foi primeiro-ministro, o Estado português perdeu centenas de milhões de euros em processos nos Tribunais Arbitrais.» O alastrar do mesmo princípio que dá origem aos Tribunais Arbitrais foi, por exemplo, o que deu origem ao processo Alexandra Reis (onde a sua indemnização foi decidida por negociação entre as partes e não pela aplicação da Lei) e à indemnização paga a David Neeleman (acertada entre advogados após negociação, sem se preocuparem com a letra da lei). A comoção pública que estes casos geraram deveria ter servido para travar esse tipo de procedimentos. Mas não. A aliança do costume não quis tirar essa conclusão, que o PCP propôs ficasse expressa no Relatório Final, pretensão que foi chumbada por PS, PSD, CH e IL. Se a justiça privada pode ser aceite para decidir casos entre interesses privados – principalmente se ambas as partes aceitarem recorrer a essa forma de justiça sem qualquer tipo de coação – ela é completamente inaceitável na decisão de processos contra o Estado. Pela sua própria composição (um Tribunal Arbitral são três pessoas, uma escolhida por cada parte, e uma terceira escolhida pelas duas primeiras) e pelo princípios de funcionamento (no fundo, uma negociação que tem em conta a lei mas não se destina a fazer aplicar a lei e da qual não há recurso) estes Tribunais tendem a encontrar soluções que são lesivas para o Estado português. Porquê? Porque o Estado português se põe a jeito, e quem o devia defender está submetido a outro tipo de interesses – sejam eles de classe ou individuais. «Foi a um Tribunal Arbitral que a ANA foi pedir para ser indemnizada em 300 milhões de euros por causa da pandemia, e isto apesar dos lucros impressionantes que teve desde a privatização (onde, recorde-se, a Vinci já ganhou mais do que aquilo que pagou pela empresa).» E estes processos são, no mínimo, um convite à corrupção: Num processo hipotético de uma concessionária contra o Estado, esta não tendo direito a nada pede 300 milhões; Se o Tribunal nada lhe der, nada há para distribuir; Se o Tribunal lhe der 50 ou 100 milhões, uma parte é para remunerar os intervenientes no processo; De forma legal (os honorários são muitas vezes calculados com base no tamanho do processo) ou de forma ilegal (através de envelopes, cargos remunerados, convites para outros processos, etc.). Esta é mais uma fonte de corrupção que cresce a olhos vistos. E que só não vê quem tem interesse em não ver. Os rendimentos dos «árbitros» ultrapassam – no caso dos mais activos – os 150 000 euros por ano, e é perfeitamente justificável que um ex-primeiro-ministro queira aumentar os seus rendimentos pessoais (o salário anual de primeiro-ministro é de cerca de metade daquele valor). Que vá integrar um sector que durante oito anos ele próprio beneficiou e protegeu é o reflexo da actual promiscuidade entre os interesses privados e públicos, e a explicação de muitas das decisões que são tomadas e resultam incompreensíveis. Que – diz o Expresso – dois reaccionários do calibre de António Lobo Xavier e José Miguel Júdice tenham subscrito a candidatura de António Costa a integrar esse grupo, é também, e só, sinal do verdadeiro tronco onde assenta a reconstrução do capitalismo monopolista em Portugal: o trio PS/PSD/CDS, agora com dois novos penduricalhos, um dos quais finge ser contra o sistema. 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Tribunais Arbitrais: Justiça privada, causas públicas e corrupção
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Em 2023, na sessão de encerramento do XII Congresso dos Juízes Portugueses, com a presença da então ministra da Justiça, Manuel Soares, à época presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, alertava: «Não está certo, não pode estar certo, que o Estado seja condenado por um tribunal arbitral, secreto, sem controlo de legalidade do Ministério Público, a pagar a uma empresa privada centenas de milhões de euros por violação de uma cláusula contratual que o tribunal de contas já tinha considerado nula».
A verdade é que, tal como afirmou o deputado comunista, se esta forma privada e opaca de composição de litígios por via de arbitragem ad hoc, envolvendo em regra muitos milhões de euros de dinheiros públicos, não é um escândalo, o que será um escândalo. Entretanto, é público que o PCP, por mais de uma vez, apresentou na Assembleia da República propostas para proibir o Estado de recorrer à arbitragem para a resolução de litígios que envolvam dinheiros públicos. Propostas chumbadas por deputados de PS, PSD, CDS, IL e Chega, que, conforme sublinhou António Filipe, «no dia seguinte, voltam a ser todos contra a corrupção, a dizer que o problema é a falta de regulação do lobbying, a bater com a mão no peito ou a exigir limpezas não se sabe bem de quê, porque quando se aponta a sujidade fazem de conta que não a vêem, porque quando se tenta tocar em interesses dos grandes negócios privados, aí é tudo limpinho».
«no dia seguinte, voltam a ser todos contra a corrupção, a dizer que o problema é a falta de regulação do lobbying, a bater com a mão no peito ou a exigir limpezas não se sabe bem de quê, porque quando se aponta a sujidade fazem de conta que não a vêem, porque quando se tenta tocar em interesses dos grandes negócios privados, aí é tudo limpinho»
António Filipe, deputado do PCP
Por outro lado, o lobbying, «representação organizada de interesses», que agora surge, pela mão de alguns, como um remédio para os males da corrupção, não passa de uma, eventual, nova frente de negócio para agências de comunicação ou grandes escritórios de advogados com o objectivo de vender serviços e influenciar os decisores políticos no sentido dos interesses dos seus clientes.
Talvez, por isso, a regulamentação do lobbying esteja longe de ser a panaceia no combate à corrupção prometido pelo Governo que, na chamada Agenda Anticorrupção, deixa de fora questões como o recurso aos tribunais arbitrais, o combate às chamadas portas giratórias e aos paraísos fiscais.
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