Em 31 de Março do próximo ano realizam-se eleições presidenciais na Ucrânia. Segundo uma sondagem do Instituto Sociopolis divulgada no fim da semana passada, o actual presidente, Piotr Poroshenko, não é desejado para continuar nessas funções por 81% da população.
Poroshenko teria 8% dos votos numa primeira volta das presidenciais, o que estaria longe de lhe permitir aceder a uma segunda volta. A referida sondagem deu como provável vencedora a candidata Iulia Timoshenko.
Acusada em tempos, pelos seus críticos, de ser pró-russa, Timoshenko respondeu que «tento apenas defender os nossos interesses de forma a que encontremos um equilíbrio no nosso relacionamento com a União Europeia (UE) e a Rússia»1. Em 2010 foi uma das mais duras críticas do presidente Viktor Ianukovich, acusando-o de estar a vender o país à Rússia em troca de estabilidade política2. Timoshenko esteve presa dois anos e meio, entre 2011 e o início de 2014. Quando foi libertada, no auge do golpe que afastou o presidente Ianukovich, pronunciou-se por uma «Ucrânia membro da União Europeia e membro de pleno direito da NATO»3.
Em 2002 fundou o Bloco Iulia Timoshenko, que teve 7,2% dos votos nas eleições legislativas ucranianas desse ano.
Iulia Timoshenko foi designada primeira-ministra interina em 2005, na presidência de Viktor Iuchenko. Depois de prolongadas negociações sobre a composição do gabinete, ela acabou por ser confirmada como primeira-ministra pelo parlamento ucraniano (Verhovna Rada, "Conselho Supremo") por uma maioria absoluta de 373 votos, muito acima dos 226 votos necessários. Em 2007 foi novamente eleita como primeira-ministra.
Nas eleições presidenciais de 2010, ficou em segundo lugar, perdendo para o candidato de oposição Viktor Ianukovich.
Desde 2011 esteve presa, acusada de abuso de poder, numa decisão que os meios ocidentais consideraram controversa. Em 2014, depois do golpe de direita e extrema-direita que derrubou Ianukovich, foi libertada.
Candidatos diabolizados por Kiev
Esta e outros candidatos potenciais desde há um ano que têm vindo a ser diabolizados por Kiev com expressões como as utilizadas por Aleksei Arestovich, em entrevista ao Fakty.ua:
«À medida que se aproximam as eleições presidenciais e para a Suprema Rada, a Rússia vai usar cada vez mais recursos para obter o controle político e económico da Ucrânia». E «agora muitos querem que [Piotr] Poroshenko saia. Posso dizer com certeza absoluta: os outros candidatos, com exceção de Poroshenko, são da Rússia, infelizmente. Se vencer alguém que não seja Poroshenko, vão ser lançadas ideias sobre a responsabilidade do “regime de Poroshenko no início da guerra no Donbass, vão começar a reconciliar a Rússia com a Ucrânia. E, no final, Putin vai obter uma Ucrânia prontinha dentro de um ou dois anos. Com tal cenário, o nosso país ficaria muito dependente da Rússia: obrigar-nos-iam a comprar gás, petróleo e armas russas. E assim, a Ucrânia vai perder a sua independência». Por fim: «a situação será horrível: o Kremlin vai desestabilizar activamente a situação, em especial o Sul», concluiu Arestovich.
De facto, a extrema-direita e os fascistas, no poder desde o golpe de estado de Maidan, em 2014, cometeram uma série de sucessivas provocações e crimes, com as costas aquecidas pelos EUA e a NATO. Desde os assassinatos de centenas de ucranianos de origem russa, muitos deles enterrados em valas comuns – como revelaram os próprios autores desses crimes – até ao assalto violento dos organismos do estado e de órgãos de comunicação social; desde os muitos saneamentos acompanhados de agressões até à política económica, que não lhe ficou atrás, através da compra reiterada de armas aos EUA, o esfrangalhar da economia e o descurar do bem-estar da população – a qual, nesta altura do ano, em muitos apartamentos da capital, já não dispõe de aquecimento…
A «necessidade» de uma provocação à Rússia por parte de Poroshenko
Neste quadro aventureiro, Poroshenko precisava de provocar a Rússia, uma vez mais, mas em moldes que pudessem angariar novos e mais amplos apoios no Ocidente. A segurança russa tem longa experiência na prevenção destas provocações. Poroshenko está pronto para sacrificar toda a sua frota e as respectivas tripulações. Mas a Rússia, no quadro que ocorreu no passado dia 25, adquire o direito de responder. E o Ocidente já sabe que as respostas da Rússia são de relâmpago e inesperadas (assimétricas).
