|50 anos do 25 de Abril

Provemos aos mortos que não os traímos

Neste 50.º aniversário do 25 de Abril importa trazer os neorrealistas para a celebração da Revolução que nos ajudou a conquistar direitos e liberdades, que nos ajudou a afirmar uma rutura com 48 anos de fascismo e para a qual deram o seu contributo e muitas vezes a vida. 

O exercício de falar com os mortos não está ao alcance de todos e diz-nos a experiência que, de certa forma, devemos desconfiar quando é feito para validação de causa própria. Apesar de ser mais fácil aceitar que um familiar ou amigo próximo estabeleça esse contacto com o Além, também é verdade que as probabilidades de fraude aumentam. Não que o espiritismo deva alguma coisa à estatística, mas nunca fiando. 

Se o exercício pode ser tentado para obtenção de vantagem pecuniária, ninguém diz que não o possa ser para validação argumentativa. Por isso, nunca é de mais desconfiar de quem jura que fulano de tal estaria, hoje, a dar voltas na tumba ou que teria uma opinião diferente daquela que advogou durante toda a sua vida. A garantia desta certeza tem um valor muito semelhante ao do exoterismo e só pretende validar a opinião do próprio médium, o que, convenhamos, não é algo que possamos enquadrar num capítulo dedicado à honestidade intelectual na história das ideias.

Porém, é com demasiada frequência que ouvimos familiares, amigos ou investigadores de autores (intelectuais, escritores, artistas) que há muito não se encontram entre nós a jurar que a sua opinião sobre uma determinada matéria seria, curiosamente, igual à de quem, agora, fala em seu nome. Uma coincidência tão admirável que, ainda mais curiosamente, ocorre sempre no campo ideológico-partidário. O truque não é fácil de demonstrar porque no tempo em que muitos viveram, a biografia dos autores era, como bem disse Carlos de Oliveira, um icebergue, em que a parte substancial dessa biografia ficava submersa à conta da repressão e da censura. Por isso, a obra e o espólio deixados obrigam-nos a uma leitura atenta para retirar do pouco que ficou escrito o muito que se quis dizer. Isto, claro, implica um outro exercício de comedimento e abnegação que passa por não colocar no objeto características que são mais um desejo nosso do que aquilo que ele de facto nos demonstra. 

Imagine-se o que seria dizer que Carlos de Oliveira (1921 – 1981), usando já este exemplo, não seria, hoje, comunista. Esta tem sido, de resto, uma tendência de alguns setores em relação à maioria da geração de neorrealistas que já não anda entre nós para dizer de sua justiça. Uma tendência que, de resto, não é nova, se nos lembrarmos da forma condescendente e paternalista como o filósofo Eduardo Lourenço caracterizou o campo ideológico daqueles autores e artistas, adjetivando-o de «marxismo afetivo», como quem diz, «eram jovens, coitadinhos, não sabiam». A influência do lourencismo tem tido respaldo nalgumas conclusões que acabam por ser validadas em circuitos académicos menos capacitados para o debate da história das ideias políticas. Como é possível caracterizar o marxismo dos neorrealistas sem estudar profundamente o marxismo, a sua introdução em Portugal ou, pelo menos, sem o debater com outros marxistas?

«A obra e o espólio deixados obrigam-nos a uma leitura atenta para retirar do pouco que ficou escrito o muito que se quis dizer. Isto, claro, implica um outro exercício de comedimento e abnegação que passa por não colocar no objeto características que são mais um desejo nosso do que aquilo que ele de facto nos demonstra.»

Há, ainda, a escola de José-Augusto França, para quem o Neorrealismo foi sempre um «movimento estético» pobre. Uma escola que condenou a literatura e as artes visuais do Neorrealismo ao desinteresse académico e à desvalorização artística, deixando sempre a sugestão de que se trata de obras enfadonhas, de estética repetitiva, que abdicaram da forma ou que importaram uma ortodoxia soviética e sequestraram a individualidade criativa dos artistas. Criticam, assim, o Neorrealismo com a mesma lente com que analisaram a política cultural desenvolvida por Jdanov na URSS, bem depois da morte de Estaline. Há muito mais de preconceito ideológico nessa análise do que de crítica de arte. Já quando se fala de autores que cumprem os critérios para entrar num determinado espaço da alta-cultura, então desvaloriza-se a corrente ideológica integrada na sua vida e na sua arte. Aí já não se trata da falta de qualidade por causa do comunismo, mas de uma qualidade admirável apesar do comunismo e, em particular, do PCP. 

Para lá do ajuste de contas à custa dos mortos, há aqui uma dimensão que não devemos menosprezar – a da desconsideração das opções que todos, de forma consciente, fazemos. Negar a ideologia e a militância aos neorrealistas e ao que imprimiram na história da cultura portuguesa e da luta antifascista é violar-lhes a consciência, quando o que lhes devemos é a valorização desse seu contributo, com essas mesmas características, no caminho para a Revolução de Abril.

