Não é segredo que o teletrabalho constitui uma forma de prestação do trabalho mais onerosa, a diversos níveis, para o trabalhador, comparativamente a muitas outras já com assento na lei e que obrigam ao pagamento de complementos retributivos diversos, mas, ainda assim, quase sempre insuficientes. Não obstante, a resistência no que respeita à compensação do trabalhador pelos custos acrescidos que o teletrabalho representa tem sido ainda mais férrea.
A resistência patronal à assunção das responsabilidades pelo pagamento de certas prestações retributivas do trabalho não é nova. Tal atitude é bem expressa nos bancos de horas, nos regimes de adaptabilidade, entre outros, que visam contornar o pagamento de trabalho suplementar, trabalho suplementar esse inúmeras vezes prestado sem qualquer tipo de retribuição. Inclusive, toda a discussão em torno do direito à desconexão, depois de cumprido o horário de trabalho, enferma de intenções – mesmo que sub-reptícias – semelhantes.
O Projecto-lei recentemente apresentado pelo CDS-PP a propósito é bem disso revelador: o trabalhador em situação de teletrabalho tem direito a desconectar, com excepção das situações em que, por motivos de urgência e força maior, justifiquem o seu contacto pela entidade patronal. É razão para dizer que, como prova a realidade, sempre que o Código do Trabalho deixa esse tipo de critérios na ambiguidade, todas as tarefas se transformam em urgentes e impreteríveis para a sobrevivência da empresa. Como estabelece diversa contratação colectiva, existem regimes de disponibilidade para garantir que o trabalhador está contactável em caso de urgência.
Normalmente, estas ofensivas, aparentemente ingénuas, não assumidas frontalmente e caracterizadas pela ambiguidade, escondem as verdadeiras intenções dos seus autores, intenções que são mais tarde reveladas pela prática concreta, a qual resulta geralmente, em embaratecimento da mão-de-obra e aumento da mais valia extraída a partir do trabalho prestado.
O teletrabalho não é diferente e a prática confirma-o.
A falácia do aumento da produtividade
Nos EUA, por exemplo, está disponível on-line uma calculadora para ajudar os patrões a calcularem as poupanças/ganhos com o teletrabalho, na qual as empresas colocam dados como o número de trabalhadores, tempo de trabalho, salários, rendas, absentismo e subsídios de transporte, e no final obtêm os ganhos económicos que resultam da afectação de um determinado número de trabalhadores ao seu domicílio.
As poupanças/ganhos são classificadas como sendo as seguintes:
- Empresariais: Produtividade (62,1%); Continuidade – ausência de paragens na produção; poupança com custos de manutenção de instalações; Custos imobiliários (17,1%); subsídios de transporte; absentismo (11%);
- Ambientais/comunitárias: poupança de combustíveis; desgaste dos veículos; poupanças com acidentes de viação;
- Pessoais: poupança em tempo de viagem (11,4 dias de trabalho/ano); poupanças com transportes (2 a 4 mil dólares/ano).
A aplicação deixa de fora poupanças patronais importantes como as energéticas, porque, como se percebe, são essas que, quando contempladas, anulariam automaticamente as vantagens que a calculadora identifica para o trabalhador. E o que a calculadora pretende, está bom de ver, é promover o teletrabalho. Por outro lado, a calculadora coloca o absentismo – todo o absentismo – em cima da responsabilidade do trabalhador, mesmo que se tratem de licenças, dispensas ou créditos de horas com protecção legal. O teletrabalho é visto como uma forma de anulação de tudo isso, na medida em que, se trabalhar menos horas num período, compensa mais no outro.
«O teletrabalho representa, sobretudo, o embaratecimento do valor/hora pago ao trabalhador»
Em suma, o teletrabalho é vendido como altamente vantajoso para todos, para o trabalhador, empresas e comunidade.
Contudo, o que sucede é que a poupança/ganho ao nível empresarial é colocada em cima dos trabalhadores, sendo que passa a ser o trabalhador a suportar o desgaste com os equipamentos (inclusive da infra-estrutura); o desgaste na sua habitação; a energia; a água, para além de aspectos como o facto de, em teletrabalho, a tendência ser para se trabalhar mais tempo e com um ritmo superior.
Os ganhos de produtividade, que para os patrões são medidos em unidades produzidas por unidade de custo, mantendo-se o salário e a produção (nem precisa de aumentar) e baixando os custos operacionais, está bom de ver que aumentam: menos investimento gera o mesmo (o maior) resultado. Estes ganhos aumentam para o patrão, não para os trabalhadores. E aumentam na razão directa e proporcional da transferência dos custos para os trabalhadores. Ou seja, o que para o patrão é mais produtividade, para o trabalhador é mais sobrecarga e redução salarial, por via indirecta. Para custos operacionais menores, as empresas passam a obter o mesmo resultado ou, por vezes, até mais. Mesmo que desça um pouco a produção efectiva por parte do trabalhador, os ganhos são suficientes para absorver esse impacto.
