A sucessão dos acontecimentos podem derivar na fascização da política norte-americana em termos incontroláveis. Eles continuam a ocorrer e vive-se um ambiente de pré-ruptura que comporta a violência.
A «tese» da inevitabilidade da violência em larga escala é apregoada principalmente por organismos e comentadores de extrema-direita. O nome que demos em cima a esta crónica foi roubado a um deles.
Refiro também, entre outros, três autores norte-americanos de direita que davam conta há dias no jornal digital Politico de um seu ensaio sobre uma tendência crescente de disposição entre eleitores democratas e republicanos em aprovarem a violência em função do resultado das eleições presidenciais...
1. Quando em 25 de Maio George Floyd foi assassinado nas ruas de Minneapolis, a Covid-19 tinha começado a devastar a população mas não ocupava ainda o centro das atenções. O assassinato gerou em centenas de grandes e pequenas cidades uma revolta, reprimida, mas também geradora de violência contra lojas, mobiliário urbano, carros e símbolos históricos destruídos, e também contra agentes da polícia. A componente antirracista, mas também anticapitalista, foi expressa nestas manifestações pelo Black Lives Matter-BLM (As vidas dos negros contam) e pelos Antifas.
O impacto internacional dessas manifestações e a capacidade que tiveram em alguns estados para alcançar apoio popular muito vasto, tornaram-no um fenómeno político não descartável para as eleições presidenciais. Mesmo antes do início dessas manifestações, quer o BLM, quer outros movimentos foram chorudamente financiados pelas fundações que apoiam a campanha dos democratas, fundações essas formadas por grupos monopolistas, que também os fazem fugir aos impostos para canalizar elevado financiamento ilegal de campanhas eleitorais.
O atenuar dessas manifestações por parte do BLM pode ter correspondido a que o Partido Democrata o tenha empalmado, neutralizando as suas reivindicações anticapitalistas (que davam maior consistência à luta antirracista) em troca do apoio a Joe Biden.
Apesar desta miscelânea, uma corrente mais conservadora do Partido Democrata foi-se distanciando do «esquerdismo», por eles atribuído à influência do movimento de Bernie Sanders, afirmando que o Partido Democrata de J.F Kennedy, Lyndon Johnson e Jimmy Carter já não existe.
Que teria sido sequestrado por um movimento progressista radical de esquerda que estaria a destruir o partido por dentro. E chegaram alguns já ao ponto de reclamar que o actual Partido Democrata se passe a chamar Marxista Democrata para não iludir os seus apoiantes. E usam um paralelismo alimentar: «Se a indústria frigorífica é obrigada a divulgar totalmente o que se passa nas salsichas, por que não segue o Partido Democrata os mesmos padrões?»
2. Referindo-se à questão da violência, um comentador de extrema-direita justificava-a no Counter-Current nos seguintes termos: «Demoramos a considerar a violência uma opção. Afinal, ao contrário dos liberais, realmente temos princípios e não queríamos ser como eles. Mas eles nos levaram a este ponto, e é difícil ver como pode haver qualquer debate sobre isso. Foram meses a vermos as nossas cidades serem incendiadas. Meses da nossa história a serem destruídos. Sofremos meses de bloqueios draconianos e regras arbitrárias impostas por governadores e presidentes de câmara democratas. Meses depois de ouvirmos que nos tínhamos que abrigar, enquanto o BLM tinha rédea solta para saquear e queimar. Meses ouvindo que não temos o direito de nos defender, que se você é branco, você é automaticamente culpado. São incontáveis as vidas e negócios destruídos.»
Este apelo é de um populismo que recorre à mentira e ao medo, mas que funciona. E daí para a narrativa noticiosa do «ouvi dizer» vai um pequeno salto. Até em Nova Iorque, em bairros onde tinham ocorrido manifestações do Black Lives Matter (BLM), estaria a registar-se um crescimento do armamento individual e uma corrida às carreiras de tiro para apurar o desempenho com armas automáticas...
Dias antes deste ensaio, um ex-procurador federal publicou um artigo de opinião no jornal digital The Hill, que despudoradamente intitulou «Por que devem os democratas enfrentar o incitamento à violência da extrema-esquerda». Nele afirma que grupos de extrema-direita, especialmente supremacistas brancos e terroristas, como os boogaloos, representariam de longe a maior ameaça de violência.
Mas referiu que estes, ou quaisquer outros «extremistas de direita», se «tomassem conta das ruas e se comportassem como os BLM e o Antifa –saqueando, queimando, atacando, ameaçando ou mesmo bloqueando apenas o trânsito – eles teriam sido esmagados em 24 horas». Todo o poder das forças policiais estaduais e locais, e a aplicação da lei federal teriam sido desencadeadas contra eles. E rematava que os polícias não teriam agido de maneira tão branda, como no caso das manifestações de esquerda, e que os «direitistas» acabariam mortos ou feridos, e os sobreviventes teriam enfrentado extensas acusações de diferentes crimes.
E sempre foi dizendo que afinal – e contradizendo-se de forma aparente – a «violência de direita» não é a maior ameaça e que a violência de esquerda está a acontecer com a aprovação e o apoio, financeiro ou não, do... establishment.
