«O Secretariado do Comité Central do PCP informa, com profunda mágoa, do falecimento hoje, dia 9, aos 101 anos de idade, de Jaime Serra, um dos mais destacados dirigentes do PCP, que dedicou toda a sua vida à luta da classe operária, dos trabalhadores e do povo português. Uma vida dedicada à luta contra o fascismo, pela liberdade e a democracia, por uma sociedade nova, o socialismo e o comunismo», dá conta um comunicado do partido.
Jaime Serra nasceu em 1921 em Alcântara (Lisboa) e tinha completado 101 anos em 22 de janeiro. Era militante do PCP desde 1936 e em 1937, com apenas 15 anos, «foi preso pela primeira vez».
Em 1940, Jaime Serra começou a trabalhar como operário traçador naval no Arsenal do Alfeite, em Almada (distrito de Setúbal), onde trabalhou durante sete anos, passando à clandestinidade em setembro de 1947.
«Eles têm o direito a saber»
Quando fez 74 anos, o filho José escreveu-lhe uma carta a pedir-lhe que lhe contasse a sua vida. Tinham crescido, por causa da clandestinidade, longe do pai e da mãe, e sabiam das opções políticas do pai mas queriam compreender e conhecer a sua vida. Só depois do 25 de Abril de 74 a família se tinha juntado toda à volta da mesma mesa. «É frequente questionar-me sobre as prioridades da vida, o que é de facto mais importante, como distinguir o essencial e encontrar o equilíbrio. A verdade é que todos os dias fazemos opções de vida. Tu também fizeste as tuas. Que têm dado origem à caminhada que tens feito. Das tuas opções resultou que a nossa família ficou dispersa. Hoje tens seis netos que nada conhecem da tua vida e quatro filhos que, além dos ideais e da luta a que te entregaste, pouco sabem das tuas opções, dúvidas e crenças mais profundas», escrevia o filho José Serra. Foi em resposta a essa carta que Jaime Serra escreveu Eles Têm o Direito da Saber e mais três livros que se seguiram.
O pai de Jaime Serra morreu muito cedo, teria ele pouco mais de dez anos. Numa entrevista ao jornal i, Jaime Serra, falou do pai, que nasceu no lugar do Pezinho. Contou que foi com a mulher e com dois filhos para Lisboa para tentarem uma vida melhor. Aqui conseguiu um trabalho de descarregador de mar. O pai era simpatizante dos anarco-sindicalistas, em casa recebiam A Batalha e havia literatura revolucionária. Foi muito jovem que Jaime Serra começou a ler. «Com 12 anos já tinha lido o Germinal e o Trabalho de Zola, e tudo o que apanhava à mão», disse na entrevista. É também na infância, na companhia do pai, que se lembra de ter tido consciência dos combates e das divisões sociais em que o mundo e a sua vida estavam mergulhadas.
O pai, Joaquim Eleutério, era membro da Associação de Classe dos Trabalhadores do Tráfego do Porto e de Lisboa. Participava activamente nas greves e nas lutas. Serra lembra-se de um dia ter visto o pai enrolar um cavalo marinho à da cintura e dizer-lhe: «É por causa dos amarelos [os fura-greves].»
É na sequência de uma greve prolongada que o pai de Serra se vê compelido a arranjar outro sustento. Tinha mulher e quatro filhos para alimentar. Pediu dinheiro emprestado e começou a vender, ele e toda a família, cabazes de fruta. A coisa foi crescendo, embora a fome em casa fosse tanta que às escondidas os filhos lhe comiam parte da mercadoria. Mas a necessidade era grande e da fruta passaram para os panos – esses ao menos não eram comidos. Mas a aventura comercial não teve um final feliz. Ao levar uma carroça, José Eleutério tem um acidente, é hospitalizado e morre com 41 anos, deixando mulher e quatro filhos menores.
Jaime vê-se obrigado a abandonar os estudos e a ir trabalhar. Aos 12 anos um vizinho arranja-lhe lugar numas obras no Barreiro. Carregava tijolos e argamassa e dormia no barracão das obras. «O primeiro ano que passei foi muito rigoroso, dormia dentro de uma banheira de pedra com um pouco de palha a servir de colchão. Só mais tarde tive direito a ocupar uma tarimba», escreve no Eles Têm o Direito a Saber. No estaleiro o almoço era sempre bacalhau e batatas. Comeu durante três anos bacalhau com batatas todos os dias, chovesse ou fizesse sol. Perguntaram-lhe, na entrevista, se ainda consegue comer bacalhau. Sorriu e disse: «Gosto muito de bacalhau.»