«O que aumenta é o lucro, não a produtividade do trabalho. Apenas aumenta a produtividade do capital investido»
Daí que não possamos, efectivamente, falar em aumento da produtividade, mas sim do lucro; o aumento da relação Investimento/produção é conseguido à custa, não de um maior investimento em factores de produção que façam subir exponencialmente a produção por unidade investida, mas, ao contrário, à custa da redução indirecta da remuneração efectiva, líquida, dos trabalhadores, que beneficia os patrões. Estes não poupam, apenas transferem para o trabalhador os custos de produção. Estes custos, nem desaparecem, nem sequer contribuem para um aumento da produção. Apenas são deslocados para o trabalhador, agravando a sua exploração, tornando o seu trabalho mais barato.
Este aproveitamento patronal que constitui, na prática, uma redução do princípio da irredutibilidade de retribuição, bem como uma forma de enriquecimento sem causa, ou ilícito, em que o patrão retira um benefício à custa do trabalhador e não através de uma gestão mais eficiente dos recursos, ao contrário do que já ouvimos dizer, inclusive a membros do elenco governamental, não encontra na lei em vigor uma resposta que permita, por um lado, proteger o trabalhador desse locupletamento a suas expensas1 e, por outro, que compense ou funcione como dissuasor desse enriquecimento oportunista, à custa de maiores despesas efectuadas pelo trabalhador. Apenas se prevê a possibilidade de regulação dessa matéria num acordo individual.
Acresce que, como também já ouvimos a representantes patronais, mesmo assumindo a maior onerosidade que o teletrabalho representa para o trabalhador, a justificação que encontram para não o compensar reside na desculpa de que o trabalhador também poupa com as deslocações. O que não é, de todo, verdade: primeiro porque em muitas empresas os trabalhadores têm direito a subsídios de transporte, logo retirados quando são colocados em regime de teletrabalho; segundo, porque mesmo que não tenham direito a subsídio, qualquer poupança que o trabalhador consiga nas suas despesas pessoais, para com o trabalho (refeições, deslocações…), não constitui algo que seja da conta da entidade patronal. É algo que apenas a ele diz respeito, não podendo ser utilizado pela entidade patronal como justificativo para a subtracção ou negação do pagamento de determinadas prestações retributivas. Ao contrário do que sucede com as poupanças patronais com a retribuição dos trabalhadores, as poupanças que os trabalhadores, por vezes, logram conseguir (por exemplo, passar a utilizar um meio de deslocação mais barato) não se repercutem como encargos adicionais para a entidade patronal. Logo, se a entidade patronal não é afectada pela poupança que o trabalhador logra atingir, por que razão haveria de se intrometer na mesma, ou utilizá-la como justificação para o que quer que fosse? Já o mesmo não sucede com o teletrabalho, cuja poupança patronal é reflectida directamente como um encargo adicional que pesa no rendimento do trabalhador.
«O que justifica a compensação do trabalhador é o facto de a poupança patronal ser directamente relacionada com o crescimento dos seus custos – uma espécie de nexo de imputação que constitui a causa adequada dessa poupança»
Aliás, sendo, o contrato de trabalho um negócio jurídico bilateral sinalagmático, produtor de direitos e obrigações recíprocos, sendo precisamente essa reciprocidade entre obrigações que constitui o nexo a que designamos, juridicamente, de «sinalagma contratual», não lhe é alheia a obrigatoriedade de pagamento de uma compensação, como dever recíproco de retribuição pelo fornecimento, por parte do trabalhador, da sua força de trabalho, a qual, em teletrabalho, deve incluir o dever de retribuição pela colocação à disposição para exploração pela entidade patronal da sua própria habitação. Ao não se estabelecer esta justa conexão, amanhã poder-se-á abrir a porta a uma outra pretensão que é a de o trabalhador, por não ter em casa condições, ter de recorrer a espaços de coworking, sendo ele a pagar, ainda por cima, a renda. E nesse dia estará cumprida a transferência definitiva do dever de fornecer as instalações de trabalho, do empregador, para o trabalhador. Nesse dia, do trabalhador para o «colaborador» será apenas um pequeno passo.
