As intersecções rodoviárias giratórias de nível, designadas rotundas, tiveram crescente utilização a partir dos anos 30 do século XX. Também em Portugal se verificou que, com a sua adopção, era mais fácil o autocontrolo da circulação de veículos automóveis nos cruzamentos/entroncamentos.
De facto, este tipo de infraestruturas incrementa a segurança rodoviária e a fluidificação do tráfego através de investimentos com vantagens custo-benefício. Vantagens demonstradas na prática e em trabalhos técnico-científicos.
A ex-JAE publicou, em 1990, as primeiras disposições normativas sobre rotundas (Norma de Intersecções JAE P5/90).
O domínio de aplicabilidade das rotundas é muito amplo na generalidade dos países.
As rotundas podem, ainda, contribuir para a valorização dos espaços públicos urbanos conferindo-lhes uma imagem (signo) que, em determinados cruzamentos convencionais, não seria possível.
No entanto, em Portugal, desde há cerca de duas décadas e meia, difundiu-se a ideia de que as rotundas são uma vulgaridade devida aos excessos da gestão autárquica. Determinados experts de variados extractos, com poiso certo e remunerado nos canais televisivos, rádios e jornais, vêm repetindo, em apontamentos ad latera, que tais obras representam falta de cultura e bom-senso.
Dizem-no, afivelando um sorriso inteligente, informado e cosmopolita, com o qual pretendem colocar na ordem da modernidade os parolos do poder local democrático que esbanjam dinheiros de «todos nós».
Não se sabe de onde terá surgido este iluminismo, embora se conheçam alguns (poucos) exemplos de excesso de rotundas, como é o caso de Viseu.
Tal campanha não matou, mas moeu. Por isso alguns autarcas e técnicos tenderam, pouco a pouco, a evitar rotundas «simples», tendendo a complexificá-las através de gongorismos simbólicos e geométricos, tentando assim saírem incólumes face à crítica dos normalizadores bem-pensantes.
Entretanto, coevo deste tipo de criticismo, surgiu o urbanismo ambientalista que, no domínio da mobilidade, fez do automóvel uma besta negra a banir total e imediatamente em larguíssimos territórios urbanos.
Registar que esta corrente puríssima nunca propôs nada de prático para acabar com a segregação socio-habitacional (gentrificação) e com os diversos usos rentistas e especulativos do edificado urbano, em particular nas áreas nucleares das urbes. Nem se preocupa quando alguns cidadãos perguntam, perante a ausência de soluções reais e confortáveis de transporte público colectivo, como se podem deslocar a tempo e horas entre a residência e os locais de trabalho, estudo, aprovisionamento e fruição cultural.
«Registar que esta corrente puríssima nunca propôs nada de prático para acabar com a segregação socio-habitacional (gentrificação) e com os diversos usos rentistas e especulativos do edificado urbano, em particular nas áreas nucleares das urbes.»
Nada demoveu estes militantes da redenção urbana centrada numa «nova» mobilidade dita sustentável. Alguns renovadores, muito bem pagos e sem responsabilidades democrático-eleitorais, não perdem oportunidade, desde há duas décadas, para imporem as suas visões idealistas e fundamentalistas financiadas com recursos públicos.
Não vão ao ponto de dizer aos refractários que, perante a falta de pão rodoviário, comam brioches autónomos. Mas, não hesitam em recomendar deslocações em bicicleta, trotineta e outros modos ditos suaves que, a serem utilizados profusamente, propiciariam um novo slogan: Lisboa cheira a suor!
É conhecido o caso de um ex-presidente de câmara municipal que, há quase três décadas, estreitou de forma drástica os arruamentos, vetando a circulação de automóveis numa cidade italiana de pequena dimensão (Como). Os cidadãos, incultos e ingratos, aumentaram-lhe a mobilidade: nas eleições seguintes, puseram-no a andar!
Aqui chegado, e para que não surjam especulações, esclarecer o pensamento.
O desenvolvimento da mobilidade e dos sistemas de transporte de pessoas e mercadorias implica alterações, em geral de grande amplitude. Mas tais mudanças devem ser harmónicas e sustentáveis. Isto é, terem em consideração não apenas a descarbonização e a despoluição (coisas diferentes) mas, também, um conjunto considerável de condicionantes/determinantes: a tipologia dos territórios, as tecnologias disponíveis (comprovadas técnico-economicamente), as densidades urbanas, a intensidade dos usos, os níveis socioeconómicos, as matrizes socioculturais, os recursos públicos e privados reais, e as fontes, vectores e redes energéticas disponíveis.
Neste contexto, a promoção das condições ambientais locais e a mitigação de efeitos e causas regionais relacionáveis com fenómenos macroscópicos planetários (designadamente os que influenciem o clima) devem ter um enquadramento balizado por prioridades variáveis e de acordo com o país e região.