Os próprios EUA uma vez tentaram entrar nas águas territoriais da URSS, perto de Sebastopol, na Crimeia, porto onde aquela tinha parte essencial da sua marinha de guerra, invocando também, em apoio das suas acções o «direito de passagem livre». Naquela época, isso terminou com um barco de patrulha soviético a atacar um navio de combate americano. Já havia precedentes e Poroshenko e os seus chefes militares não o deveriam ignorar.
A acção de Kiev violou os artigos 19 e 21 da Convenção da ONU sobre o Direito do Mar, ao fazer entrar em águas territoriais russas, sem permissão, três embarcações suas, e revelou incapacidade de responder às exigências legais russas de não realizar manobras perigosas.
Esta acção também não se compagina com o tratado de 2003, que estabeleceu que a Rússia e a Ucrânia tinham liberdade de direitos de navegação no estreito de Kerch, fornecendo regras definidas, a serem aplicadas através duma banda marítima estreita.
Na realidade, a referida convenção das Nações Unidas sobre a lei marítima estipula o direito de passagem de navios de guerra pelas águas territoriais de outro Estado. É o chamado «direito de livre passagem» e, para sua aplicação, basta uma simples notificação. Esta mesma convenção estipula o direito de qualquer estado de fechar as suas águas territoriais, temporariamente ou não, ou introduzir outras restrições nesse regime.
Isso foi o que a Rússia fez no Estreito de Kerch, accionando a segurança da navegação e da ponte de Kerch, que um oficial ucraniano e outros oficiais subalternos ameaçaram por em causa com o envio de cinco embarcações, saídas de Odessa, para aportarem em dois portos ucranianos do Mar de Azov. Os russos dispararam, com seria normal nesta situação, e detiveram a tripulação de três dos navios, tendo três dos seus marinheiros ficado feridos e estando a ser tratados no hospital de Kersh. Dois outros navios de guerra ucranianos regressaram à base de Odessa depois da reação dos barcos-patrulha russos.
E foram as próprias autoridades ucranianas que revelaram que seguiam a bordo vários oficiais dos seus serviços secretos, que obviamente conduziam a provocação, bem como várias armas ligeiras e metralhadoras.
Alguns dos detidos, referiram nos interrogatórios – e gravaram depoimentos em vídeo, no mesmo sentido – que tinham recebido ordens superiores para montarem a provocação. Os dirigentes ucranianos tentaram, pois, obter uma posição política vantajosa com derramamento de sangue dos seus marinheiros. Kiev deixou de ter compaixão pelo seu povo há muito tempo…
Desde há alguns anos que a passagem, durante o Verão, de navios ucranianos através do Estreito de Kerch, observando todas as regras que agora Kiev critica, enfraquecem a posição ucraniana nesta aventura. De facto, a própria Ucrânia reconheceu o direito da Rússia de introduzir restrições à passagem de navios através do Estreito de Kerch e obedeceu a essas regras ainda no Verão passado. E, por isso, que a histeria de hoje não parece convincente.
Desta vez, violaram normas internacionais e acordos entre os dois países sobre a entrada e saída de navios entre o Mar de Azov e o Mar Negro.
Logo de seguida, Poroshenko decretou a lei marcial (estado de excepção). Na Rada (assembleia legislativa) a oposição conseguiu reduzir a vigência da lei de 60 para 30 dias e garantir, sem condicionantes, a realização das eleições nas datas previstas.
Ainda assim, o compromisso alcançado na Rada jogou a seu favor, mesmo que isso possa ser apresentado pela oposição como um recuo. O mais importante é que a lei marcial foi introduzida, embora parcialmente. Agora ele tem a oportunidade de a usar nos seus decretos com as palavras «com base na lei marcial», e poderá exigir o que quiser.
Os efeitos e os riscos da lei marcial
É preciso ter em conta que falamos da Ucrânia, onde, como é sabido, desde a presidência de Yushchenko, as leis apenas se cheiram para sentir o odor do seu espírito e não para cumprir o que, na sua letra, estipulam.
Assim, depois da lei marcial e tentando adivinhar as acções adicionais de Poroshenko e da oposição, é muito provável que esta finja que não estará em vigor a lei marcial… Mas, como se costuma dizer, se Poroshenko for derrotado nas urnas, «enquanto o pau vai e vem, folgam as costas»…
Se o terror oculto da SBU (serviços de segurança) e dos «esquadrões da morte» nazis já não parecem suficientes para assustar a oposição, esta precisa mais do que nunca de actuar em condições democráticas, para bem do seu povo e por relações normais com a vizinha Rússia.
Na prática, esta medida dará poderes ao Governo para limitar as manifestações públicas, interferir com o que é divulgado pelos media, obrigar os cidadãos a realizar «tarefas socialmente necessárias», como trabalharem em instalações de defesa.