«Na qualidade de responsável e por conta de quem o trabalhador presta a actividade, é o empregador que tem o dever de fornecer as necessárias condições materiais»
Uma forma de organização mais onerosa para o trabalhador
Não resultam duvidas de que o teletrabalho é uma forma de organização flexível que é mais onerosa para o trabalhador. Esta maior onerosidade não se deve apenas à transferência de custos energéticos, com instalações, consumíveis, abastecimentos, manutenção de instalações, comunicações ou estruturas e equipamentos de apoio ao trabalhador.
Se, em função da transferência, para o trabalhador, de um conjunto de custos operacionais com determinados factores de produção, já se verifica uma situação de enriquecimento sem causa por parte da entidade patronal, a maior onerosidade do teletrabalho não se limita à verificação deste dano ou aproveitamento económico.
«Os custos do teletrabalho não são apenas pecuniários, são também económicos, físicos, sociais, mentais, etc.»
O teletrabalho é mais oneroso porque implica o condicionamento e sobrecarga de variadas dimensões físicas, mentais e sociais do trabalhador, à imagem do que sucede com o trabalho suplementar, o trabalho nocturno, a isenção de horário, a disponibilidade permanente, a deslocação geográfica ou o trabalho por turnos.
Se, por exemplo, no trabalho por turnos, a maior onerosidade é apreciada em função da maior sobrecarga psíquica, das maiores dificuldades de inserção na vida social, na maior exigência física ou nas dificuldades acrescidas de conciliação entre o trabalho e a vida pessoal, e que justificam o subsídio de turno, no caso do teletrabalho, o trabalhador é sujeito a uma sobrecarga nas seguintes dimensões:
Sobrecarga do seu direito à reserva de intimidade da vida privada, uma vez que o espaço de trabalho é invadido pelo trabalho, por tarefas e por equipamentos que vão intrometer-se na intimidade, não apenas do próprio trabalhador, mas de todos os membros do seu agregado;
Perturbação do direito à tranquilidade e inviolabilidade do seu espaço doméstico, uma vez que a actividade laboral passa a conviver com a actividade doméstica, condicionando-a, limitando-a e perturbando as rotinas íntimas de todos os que vivem nesse lar;
Sujeição do agregado familiar à vigilância, acompanhamento e monitorização do trabalho pela entidade patronal;
Isolamento, afastamento e desconexão do trabalhador em relação às dinâmicas sociais e pessoais ligadas ao espaço físico de trabalho, dificultando o acesso à informação, ao escrutínio e comparação das condições de trabalho, ao reconhecimento e à socialização com outros trabalhadores, organizações representativas e quadros sindicais.
«Os custos do teletrabalho não incidem apenas sobre o trabalhador, mas sobre todo os que com ele vivem»
Esta maior sobrecarga, económica, pecuniária, social, pessoal e familiar, que não incide apenas sobre o próprio, mas sobre todos os outros que com ele convivem, não se conhecendo ainda a verdadeira influência – antevendo-se muito negativa – da invasão e intromissão do trabalho no relacionamento familiar e no desenvolvimento mental e social, de todos e cada um, dos membros da família, deve ser objecto de aprofundada reflexão e estudo, nas dimensões que estão para além do trabalho e deve, no mínimo, conferir o direito a uma prestação compensatória que opere um ressarcimento do trabalhador e que equilibre a maior onerosidade que o teletrabalho representa com a poupança que tal representa para o lado das empresas.
Só operando esta compensação se evitará uma situação de «enriquecimento sem causa», uma vez que a lei obriga, nesses casos, aquele que enriqueceu a restituir o fruto desse enriquecimento. Adicionalmente, esta característica do teletrabalho constitui também um factor de tratamento desigual entre trabalhadores presenciais e trabalhadores a distância a partir do seu domicílio.
Mas podemos ir mais longe, a prestação compensatória não pode cingir-se ao objecto do enriquecimento patronal, pois tal obrigaria a entrar numa duvidosa contabilidade de despesas versus poupanças. A prestação compensatória deve ressarcir o trabalhador pela maior onerosidade social e pessoal que o teletrabalho representa. Ou seja, a entidade que explora o teletrabalho, tem de pagar por ele, numa lógica de compensação de toda essa carga que o teletrabalho representa para o trabalhador. A sua retribuição tem de aumentar efectivamente e não apenas operar-se uma reposição de custos meramente pecuniários efectuados. Caso contrário, o trabalhador continuaria a perder nessa equação.
É fundamental desmontar o discurso patronal e governamental em como o grande ganhador do teletrabalho são os próprios trabalhadores.
Sejamos realistas e sérios: se os trabalhadores fossem os grandes ganhadores, não existiria o teletrabalho!
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