Foi no barracão das obras em que dormia que conheceu o primeiro comunista. Era de Porto Brandão e levou Serra a frequentar a biblioteca dos Penicheiros, no Barreiro. Assistiu também a aulas de esperanto, um projecto de língua universal que tinha muita popularidade em sectores da classe operária. Sinto curiosidade por esta gente que queria ler, aprender línguas universais que dariam as palavras a um mundo sem fronteiras e que tentavam conhecer as matemáticas, a física e tudo o que acontecia de mais moderno no mundo. Numa entrevista, falam-lhe de umas palavras do dirigente comunista Dias Lourenço, que dizia que usou a prisão para aprender álgebra e alemão. «Era uma forma de sair dos limites da classe em que nasceram?», lança o jornalista. Jaime Serra contesta e diz que tem muito orgulho em ser da classe operária, mas, tal como tinha consciência de que o seu trabalho criava riqueza, achava que tinha o direito de conhecer o melhor do mundo. O conhecimento era uma forma de libertação.
Na sequência da revolta do 18 de Janeiro, a PIDE e a GNR vão prender às oficinas da CP, no Barreiro, um dirigente sindical. Os operários, alertados para a prisão, tocam as sirenes, revoltam-se e cercam as forças policiais exigindo a libertação do camarada. Os operários das redondezas incorporam-se no protesto. Serra larga o trabalho e participa na revolta de tal forma que conta no seu primeiro livro que um engenheiro da CP olha para ele e lhe diz: «Então, pequeno e já andas no pica-pica a incitar os mais velhos?»
Com o fim do trabalho começa a militar no PCP, em 1935. A revolta dos marinheiros em 1936, quando os revoltosos tentam sublevar os navios de guerra e levá-los a combater ao lado da República espanhola, que se defrontava contra o exército franquista sublevado e apoiado pela Alemanha nazi e pela Itália fascista, apanha Jaime Serra a caminho do trabalho, uma obra perto do forte do Duque. Vê os preparativos militares e é aí que ouve os primeiros disparos da artilharia de costa contra os barcos tomados pelos marinheiros da Organização Revolucionária da Armada, ligada ao PCP.
A sua primeira prisão dá-se nas vésperas de fazer 16 anos; o aniversário passa-o preso. «Estava a distribuir Avantes e fui ter a uma taberna à noite para dar um a um camarada. Como estávamos na altura da Guerra Civil de Espanha, a polícia fazia rusgas frequentes. Fui revistado. Quando viram o Avante! mandaram--me para o Governo Civil de Lisboa. Durante uns dias bateram-me, para explicar como tinha o jornal. Respondi-lhes sempre a mesma coisa: tinha apanhado o jornal do chão e levei-o para casa para ler». Mandaram-me para casa com o aviso de que era má ideia deixar-me apanhar outra vez.
Depois da prisão passou vários meses sem trabalhar. Mudou de profissão, por influência de Alfredo Diniz (Alex), posteriormente assassinado pela PIDE, matricula-se num curso nocturno da Escola Industrial Marquês de Pombal. Em 1939, depois de estar na equipa de construção de uma lancha da Marinha de Guerra, concorre para o arsenal do Alfeite e é admitido. Ajuda a organizar a célula clandestina do PCP no Arsenal, que tinha mais de 50 militantes e distribuía 100 exemplares do Avante! clandestino, entre os mais de 3 mil trabalhadores. É nesse período que começa a viver com a Laura, a sua companheira de sempre.
Em 1945 dão-se por muitas cidades do país as manifestações que assinalam a vitória dos Aliados sobre os exércitos nazis. Nas fábricas os operários saem com bandeiras dos Aliados e muitos paus sem pano, a simbolizar a bandeira vermelha da foice e do martelo da União Soviética. Na sequência dessas acções de massas e do crescimento da revolta contra o regime é criado o MUD (Movimento de Unidade Democrática) e muitos comunistas passam a ser referenciados pelas autoridades, dadas estas actividades paralegais. O crescimento do movimento obriga os poucos funcionários clandestinos do PCP a intensificarem o trabalho. É nesse contexto que Alfredo Diniz é assassinado pela PIDE, na estrada de Bucelas, quando se deslocava de bicicleta a caminho de uma reunião clandestina. Em várias fábricas de Lisboa, os operários afluíram ao Hospital de São José, onde o corpo estava depositado na morgue. Depois das greves de 1947, Serra está referenciado pela polícia e tem de passar para a clandestinidade. A segunda filha de Jaime Serra, Olga Maria, nasce em 1948 na clandestinidade. O parto foi assistido pela mãe de Serra.
Em 1949, todo o secretariado do PCP é preso: Álvaro Cunhal e Militão Ribeiro vão parar à prisão. Durante esse processo repressivo Jaime Serra tem a sua prisão. «Aí já não havia desculpa de ter apanhado o Avante! no chão. Recusei-me a fazer qualquer declaração. Nada. Puseram-me imediatamente a fazer de 'estátua' [tortura em que os detidos eram obrigados a ficar longos períodos em pé imobilizados, e quando se mexiam eram espancados]. Quando acabou, tinha as pernas tão inchadas que não conseguia tirar as botas, tiveram de ser cortadas com uma faca.» Como era possível não falar na tortura? «O que nos aguentava eram as convicções e não querermos que outros dos nossos passassem pela mesma coisa.» Durante meses ficou nos calabouços do Aljube, à espera das sessões de tortura, em que o inspector da PIDE Gouveia profetizava que o ia «vergar». Tal não aconteceu.
