A extrema-direita em Portugal está em permanente campanha para eleições legislativas. Só isso explicaria que a maioria das perguntas feitas ao deputado único no parlamento, na série de debates televisivos para as Presidenciais de 24 de Janeiro, se centrassem no programa político do seu partido. Mesmo quando candidatos queriam discutir os poderes do Presidente ou a importância de cumprir a Constituição, os moderadores lançavam o soundbyte, quase sempre racista, xenófobo ou violador de leis constitucionais. Nem mesmo quando o deputado único estava ausente a discussão se escusava a debatê-lo.
Terminados os debates aos pares para as Presidenciais, ficou claro que a agenda dos media é dar palco à extrema-direita sem contraditório. Certamente, muitos eleitores concordarão que este modelo de debates está esgotado e é cansativo; que se entra numa espécie de combate de boxe, e o sistema de estrelinhas ou de pontos dos comentadores mediáticos em reação aos mesmos também o alimenta. Um 1x2 constante em que sabemos quem ganha sempre. Mas para candidatos cuja campanha praticamente não está nos media, cuja voz raramente é ouvida (e muitas vezes silenciada), aqui e ali, a propósito do affaire du jour, estes debates são o único espaço de que dispõem para chegar a eleitores que simplesmente não os conhecem.
«Se o debate que opôs João Ferreira à extrema-direita foi um coro de gritos e interrupções, foi porque a TVI assim o quis. Dias depois, no debate com Marcelo, o moderador avisou que «ele deve ser vivo, com intervenções e interrupções, até, sempre que acharem que isso se justifica, mas deve ser pautado pelo máximo de respeito, civilidade e clarividência». Mas o mal já estava feito»
Quando Vitorino Silva apresentou oficialmente a sua candidatura, juntou-se um coro de vozes «pelo Tino» porque não fora incluído na série de debates, pela pluralidade democrática. Convém lembrar, contudo, as vozes pela pluralidade e o contraditório são as mesmas que durante os últimos meses não se indignaram por Ana Gomes, candidata à presidência, ter um espaço de comentário semanal na SIC, e também não se indignaram com o excesso de notícias sobre o partido de extrema-direita que tem um único deputado no parlamento em mais de 230 membros, mas uma percentagem muito alargada de protagonismo mediático.
João Ferreira, mas também, em menor grau, Marisa Matias e até Ana Gomes, há vários meses que têm vindo a fazer ações de campanha, Ferreira até desde Setembro. O coro de vozes «pelo Tino» também não se indignou com a ausência de cobertura noticiosa da campanha que João Ferreira tem feito, diariamente, por todo o país, incluindo ilhas, em contato com as populações e ouvindo diferentes sectores. Nota-se, aliás, que apenas a agência Lusa segue a agenda dos candidatos, até porque é da Lusa a maioria dos textos reproduzidos pelos principais jornais nacionais.
«Nas votações aos sucessivos Estado(s) de Emergência também a extrema-direita continuou em destaque. Dia 6, numa peça de menos de três minutos, a SIC-Notícias conseguiu a proeza de dar 23 segundos ao «vivo» do PSD (que votou a favor), e 21,50 segundos à extrema-direita (quase tanto como ao maior partido da oposição). A esquerda toda junta, em cortes rápidos e sucessivos (BE, PCP, PEV, PAN): 29 segundos»
Em contrapartida, a extrema-direita não precisou de pré-campanha, nem mesmo de ir para a rua. Diz-se um partido do povo, mas nunca está «com o povo». Excetuando uma arruada em Braga, no final de 2020, a extrema-direita conseguiu sempre chegar ao agenda setting dos principais media, com a coligação nos Açores, soundbytes sobre o PSD e Rui Rio, com o pedido de suspensão do mandato de deputado, com entrevistas ao suposto sucessor do deputado único no Parlamento. Tudo isto é cobertura noticiosa desde Outubro. Com a visita internacional de uma destacada fascista europeia, a extrema-direita conseguiu ter mais de duas notícias por dia em alguns meios. Se a conferência de imprensa e o photo op no monumento aos Heróis da Grande Guerra com Le Pen seria da praxe cobrir, já o almoço, o jantar, e o comício, que vários jornalistas abandonaram (exceto o Observador) por não estarem garantidas medidas de segurança (distanciamento físico), continuaram a alimentar notícias ao longo dos dias. Se alguns jornalistas ficaram, não se mostraram solidários com os companheiros; mas outros houve que abandonaram o local e ainda assim os seus meios publicaram notícias: com que fontes e com que imagens, se até a Reuters e a Lusa saíram? É cobertura de campanha, dirão: outros candidatos estavam na rua há dias e notícias nem vê-las.