É importante lembrar sempre que a génese do Neorrealismo está na cultura marxista e que a sua proposta artística assenta nesse quadro teórico. Analisá-lo implica sempre um conhecimento mais profundo desse mesmo quadro teórico. É uma arte intrinsecamente politizada, informada a partir da leitura e discussão dos textos marxistas e devedora do período histórico internacional que a precede, da Revolução de 1917 à Guerra Civil Espanhola. A esta politização não é indiferente a evolução do Partido Comunista Português, desde a sua origem à consolidação do ideário marxista-leninista. É neste campo que os neorrealistas vão buscar os instrumentos teóricos para alicerçar um novo modelo de criação artística, em rutura com o modelo anterior, assente num realismo crítico, que não assumia objetivos políticos ou, como disse Alexandre Pinheiro Torres, um realismo que não descurava a hipótese marxista, enquanto que o Neorrealismo a propunha. 

É este movimento que vamos ver espalhado por toda a obra que assume esse compromisso, seja nas demonstrações da exploração, seja no papel das mulheres e das crianças, seja nas relações entre a burguesia e o povo. O contributo dos neorrealistas para a materialização de um ideário marxista numa obra de arte é um elemento-chave para a consciencialização de muita gente, até mesmo daqueles que viviam alienados da realidade do país. Há, aliás, três movimentos a reter, aqui: a observação da realidade, a criação da obra que a realidade inspira e os diferentes grupos de leitores a quem ela chega e nos quais ela tem um efeito diferenciado.

Apesar de terem sido muitos os autores e artistas que, não tendo integrado o Neorrealismo, foram por ele contagiados, e não desvalorizando também o seu papel na luta antifascista, foram os neorrealistas que assumiram um papel revolucionário, arriscando a sua vida e deixando muitas vezes de lado uma carreira artística profissional, tendo muitos de se dedicar a outras profissões para sobreviver e outros ainda de abandonar o país. Esse sacrifício não pode agora ser substituído por um capricho da juventude, um ato rebelde e inconsciente, só porque quem hoje olha para trás leva para a sua análise os seus próprios preconceitos ou pruridos ideológicos.

«Negar a ideologia e a militância aos neorrealistas e ao que imprimiram na história da cultura portuguesa e da luta antifascista é violar-lhes a consciência, quando o que lhes devemos é a valorização desse seu contributo, com essas mesmas características, no caminho para a Revolução de Abril.»

A firmeza da proposta neorrealista deve muito à firmeza, também, do Partido Comunista Português, que ali estava sem hesitar na luta pela sociedade sem classes e, pelo caminho, na luta contra o fascismo. Porque era precisamente pela sua defesa da sociedade sem classes, sem exploradores nem explorados, pela forma como isto se manifestava na sua obra, que os neorrealistas eram perseguidos, torturados e assassinados, como o foi, por exemplo, José Dias Coelho

Se é verdade que muitos não tiveram a oportunidade de ver o 25 de Abril, como foi o caso de Dias Coelho, de Mário Sacramento, de Soeiro Pereira Gomes ou de Alves Redol, também não é menos verdade que deixaram testemunhos claros sobre esse seu compromisso. Não se pode olhar para isso e concluir que se trata de um assomo da juventude, que a integração do materialismo dialético na sua obra é mera veleidade. Não se pode, também, olhar para críticas que outros autores fizeram ao PCP e concluir que o seu afastamento do Partido significou um afastamento da luta de classes e do ideário marxista. É por isso que neste 50.º aniversário do 25 de Abril importa trazer os neorrealistas para a celebração da Revolução que nos ajudou a conquistar direitos e liberdades, que nos ajudou a afirmar uma rutura com 48 anos de fascismo e para a qual deram o seu contributo e muitas vezes a vida. Importa retomar a batalha pelo conteúdo, citando Redol, num mundo onde o entretenimento ocupou o espaço da cultura e onde o capitalismo nos vai arrastando para o desinteresse e para a rejeição das ferramentas críticas; o mesmo capitalismo que, já agora, os próprios neorrealistas denunciaram. Se muitos que sobreviveram aos neorrealistas optaram por terceiras vias, não o projetem naqueles que não estão cá para defender a sua consciência.

Num dos seus poemas mais intensos – «Interrogação sem Resposta» – Sidónio Muralha escreve «Provemos aos mortos que não os traímos/ Devolvendo aos vivos a terra dos vivos». Em vez de dar tantas voltas para justificar a especulação ideológica e narrativas sem sustentação, seria importante devolver estes autores ao lugar da história que lhes foi vedado; dar voz e expressão àqueles que foram naquele momento os seus anseios e as suas intenções declaradas. Só assim lhes faremos justiça. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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