Foi transferido para Peniche, e daí consegue fugir em 1950, na companhia de Francisco Miguel (Chico Miguel) que é recapturado. Volta a ser preso em 1956 e 1958. Tenta fugir uma vez. É apanhado. E foge mais duas vezes, a última das quais, em 1960, na famosa fuga de Peniche na qual escapam vários elementos do PCP, entre os quais Álvaro Cunhal. Nunca mais é preso. «Como eram possíveis tantas fugas?», pergunta-lhe um jornalista numa entrevista. Com um olhar divertido, responde: «Tínhamos muito tempo para pensar nisso.» Acrescenta, mais sério, que a primeira tarefa de um revolucionário preso é tentar escapar. «E entre os presos tínhamos o tempo e a determinação para observar a vida na prisão, ver nas rotinas as fraquezas e preparar essa fuga.» O último livro que escreveu versa aliás essa experiência colectiva, 12 Fugas das Prisões de Salazar.
Em 1952, Jaime Serra passa a fazer parte do comité central do PCP e posteriormente da comissão política. Tem um papel relevante no V Congresso, o do chamado «desvio de direita» na história oficial do partido, em que apresenta, com o nome de guerra Freitas, o relatório sobre política colonial, e no VI Congresso, o único realizado no estrangeiro, em Kiev, em que Cunhal depois da fuga toma as rédeas do partido. Serra trabalhou com Júlio Fogaça e Cunhal. Sobre o primeiro é de poucas palavras, quase mudo.
Em 1962, entre várias tarefas, o partido encarrega-o da operação de fazer sair de Portugal os dirigentes dos movimentos de libertação Vasco Cabral e Agostinho Neto. Arranja um barco para essa acção e, no meio de uma tempestade, em que Serra tem de abrir o motor à machadada, conseguem desembarcar os dois com as famílias em Marrocos. «Chegou a ver Agostinho Neto depois?», pergunta-lhe o jornalista numa entrevista ao i. «Alguma vez lhe perdoou a tempestade [risos].» «Sim, vi-o em Portugal, tanto me desculpou que me convidou para visitar Angola. Infelizmente morreu antes de eu concretizar a visita», informa.
Em 1970 envia uma carta ao comité central defendendo as acções armadas contra o regime. Fica responsável pela criação da ARA (Acção Revolucionária Armada). Esta organização faz um conjunto de acções contra a máquina de guerra do regime: a bomba no paquete Cunene, a destruição de mais de 20 aeronaves da força área em Tancos, a interrupção das comunicações durante a reunião da NATO em Lisboa são algumas delas. Depois de uma vaga de repressão que atinge parte dos operacionais, o PCP decide, pela aproximação dos momentos eleitorais, em que o regime permitia uma maior acção da oposição legal, interromper as acções da ARA. Nessa repressão distinguiu-se um elemento do CC do PCP que trai o partido e começa depois da sua prisão a dar informações à PIDE. Augusto Lindolfo sofre um atentado, uma rajada de pistola-metralhadora. Ferido, sobrevive e é enviado pela PIDE para o estrangeiro. Quando numa entrevita perguntaram a Jaime Serra se o atentado tinha sido feito pela PIDE, para que Lindolfo denunciasse mais gente, ou pelo partido. Em anteriores entrevistas, Jaime Serra não tinha respondido a esta questão. Desta vez Jaime Serra nega que tenha sido a PIDE. «Foi o partido?», perguntam-lhe. Os olhos parecem responder mas mantém o silêncio. E depois diz: «Não interessa saber quem foi, até porque não resultou.»
Depois do 25 de Abril foi difícil recuperar a vida familiar. Até porque nos primeiros anos da revolução teve a difícil tarefa, no partido, do contacto com os militares. Jaime Serra manteve-se na direcção do PCP, assumiu responsabilidades, nomeadamente como membro da Comissão Política, da Comissão Central de Controlo e Quadros, da Comissão Central de Controlo e da Comissão Administrativa e Financeira. Foi candidato a deputado à Assembleia Constituinte e, até 1983, candidato a deputado para a Assembleia da República [pelo círculo de Coimbra (III e IV legislatura) e por Setúbal ]
Segundo a nota do Secretariado do Comité Central do PCP, que «endereça aos seus quatro filhos e restante família as suas sentidas condolências», o corpo de Jaime Serra estará em câmara ardente a partir das 16h de sexta-feira, dia 11 de Fevereiro, na Casa Mortuária da Igreja S. Francisco de Assis, Av. Afonso III (Alto S. João). O funeral realiza-se na manhã de sábado, dia 12 de Fevereiro, para o cemitério do Alto de S. João, onde o corpo será cremado após cerimónia a realizar pelas 11h30.
A sua memória, essa permanecerá.
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