A lei marcial, que nunca foi declarada na Ucrânia depois na anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, nem durante a guerra que ainda se prolonga no Leste do país com forças militares de duas regiões (Donbass e Donetsk) que em referendo declararam a sua independência de Kiev – e que mantêm poderes regionais próprios, eleitos, forças de ordem e de defesa próprias, certamente com o apoio do governo russo – poderá querer aplicar-se a elas, o que poderia elevar muito as consequências do conflito, que já provocou mais de dez mil mortos desde o seu início, apesar de silenciado na comunicação social ocidental.
Introduzir a lei marcial ou o estado de emergência é sempre mais simples do que cancelá-lo. Os órgãos governamentais acostumam-se a trabalhar em regime descontrolado e a burocracia e os políticos começam a entender o encanto de uma ditadura, porque fazem parte dessa ditadura. O trabalho da oposição é complicado, e vai perdendo a sua influência. Assim, prolongar a lei marcial será mais natural, para Poroshenko, do que pôr-lhe fim.
O que os EUA e a NATO querem da Ucrânia
A Ucrânia divide uma fronteira terrestre e marítima de quase 1500 milhas com a Federação Russa, a mais longa fronteira ocidental com o país.
A NATO quer que a Ucrânia seja «o eixo decisivo dos planos dos EUA» e dos seus aliados da aliança, para criar «um cordão militar que separe a Rússia da Europa», componente de uma estratégia sinistra que arrisca o confronto Oriente/Ocidente.
Vladimir Putin referiu, porém, que «a aparição nas nossas fronteiras de um poderoso bloco militar [...] será considerada pela Rússia como uma ameaça directa à segurança de nosso país», acrescentando: «os mísseis russos terão como alvo a Ucrânia se esta ingressar na NATO ou permitirem que o escudo de defesa antimísseis de Washington seja instalado no seu território».
Histeria anti-russa
A histeria anti-russa continuou nos dias seguintes à provocação dos navios à entrada do Mar de Azov, com a manifestação de arruaceiros nazis nos últimos dias, com elevada capacidade de destruição, fazendo de um centro comercial o seu alvo. Os ocupantes usavam máscaras negras e ostentavam a bandeira da organização juvenil militante "Sokil" (Falcão), uma ramificação do partido de extrema-direita Svoboda (Liberdade). O Svoboda opõe-se violentamente à influência russa e à «decadência» do Ocidente liberal, e está ligado a grupos neonazis na Ucrânia. Inicialmente conhecido como o partido nacional-social da Ucrânia, os políticos do Svoboda descreveram o partido como «a última esperança da raça branca», citando com aprovação o Mein Kampf em reuniões de conselho e organizando acampamentos de verão para crianças, treinando os jovens para jogar, escalar montanhas e disparar sobre os russos.
No centro comercial, a polícia escoltou alguns dos ultranacionalistas para fora do prédio, mas muitos ficaram lá dentro, como relatou o Korrespondent.net. Lá dentro culparam empresários russos pelo conflito do seu país com a Rússia, e gritaram: «exigimos acabar com o financiamento do terrorismo e a morte de soldados ucranianos por dinheiro que está a ser retirado da Ucrânia através deste centro comercial» e «fora com os negócios russos na Ucrânia!».
Há dois dias, Poroshenko decidiu proibir a entrada de homens russos, com idades entre os 16 e os 20 anos, justificando a medida com a necessidade de evitar a criação de «exércitos privados russos». Na prática vai impedir a reunificação na época natalícia de famílias, pois muitos cidadãos têm as suas famílias na Ucrânia. O governo russo já declarou que não iria responder na mesma moeda.
Para além deste episódio ficaram para trás operações como a da falsificação do assassinato do jornalista russo Arkady Babchenko, a pretexto de ser anti-Putin, que acabou por ser desmascarada internacionalmente.
O caso da Igreja Ortodoxa Ucraniana
Nesta situação há que estar atento às consequências da lei marcial para a Igreja Cristã Ortodoxa Ucraniana.
É muito importante para Poroshenko controlar uma estrutura que é autoritária e ramificada e que pode ser usada como um mecanismo para arrebanhar votos. Poroshenko sabe muito bem que nas aldeias as pessoas geralmente votam «de acordo com o que o Padre diz durante o culto da igreja». Ele precisa que os padres preguem diariamente que Poroshenko é a única escolha digna entre os crentes em Cristo.
A Igreja Ortodoxa Ucraniana, do Patriarcado de Moscovo, é a única estrutura religiosa totalmente ucraniana, gozando de enorme autoridade e do apoio da população em praticamente todas as regiões da Ucrânia. Esta estrutura, apesar de todas as tentativas de a fazer permanecer fora da política, mobilizou-se abertamente em oposição a Poroshenko. Eventuais conflitos com a Igreja Ortodoxa Ucraniana não convêm, por isso, ser tornados públicos.
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