O que não deveria acontecer é a inversão das prioridades, caindo no fundamentalismo seguidista e acrítico com que alguns decisores políticos «compram» as modas e tendências ditadas pelos centros de poder europeu, poder que, parecendo «ecologista e científico» está, de facto, centrado nos interesses da economia e das finanças privadas e neoliberais. É isso que está a acontecer, salvo melhor opinião, com a diabolização carbónica que tudo subjuga e determina.
«como eixos do novo paradigma de mobilidade e símbolo neourbano, as ciclovias vêm crescendo em diversas cidades, vilas e suas periferias. Passaram a ser estruturantes da mobilidade. Nelas circulam cidadãos montados em bicicletas, com e sem ajuda eléctrica motriz, mas, também, em trotinetas, skates, patins e, por vezes com risco da sua integridade física, a pé»
A história demonstra que as grandes transições, ou seja, as mudanças com cariz revolucionário, não se operaram com base em visões, terríficas ou idílicas, vertidas em regulamentos, directivas e leis, delineadas au fur et à mesure por elites políticas e tecnocráticas movidas por interesses particulares.
Muito menos quando, montadas em idealismos apressados e intempestivos, são concretizadas custe o que custarem aos povos. Até porque, tais transições, propiciando a continuação do lucro (intensificando-o), das rendas, da especulação, da corrupção, da fuga ao fisco, da exploração laboral e das fraudes diversas, resultam insustentáveis e injustas do ponto de vista da socioeconomia planetária.
Retomando a análise dos sistemas de mobilidade urbana preconizados segundo a cartilha em voga, encontram-se neles alguns sinais evidentes de desarmonia com as necessidades reais e com os recursos disponíveis.
Tenha-se em consideração, como mero exemplo, a moda das ciclovias.
De há década e meia a esta parte, os territórios têm sido semeados com projectos e obras para todos os gostos, financiadas por dinheiro público nacional e comunitário.
No início, as ciclovias apareceram correlacionadas com actividades lúdico-desportivas. Eram infra-estruturas simpáticas e úteis para as populações, que foram nascendo à medida das disponibilidades e das reais prioridades municipais.
Depois, já como eixos do novo paradigma de mobilidade e símbolo neourbano, as ciclovias vêm crescendo em diversas cidades, vilas e suas periferias. Passaram a ser estruturantes da mobilidade. Nelas circulam cidadãos montados em bicicletas, com e sem ajuda eléctrica motriz, mas, também, em trotinetas, skates, patins e, por vezes com risco da sua integridade física, a pé. Passaram a ser... isto é, não passaram, porque a realidade é outra muito distinta.
Quem já passou algumas horas analisando a utilização de tal infra-estrutura em diversos pontos da Área Metropolitana de Lisboa constata a baixa ou baixíssima taxa de utilização ciclável tanto nos centros, como, salvo nos fins-de-semana, nas ciclovias mais periféricas. Mesmo em horas de ponta, quando poderia haver utilizações em transferências intermodais, as densidades de uso são fracas.
O caso das trotinetas é paradigmático: quem poderia, de forma responsável (política pública), dizer que tal brinquedo faria parte do portfólio de soluções?
É hábito, designadamente entre os analistas da cepa que gozaram com as rotundas, compararem Lisboa e o Porto com Amesterdão ou Copenhaga, propondo a transposição daqueles modelos ciclistas. Já não falando das realidades chinesa, romena e outras. Estarão, uma vez mais, a fruir diletantemente a credulidade alheia?
Apenas considerando o período do QFP [Quadro Financeiro Plurianual] 2014-2020, em Portugal, até 31 de Março de 2020 tinham sido aprovadas cerca de 166 operações relacionadas com ciclovias e modos suaves, num valor de investimento elegível de 120 milhões de euros (+/- 90 milhões de FEDER). Pode dizer-se que não é muito. Mas verdadeiramente escassos são os pouco mais de 500 milhões destinados aos sistemas de transportes na sua globalidade e no mesmo período.
O modo de deslocação em bicicleta está socioeconómica e culturalmente inserido, desde há muitíssimas décadas, em determinadas sub-regiões do país, em particular na área territorial que engloba Ovar, Estarreja, Avanca, Pardilhó, Salreu, Cacia, etc.
Lá é possível ver a naturalidade com que as populações usam a bicicleta no seu dia-a-dia. Tendo em conta as características socioterritoriais não se estranha. Em outras latitudes e ambientes isso já assim não é. Por essa razão afigura-se prudente considerar que talvez seja errado injectar centenas de milhões em semeaduras condenadas à partida.
Por muito politicamente correctas que sejam, ou pareçam, tais opções acabam por traduzir-se, de facto, em desperdício.
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