Mais ameaçador, um relatório, intitulado «Network-Enabled Anarchy», preparado pelo Network Contagion Research Institute (NCRI), sugeriu que as redes «anarquistas de esquerda» podem ter montado uma campanha coordenada online que desempenhou um papel na violência que prejudicou os protestos pacíficos pela justiça social em Julho em Portland e Eugene, em Oregon, Seattle, Washington e Richmond, Virgínia.
«A actividade táctica, incluindo o uso de lasers, projécteis, incêndios criminosos, explosivos improvisados e fogo-de-artifício, mostrou uma uniformidade notável em todas as quatro cidades.
No artigo de opinião no The Hill, o autor propõe que os democratas talvez devessem reconhecer que a ameaça representada pelo incitamento da «extrema-esquerda» é que estava a dar credibilidade à narrativa de Trump de que as cidades administradas pelos democratas estão alegadamente a arder (quando não o estão, de facto) por causa da violência da esquerda e que as suas bizarras teorias de conspiração, como a de que as pessoas «das sombras obscuras» supostamente controlariam Joe Biden (referência ao «estado profundo» dos EUA que desde 1973 faria parte da estrutura de poder dos EUA), e que incluía os presidentes de grandes grupos monopolistas e das respectivas fundações.
Vários são os comentadores reaccionários que convergem na convicção de que a violência da «esquerda» continuará e virá mesmo a aumentar e a concorrer para um clima de guerra civil.
No entanto, para eles, os «conservadores brancos» estariam cada vez mais dispostos a desafiar os esquerdistas nas ruas. O combate à «retórica anti-branca» contínua – que não daria sinais de diminuir – também aumentaria a radicalização à direita, podendo assistir-se a casos de mini-secessões, em que vilas, cidades e condados que são, na sua maioria, brancos e republicanos começariam a resistir ao poder dos governos estadual e federal (por exemplo, não fazendo cumprir certas leis).
O que tornaria partes do país difíceis de governar. Essas áreas tornar-se-iam uma Meca para os conservadores brancos. Eles cresceriam em termos populacionais e em alcance geográfico, à medida que os recém-chegados fixassem residência nos limites desses condados e dessas cidades. Cansados dos olhares que receberiam, muitos não-brancos e liberais iriam para outros lugares. Em resumo, haveria secessões de facto antes de serem oficializadas.
3. Se referimos estes estudos, relatórios e opiniões e palpites individuais, é porque nos parece que são representativas de estados de espírito, como se pode testar através de uma consulta a vários blogues e jornais digitais.
Há muitos meses que diferentes actores do Partido Democrata, mas também do Partido Republicano, ou independentes deles, vêm a dedicar-se a adivinhações sobre os cenários políticos mais ou menos caóticos no pós-3 de Novembro.
Se Trump perdesse, inventaria uma rede de argumentos jurídicos e políticos para se manter no poder. Se Trump ganhasse, antes de contados os votos por correspondência, e se, depois destes contados, Biden acabasse por ser declarado vencedor, Trump não acataria os resultados, argumentando que há muito tempo teria avisado contra a votação por correspondência, sujeita a um alegado descontrolo sobre a sua aceitação em urna, que poderia levar a uma fraude eleitoral de grandes dimensões.
E Trump não hesitaria, também, em recorrer a parte das forças armadas e dos serviços secretos e de espionagem, que lhe estariam afectos, em articulação com os bandos armados civis a quem aconselhou, no debate com Biden, a manterem-se prontos e atentos, para se articularem com a força militar, de inteligência e de contra-informação, necessária à realização de um golpe, antes da tomada de posse em 20 de Janeiro ou mesmo depois.
É claro que, face a tais adivinhações, o Partido Democrata tem estado a fazer passar a ideia de que só uma vitória esmagadora de Biden interromperia esta deriva.
Seja como for, apesar de um reconhecimento de que republicanos e democratas são vinhos maus de uma mesma cepa, com uma longa história de más políticas para os norte-americanos no plano interno e no plano externo, instalou-se a ideia do «voto útil» em Biden para derrotar Trump. Os comunistas norte-americanos optam pelo #VoteAgainstFascism.
4. A poucos dias das eleições há quem pergunte se é possível parar a tendência para um desfecho eleitoral violento? É difícil dizer.
Pela nossa parte, e face à informação e comentários a que tivemos acesso:
– Trump, há meses que está atrás de Biden nas sondagens. E isso tem as suas causas, que são suficientemente sólidas para resistir a uma «reviravolta», como nas últimas eleições com Hillary Clinton. Entre elas estão:
– O crime que constituiu a falta de combate à covid-19 e o comportamento irresponsável de Trump em público e junto do seu staff e do pessoal convidado para diferentes tipos de reuniões na Sala Oval.
– A questão que se arrasta, de uma eleição para a seguinte, de um sistema eleitoral muito pouco democrático, que é acompanhada pela desconfiança em relação a muitos actores políticos.
– Mas também à forma como pesa a comunicação social dominante, que acentua as suas preferências partidárias numa polarização extrema das mentiras e insinuações e de lavagem da roupa suja, que mantém arquivada para oportunamente a usar, como se tivesse origem em sucessivas descobertas de «fontes» no dia-a-dia.
– Ou ainda a nomeação duma nova juíza para o STJ em final de mandato vai desequilibrar dramaticamente, num sentido reaccionário, as deliberações deste tribunal durante muitos anos, já que os mandatos dos juízes são vitalícios.
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