|Manuel Gouveia

Fertagus – E corrigir o modelo, não?

Quando, em 2019, a Fertagus percebeu que a alternativa era entre ser-lhe retirada a concessão, integrando a oferta na rede da CP Lisboa, ou aceitar integrar o passe social, optou pela segunda hipótese.

CréditosRui Minderico / Agência Lusa

Existe um grave problema de oferta na Linha explorada pela Fertagus. O que até agora nem a Fertagus (naturalmente) nem a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) e o Governo (infelizmente, também naturalmente) quiseram ver é que os actuais problemas deixam exposto o erro profundo que é o próprio conceito de uma concessão de exclusividade no seio de uma rede ferroviária metropolitana.

Antes de mais – e para os mais distraídos – recordar que foi o Estado quem construiu toda a rede, quem comprou todos os comboios, e quem pagou um e outro investimento. A única diferença, para aqui não relevante, é que o quase todo o material da CP ficou como dívida da CP, e todo o material da Fertagus lhe foi oferecido para alugar.

Nos primeiros anos da exploração ferroviária da Fertagus, a operação tão pouco funcionava bem. Mais uma vez para os mais esquecidos, recordo que a Fertagus funcionava fora do passe social, e com preços que eram, em média, 75% superiores aos da CP. Isto afectava e muito a procura, e sobrecarregava economicamente as famílias que se viam obrigadas a usar esta concessão. 

Quando, em 2019, a Fertagus se viu perante a espada e a parede, e percebeu que a alternativa era entre ser-lhe retirada a concessão, integrando a oferta na rede da CP Lisboa (que era o que deveria ter acontecido, não fora as costumeiras cedências do PS), ou finalmente aceitar integrar o passe social (e sendo regiamente indemnizada por isso), esta optou pela segunda hipótese, e a procura cresceria muito, e só não cresceu mais rapidamente porque entretanto se abateu sobre o País a pandemia. Passada esta, a procura cresceu naturalmente, e deixou exposta a outra grande fragilidade desta concessão: o quebrar uma resposta e um funcionamento que só tem lógica em rede.

A Fertagus, com o apoio político de que sempre gozou no PS e PSD, começou a tratar de roubar à CP alguns comboios para poder aumentar a sua oferta. Só que como os governos andam há 20 anos a adiar a compra de comboios para a CP1, esta só pode ficar com menos comboios se reduzir a sua própria oferta. Para preparar este passo, puseram a circular as costumeiras mentirolas, desta vez que a Fertagus só queria o material encostado da CP (que, afinal, estava ao serviço e tinha acabado de ser modernizado em 1,4 milhões cada unidade). 

«A Fertagus, com o apoio político de que sempre gozou no PS e PSD, começou a tratar de roubar à CP alguns comboios para poder aumentar a sua oferta.»

No debate que se seguiu, o PCP e os ferroviários apontaram para a solução óbvia: retirar a exclusividade do serviço à Fertagus, permitindo que algumas famílias da CP possam servir aquela Linha e aumentar-lhe a oferta. Os exemplos práticos de soluções a estudar vieram das próprias organizações de ferroviários: os Azambuja-Alcântara podiam ser prolongados ao Fogueteiro, encontrando uma solução para ligar Alcântara à rede; alguma oferta Sintra-Rossio podia passar a ser Sintra-Coina; com material rebocado, seria possível criar uma família que servisse Alcácer e Grândola na ligação a Setúbal e a Lisboa, e simultaneamente aumentando a oferta na Linha sobre o Tejo. É assim que funciona o resto da rede, em rede, com excepção da Linha de Cascais (e por isso estão a ser gastos uns largos milhões de euros para colocar a Linha de Cascais compatível com a restante rede).   

Mas aqui nem é preciso gastar dinheiro. Só mudar o modelo. Acabar com a exclusividade da Fertagus e perceber que é a cooperação e o plano que funcionam na ferrovia. E aqui é que a porca torce o rabo. Isso é a única coisa que PS e PSD (e a AMT, que é dirigida por uma antiga Secretária de Estado dos Transportes do PS) bem como os restantes cultistas da fé liberal (IL e CH) não estão disponíveis a reconhecer: a concessão à Fertagus é um entrave a uma oferta de qualidade na ligação sobre o Tejo. 

Este modelo promete concorrência, mas afinal coloca uma rolha no meio do sistema. Qual concorrência se a Fertagus tem a exclusividade? Na Amadora, passam comboios para Vila Franca e para o Rossio, duas famílias bem distintas para destinos bem distintos. O que acrescentaria variedade era também passar um comboio para o Fogueteiro, ou Coina, ou mesmo Setúbal. Não passa por causa da exclusividade, da rolha. E é por causa dessa rolha, colocada no verdadeiro gargalo que é a ponte 25 de Abril, que a oferta não cresce como pode crescer (ela só crescerá o que deve crescer quando se comprarem mais comboios).   

E ela pode crescer colocando de imediato a CP a operar, a par da Fertagus, na oferta urbana sobre o Rio Tejo. Quer com material rebocado, quer usando as actuais automotoras, ajustando os horários e a oferta com novas famílias de comboios. De facto, de Campolide ao Fogueteiro são 20 minutos, apenas mais 15 e 13 minutos que as ligações ao Rossio ou a Alcântara.

As sinergias ainda aumentariam mais se a Fertagus fosse, como devia, integrada na CP. Desde logo, as 30 automotoras públicas (18 usadas pela Fertagus, 12 usadas pela CP) poderiam passar a ter uma reserva2 em comum, e não duas reservas como acontece hoje. Mas isso já seria esperar demais do bando de teimosos liberais que desgovernam Portugal3.  

  • 1. Por inacreditável que lhe possa parecer, aqueles comboios que a CP decidiu comprar, que primeiro foram anunciados em 2009 e cancelados em 2010, que depois foram anunciados em 2019, dos quais já três Ministros das Infraestrutura fizeram anúncio público (Pedro Nuno dos Santos, Galamba e Pinto Luz) continuam sem estar sequer em construção, pois estão travados em providências cautelares que o Governo ultrapassaria com um simples despacho de utilidade pública, que se recusa a fazer.
  • 2. Material circulante que fica de reserva para entrar ao serviço se houver alguma avaria ou outro percalço.
  • 3. Os crentes na mesma fé e dogma, em Inglaterra, demoraram 40 anos a reverter a liberalização que conduziu ao desastre do sistema ferroviário do Reino Unido (tão caro quanto inseguro e ineficaz). Trabalhemos para poupar a Portugal o mesmo destino.

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