Nas votações aos sucessivos Estado(s) de Emergência também a extrema-direita continuou em destaque. Dia 6, numa peça de menos de três minutos, a SIC-Notícias conseguiu a proeza de dar 23 segundos ao «vivo» do PSD (que votou a favor), e 21,50 segundos à extrema-direita (quase tanto como ao maior partido da oposição). A esquerda toda junta, em cortes rápidos e sucessivos (BE, PCP, PEV, PAN): 29 segundos. Foi também na SIC/SIC-Notícias que se mostraram as excelentes reportagens de investigação de Pedro Coelho sobre a extrema-direita. Contudo, foi irónico, no mínimo, que a reportagem tivesse passado exatamente à mesma hora em que Ana Gomes e João Ferreira debatiam noutro canal. Na mesma SIC, nos debates moderados por Clara de Sousa, a extrema-direita foi o tema de uma boa dezena de perguntas em discussões com outros candidatos. Na RTP, Carlos Daniel não soube ripostar que não há subsídios de RSI a 2000 euros, porque isso significaria que uma família deveria ter mais de 17 filhos. Não era preciso ser especialista em RSI: bastava ter lido notícias a propósito das eleições nos Açores, em Novembro.
É isto o contraditório? São os próprios meios que, não aplicando um cordão sanitário à extrema-direita, anunciam parangonas de investigações sobre os seus perigos, mas depois apresentam cronistas ou comentadores xenófobos e racistas que regularmente dão palco a essas mesmas ideias. Serve para lavar as mãos da responsabilidade?
«as vozes pela pluralidade e o contraditório são as mesmas que [...] não se indignaram com o excesso de notícias sobre o partido de extrema-direita que tem um único deputado no parlamento em mais de 230 membros, mas uma percentagem muito alargada de protagonismo mediático»
Se o debate que opôs João Ferreira à extrema-direita foi um coro de gritos e interrupções, foi porque a TVI assim o quis. Dias depois, no debate com Marcelo, o moderador avisou que «ele deve ser vivo, com intervenções e interrupções, até, sempre que acharem que isso se justifica, mas deve ser pautado pelo máximo de respeito, civilidade e clarividência». Mas o mal já estava feito. Aliás, dias depois, o moderador na TVI repetiu uma pergunta a João Ferreira explicando «que da última vez não se percebeu muito bem». Marcelo-João Ferreira foi, aliás, o mesmo debate que começou 15 minutos antes da hora marcada porque a TVI tinha de entrar em direto com uma telenovela.
Em Fevereiro, o ICS/ISCTE revelava uma espécie de «retrato robô» do eleitor de extrema-direita em Portugal. Curiosamente, desafiava clichés que normalmente se lhe associam. Escreveu Pedro Magalhães no Expresso: «Metade dos eleitores que tencionam votar no Chega são mulheres. Entre os 18 e os 24 anos, o partido quase não existe, e é só entre os 25 e 44 anos que lhe encontramos um apoio desproporcional. Um em cada cinco dos eleitores atuais do Chega têm curso superior e mais de um terço completou o ensino secundário, acima da instrução média dos portugueses adultos». Adultos com instrução média e superior são também os grandes consumidores de informação televisiva. Talvez por isso os comentários «futebolísticos» (para roubar a expressão de Ana Margarida de Carvalho) pós-debates ocupassem o cabo durante muito mais tempo do que as ideias e a voz dos candidatos.
A única figura que parece sair incólume disto é António Costa, sem qualquer arranhão face à atenção à extrema-direita, e sem se expor politicamente, desde que decidiu desvalorizar a eleição para um dos mais altos cargos da nação. Talvez Costa esteja apostado na sua sobrevivência política, mas a esse propósito vale a pena lembrar o aviso de João Ferreira em Novembro, sobre o risco de um segundo mandato presidencial de Marcelo reabilitar «protagonistas da política de direita».
A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)
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